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TOMAS
TRANSTRÖMER
O sonho de Balakirev
e outros poemas
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Transmudações de Luís Costa
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Tomas Tranströmer (Estocolmo, 15 de abril de
1931 – Estocolmo, 26 de março de 2015).
É considerado um dos maiores poetas
suecos. Recebeu o Prémio Nobel da Literatura em
2011. |
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Caprichos
Escurece em Huelva: palmeiras cobertas de
fuligem
e os apressados morcegos prateado - claros
do apito do comboio.
As ruas encheram-se de gente.
E a senhora, que caminha apressada por entre a
multidão,
pesa cautelosamente a última luz do dia na
balança dos seus olhos.
As janelas dos escritórios abertas. Ainda se
ouve,
como o cavalo bate com os cascos lá dentro.
O velho cavalo com cascos de carimbo.
As ruas só se esvaziam depois da meia-noite.
Finalmente, todos os escritórios ficam azuis.
No espaço, lá em cima:
troteando em silêncio, cintilante e negro,
despercebido e solto,
o cavaleiro derrubado:
uma nova constelação
a que dou o nome
Cavalo.
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Leonardo da Vinci |
Abril e
silêncio
Primavera consternada.
Uma valeta de veludo negro
rasteja ao meu lado,
sem reflexos.
As únicas coisas que brilham
são as flores amarelas.
A minha sombra leva-me
como um violino
no seu estojo negro.
Tudo o que queria dizer
cintila, inacessível,
como a prata
no penhorista.
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Via – férrea
Duas da noite: luz da lua. o comboio deteve-se
no meio do campo. Ao longe, pontos de luz numa
cidade
que brilha, friamente, na orla que os olhos não
alcançam.
Como alguém que cai num sono tão profundo
que não se recorda de ter estado ali
quando regressa ao seu quarto.
Ou alguém que cai numa doença tão profunda
que tudo o que eram os seus dias se converte em
pontos cintilantes,
um enxame,
pequeno e frio, que os olhos não alcançam.
O comboio continua parado.
Duas horas: o brilho intenso da lua. Poucas
estrelas.
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Em outubro
O mar de outubro brilha, frio,
com a sua barbatana de miragens.
Nada ficou de tudo aquilo que fazia lembrar a
clara
vertigem dos barcos à vela.
Luz de âmbar sobre a cidade.
Todos os ruídos numa fuga vagarosa.
Um hieróglifo de latidos de um cão,
desenhado sobre o jardim
onde os frutos amarelos iludem a árvore
e se deixam cair.
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Sesta
Pentecostes de pedras. E com línguas
faiscantes...
A cidade, sem peso, no espaço do meio-dia.
Inumação na luz fremente. O tambor que abafa
Os punhos palpitantes da eternidade
enclausurada.
A águia sobe e sobe sobre os que dormem.
Sono onde a pedra do moinho roda como o trovão.
Passos de cavalos com os olhos vendados.
Os punhos palpitantes da eternidade
enclausurada.
Os que dormem pendem como pesos no relógio do
tirano.
A águia plana, morta, nas cascatas que jorram do
sol
E ecoam no tempo, como na urna de Lázaro
Os punhos palpitantes da eternidade
enclausurada.
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Página do livro
noturno
Numa noite de maio fui a terra
o brilho da lua era fresco,
a erva e as flores, cinzentas,
mas os odores, verdes.
Deslizei pela encosta
na noite daltónica
enquanto as pedras brancas
apontavam para a lua.
Um período de tempo
com poucos minutos de comprimento
cinquenta e oito anos de largura.
Atrás de mim,
para além da água que brilhava como chumbo,
estava a outra costa
e aqueles que a governavam.
Homens com um futuro
em vez de um rosto.
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Nattbokblad
Jag
landsteg en majnatt
i ett
kyligt månsken
där gräs
och blommor var grå
men doften
grön.
Jag gled
uppför sluttningen
i den
färgblinda natten
medan vita
stenar
signalerade
till månen.
En tidrymd
några
minuter lång
femtioåtta
år bred.
Och bakom
mig
bortom de
blyskimrande vattnen
fanns den
andra kusten
och de som
härskade.
Människor
med framtid
i stället för ansikten.
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Cara a cara
Em fevereiro a vida estava parada.
Os pássaros voavam a contragosto e a alma
roçava-se na paisagem como um barco
que se esfrega ao passadiço onde está amarrado.
As árvores estavam de costas para aqui.
Talos mortos mediam a profundidade da neve.
Pegadas envelheciam na neve gelada.
Sob um toldo, a linguagem definhava.
Um dia, uma coisa aproximou-se da janela.
O trabalho parou, eu ergui os olhos.
As cores ardiam. Tudo girava.
Saltámos um contra o outro, o solo e eu.
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Silêncio
Segue o teu caminho, eles foram enterrados…
Uma nuvem desliza diante do disco do sol.
A fome é um grande edifício
que se movimenta durante a noite.
No quarto abre-se o poço do elevador,
uma barra obscura contra as entranhas.
Flores na vala. Fanfarra e silêncio.
Segue o teu caminho, eles foram enterrados…
O talher de prata sobrevive entre imensos
cardumes,
nas profundezas onde o Atlântico é negro.
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Allegro
Depois de um dia negro, toco Haydn
e sinto um calor humilde nas mãos.
O teclado quer. Suaves marteladas batem.
O acorde é verde, animado e calmo.
O acorde diz que a liberdade existe
e que alguém não paga impostos ao imperador.
Enfio as mãos nos meus bolsos de Haydn,
imito alguém que contempla o mundo com
serenidade.
Iço a bandeira de Haydn - o que significa:
nós não nos rendemos. Antes queremos paz.
A música é uma casa de vidro na encosta
onde as pedras voam, onde as pedras rolam.
E as pedras rolam, rolam e atravessam-na
mas os vidros das janelas permanecem intactos.
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Madrigal
Herdei uma floresta sombria onde raramente vou.
Porém, há -de chegar o dia em que os mortos e os
vivos trocam de lugar. Então, a floresta
pôr-se-á em movimento. Nós não existimos sem
esperança. Os maiores crimes continuam por
esclarecer, apesar da mobilização de tantos
polícias. Do mesmo modo, há algures, na nossa
vida, um grande amor que fica por esclarecer.
Herdei uma floresta sombria, porém, hoje vou à
outra floresta, que é luminosa. Tudo está vivo,
tudo canta, serpenteia, abana e rasteja. É
Primavera, o ar é robusto. Fiz os meus exames na
universidade do esquecimento, tenho as mãos
vazias como uma camisa que seca no estendal.
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Despois de uma longa seca
Agora mesmo o verão é cinzento. Noites
estranhas.
A chuva desliza do céu
e poisa calmamente
como se se tratasse de surpreender alguém.
Os círculos da água formigam na superfície da
enseada.
Esta é a única superfície que existe –
a outra é altura e profundidade,
subida e descida.
Dois troncos de pinheiro
emergem e espraiam-se em longos e vazios sinais
de tambores.
Longe estão as cidades e o sol.
Ao cimo da erva alta, a trovoada.
É possível chamar a ilha das miragens.
É possível ouvir a voz cinzenta.
O ferro é mel para a trovoada.
É possível viver com o seu código.
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O sonho de Balakirev (1905)
O piano de cauda negro, a aranha cintilante
estremecia no meio da sua teia de música.
Na sala de concerto foi entoado um país
onde as pedras eram leves como orvalho.
Balakirev adormeceu com esta música
e sonhou com a carruagem do Czar
que rodava sobre os
paralelepípedos
sempre em frente, na escuridão crocitante.
Ele estava sozinho dentro da carruagem e olhava,
porém caminhava ao mesmo tempo lá fora.
Sabia que tinha sido uma longa viagem:
o seu relógio batia dias e não horas.
Havia um campo onde jazia um arado
e o arado era um pássaro caído.
Havia uma baía onde jazia um barco congelado,
as luzes apagadas, com gente no convés.
A carruagem deslizava sobre o gelo e as rodas
Ronronavam, ronronavam com um ruído de seda.
Um pequeno navio de
guerra:
Swastopol
Ele também estava a bordo. A tripulação
acercou-se:
«Se souberes tocar, não tens de morrer.»
Mostraram-lhe um instrumento estranho.
Parecia uma tuba ou um fonógrafo
ou parte de uma máquina desconhecida.
Paralisado e desamparado compreendeu: era
o instrumento que faz andar o navio de guerra.
Dirigiu-se ao próximo marinheiro. Ansioso
e gesticulando com as mãos, pediu:
«faz o sinal da cruz como eu, faz o sinal da
cruz! «
triste como um cego, o marinheiro olhou-o
esticou os braços e deixou cair a cabeça:
pendia como se estivesse cravado no ar.
Os tambores soaram. Os tambores soaram.
Aplausos! Balakirev acordou do seu sonho.
As asas dos aplausos crepitavam na sala.
Viu o homem do piano
de cauda pôr-se em pé.
Lá fora, as ruas obscurecidas pela greve.
Ligeiras, as carruagens passavam na escuridão.
(Mily Balakirev,
compositor russo, 1837-1910)
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O barco, a aldeia
Um barco de pesca português, azul, o sulco rola
um pedaço
pelo Atlântico.
Um ponto azul muito distante, porém, eu também
lá estou
- os seis a bordo não reparam que somos sete.
Eu vi como um barco destes é construído: jazia
como um grande alaúde sem cordas,
na cova da pobreza: a aldeia onde as pessoas
lavam
e lavam com raiva, paciência e tristeza.
Uma negridão de pessoas na praia. Uma reunião
que
foi dispersada, os alto-falantes foram levados.
Os soldados escoltavam o mercedes do orador por
entre a multidão.
as palavras batiam contra as paredes de chapa.
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Kyrie
Às vezes a minha vida fechava os olhos na
obscuridade.
A sensação de uma multidão que cega e inquieta
passava pelas ruas a caminho de um milagre
enquanto eu permanecia invisível e quieto.
Como a criança que adormece cheia de medo,
escutando os rudes passos do coração,
durante muito tempo, até que a manhã ponha os
seus raios
na fechadura e as portas da obscuridade se
abram.
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A casa Azul
É uma noite de sol radiante. Estou no bosque
denso e observo a minha casa com as suas paredes
de azul acinzentado. Como se tivesse morrido
recentemente e visse a casa a partir de um novo
ângulo.
Já está ali há mais de oitenta verões. A sua
madeira foi impregnada quatro vezes com alegria
e três com tristeza. Quando morre algum dos que
ali viveram, é pintada de novo. É o próprio
morto que pinta, sem pincel, por dentro.
Do outro lado, há um terreno aberto. Antes era
um jardim. agora está abandonado. Vagalhões
imóveis de erva daninha, pagodes de erva
daninha, textos que emanam, Upanishads de erva
daninha, uma frota viquingue de erva daninha,
cabeças de dragão, lanças, um império de erva
daninha!
Sobre o jardim abandonado esvoaça a sombra de um
boomerang que é atirado sempre e sempre. Isto
tem a ver com alguém que viveu na casa muito
antes de mim. Quase uma criança. Um impulso
liberta-se dele, um pensamento, um pensamento de
vontade: «criar… desenhar…» Para escapar ao seu
destino.
A casa faz lembrar um desenho infantil. Uma
infantilidade fugaz, que surgiu porque alguém,
precocemente, não aceitou o encargo de ser
criança. Abre a porta! Entra! Aqui dentro há
inquietação sob o teto e paz nas paredes. Sobre
a cama está pendurado um quadro de amador que
representa um barco com 17 velas, cristas de
velas espumosas e um vento que a moldura dourada
não consegue domar.
Aqui dentro é sempre muito cedo, antes da
encruzilhada, antes das decisões irrevogáveis.
Obrigado por esta vida! Porém, careço de
alternativas. Todos os esboços se querem tornar
reais.
Muito longe, na água, um motor dilata o
horizonte da noite de verão. A alegria e a
tristeza incham na lupa do orvalho. Na
realidade, pouco sabemos, mas suspeitamos: a
nossa vida tem um navio gémeo que segue uma rota
totalmente diferente. Enquanto o sol arde atrás
das ilhas.
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A janela aberta
Diante da janela aberta do primeiro
andar, uma manhã, fazia a barba.
Liguei a máquina de barbear
que começou a zumbir.
Zumbia cada vez mais alto.
Cresceu até ser um estrondo.
Cresceu até ser um helicóptero.
E uma voz, a do piloto, atravessou
O estrondo e gritou-me:
«abre os olhos!
é a última vez que vês isto!
Levantámos voo.
Voámos baixinho por cima do verão.
Todas as coisas que amei, quanto pesam?
Dúzias de dialetos na verdura.
E sobretudo o vermelho das casas de madeira.
Os escaravelhos brilham no estrume, ao sol.
Caves, arrancadas pela raiz, vinham
pelo ar.
Atividade.
As prensas rebolavam-se.
Nesse momento, as pessoas eram
as únicas que se mantinham quietas.
Faziam um minuto de silêncio.
E sobretudo os mortos do cemitério rural
estavam quietos
como quando em crianças nos púnhamos
em pose diante da máquina fotográfica.
Voa baixo!
Já não sabia para onde virava a cabeça
com o rosto dividido
como um cavalo.
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Do cimo da montanha
Estou na montanha e contemplo o fiorde.
Os barcos repousam na superfície do verão.
«Somos sonâmbulos. Luas à deriva.»
Eis o que as velas brancas me dizem.
«Vagueamos numa casa adormecida.
Abrimos as portas suavemente.
Apoiamo-nos no patamar da liberdade.»
Eis o que as velas brancas me dizem.
Uma vez vi como as vontades do mundo velejavam.
Seguiam o mesmo curso — uma única frota.
«Agora: caminhamos, tresmalhados. Sem
companheiros.»
Eis o que as velas brancas me dizem.
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Ao ar livre
I
Labirinto de outono tardio.
À entrada da floresta uma garrafa vazia.
Vá, entra. Nesta altura do ano a floresta é um
salão
calmo e abandonado.
Apenas alguns ruídos: como se alguém virasse
ramos,
meticulosamente, com uma pinça
ou uma dobradiça que choraminga, silenciosa,
num tronco vigoroso.
A geada soprou nos cogumelos e eles encolheram,
fazem lembrar objetos e peças de roupa
dos desaparecidos, que vamos encontrando.
Agora, que o crepúsculo cai,
temos de procurar uma saída. Encontrarmos de
novo
o ponto de orientação:
as alfaias enferrujadas no campo, e na outra
margem
do lago, a casa, um quadrado vermelho e
castanho,
robusto como um cubo de caldo.
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Solstício de inverno
Um brilho azul
irradia da minha roupa.
Solstício de Inverno.
Pandeiretas de gelos tilintantes.
Fecho os olhos.
Um mundo silencioso,
uma fenda
onde os mortos são passados
clandestinamente pelas fronteiras.
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Da ilha, 1860
Um dia, quando ela lavava roupa no passadiço,
o frio da baía subiu-lhe pelos braços
e entrou-lhe nas entranhas.
as lágrimas congelaram-se como óculos.
a ilha ergueu-se da erva
e a bandeira do arenque ondulava nas
profundezas.
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Noturno
Conduzo, de noite, através de uma cidade. As
casas surgem
no resplendor da luz. Estão acordadas. Têm sede.
Casas, palheiros, placas, veículos abandonados –
agora
vestem- se de vida. As pessoas dormem.
Algumas dormem descansadas, outras com os rostos
tensos
como se treinassem, duramente, para a
eternidade.
Embora o sono seja pesado, não ousam
libertarem-se de tudo.
Descansam como cancelas caídas quando o mistério
as atravessa.
Fora da cidade, o caminho alarga-se por entre as
árvores do bosque.
E as árvores, as árvores, silenciosas, em paz
umas com as outras.
Têm a cor teatral que tem o brilho do fogo.
Como são claras as suas folhas! Acompanham-me
até casa.
Estou deitado, quase a adormecer: vejo imagens
desconhecidas
e signos que, solitários, sobem atrás das
pupilas
e rascunham o muro da obscuridade. Na fissura,
entre o despertar
e o sonho, uma carta grande tenta passar, em vão
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O Céu inacabado
O desalento interrompe o seu curso
o medo interrompe o seu curso
o abutre interrompe o seu voo
a luz fervorosa derrama-se
até mesmo os fantasmas bebem um gole
e as nossas pinturas tornam-se visíveis,
animais ruivos de ateliês da idade do ferro
tudo começa a andar à volta
somos cem que caminham à volta do sol
cada pessoa é uma porta entreaberta
que leva a um quarto para todos
o abismo sob os nossos pés
a água brilha entre as árvores
a lagoa é uma janela que dá para a terra.
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Quatro haikus
A morte debruça-se
e escreve na face do mar.
a igreja respira ouro.
*
O telhado explodiu
e a morte consegue ver-me.
este rosto.
*
Grande e suave vento
da biblioteca do mar
aqui posso descansar.
*
As folhas douradas
são tão preciosas como
os manuscritos do Mar Morto.
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Degelo
O ar matinal distribuiu as suas cartas com selos
incandescentes.
a neve brilhou e todos os pesares se aliviaram:
um quilo
pesava apenas 700 gramas.
o sol estava alto por cima do gelo, planava
sobre o lugar, quente
e frio.
o vento avançava lentamente, como se empurrasse
um
carrinho de bebé.
as famílias saíram, viram o céu aberto pela
primeira vez desde
há muito tempo.
estávamos no primeiro capitulo de um conto muito
intenso.
o sol agarrou-se a todos os gorros de pele como
o pólen
aos zângões.
e a luz do sol agarrou-se ao nome Inverno e
ficou ali
até que o inverno passasse.
na neve, uma natureza morta de troncos de árvore
pôs-me
pensativo.
" acompanhais-me até à minha infância? ",
perguntei,
responderam: " sim. "
no matagal ouvia-se um sussurro de vozes, um
novo idioma,
os vocábulos eram céu azul,
as consoantes, ramos negros, e falavam em
segredo
por cima da neve.
porém: o avião a jato, fazendo reverências com a
sua túnica
de estrondo,
fazia com que o silêncio da terra crescesse em
intensidade.
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Rabiscos de fogo
Durante os meses obscuros, a minha vida só
brilhava
quando fazia amor contigo.
como o pirilampo que se acende e apaga, apaga e
acende
e por um instante podemos seguir o seu caminho
na noite obscura do olival.
durante os meses obscuros, a minha alma estava
encolhida e inerte,
mas o meu corpo caminhava na tua direção.
o céu da noite rugia.
clandestinamente ordenhávamos o cosmos e
sobrevivíamos.
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Tempestade
De repente, o caminhante dá com os olhos no
velho
carvalho, que faz lembrar um alce empedernido
com uma coroa enorme diante do mar de setembro.
A fortaleza verde escura.
Tempestade do Norte. Nesta altura amadurecem
as bagas da tramazeira. Acordados na escuridão
ouvimos as constelações, por cima das árvores,
nas suas caixas, batendo com os pés.
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Em julho de 90
Estava num enterro
e sentia que o morto
lia os meus pensamentos
melhor do que eu mesmo.
O órgão calado, as aves cantavam.
A cova debaixo do sol.
A voz do meu amigo permanecia
no reverso dos minutos.
Regressei a casa reconfortado
pela claridade daquele dia de verão,
a chuva e o silêncio,
reconfortado pela lua.
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Bálticos
I
Era antes do tempo dos postes da antena.
O meu avô era um jovem piloto. Na sua agenda
apontava os navios
que pilotava –
nomes, destinos, calados.
alguns exemplares de 1884:
Vapor Tigre Capitão Rowan.
16 pés.
Hull Gefle Furusund,
Brick Ocean
Capitão Andersen.
8 pés. Sandefjord Hernösand Furusund,
Vapor São Petersburgo, Capitão Libenberg. 11
pés. Stettin Libau,
Sandhamm.
Ele guiava-os até ao Báltico através do
espantoso labirinto de ilhas e água. E aqueles
que se encontravam no mesmo casco
e deixavam levar durante algumas horas ou dias,
até que ponto
travavam conhecimento uns com os outros?
Conversas em inglês mal soletrado: entendimentos
e mal-entendidos,
mas poucas mentiras conscientes.
Até que ponto travavam conhecimento uns com os
outros?
Quando o nevoeiro era cerrado: visibilidade
reduzida, velocidade limitada.
De uma passada, a península saía da
invisibilidade e aproximava-se muito.
Sinais e gritos de dois em dois minutos. Os
olhos liam a direito na invisibilidade.
(Teria ele o labirinto na cabeça?)
Os minutos passavam.
Bancos de areia e ilhotas rochosas, memorizadas
como salmos.
E aquela sensação: "este é o ponto exato " que
temos de manter como quem leva uma vasilha
repleta que não se pode entornar.
Um olhar lançado à casa das máquinas.
A máquina – compound, robusta como o coração
humano, trabalhava com gestos delicados e
elásticos, acrobatas de aço, e os olores subiam
como de uma cozinha.
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Cai neve
Os enterros aproximam-se
cada vez mais densos
como sinais de trânsito
quando nos aproximamos de uma cidade
o olhar de mil pessoas
na terra das longas sombras
uma ponte é construída
lentamente
a direito no espaço.
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Novembro
Quando o esbirro se aborrece, torna-se perigoso.
O céu enrola-se.
Ouvem-se pancadas de cela em cela
e o espaço jorra do
gelo.
Algumas pedras brilham como luas cheias.
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Assinaturas
Tenho de atravessar
o limiar obscuro.
Uma sala.
Branco, o documento brilha
com muitas sombras que se movimentam.
Todas o querem assinar.
Até que a luz me agarra
e dobra o tempo.
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Sob pressão
O barulho do motor do céu azul é ensurdecedor.
Vivemos trementes neste local de trabalho
onde as profundezas do oceano podem aparecer de
repente
-
o telefone e as
conchas sussurram.
só podemos admirar a beleza de viés, à pressa.
O grão denso no campo, muitas cores num fluxo
amarelo.
As sombras inquietas na minha cabeça são
atiradas para ali.
Elas querem meter-se no grão e transformar- se
em ouro.
A escuridão cai. À meia noite vou para a cama.
O pequeno barco abandona o barco maior.
Estamos sozinhos na
água.
O casco obscuro da sociedade navega à deriva
cada
vez mais distante.
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Cara a cara
Em fevereiro a vida estava parada.
Os pássaros voavam a contragosto e a alma
roçava-se na paisagem como um barco
que se esfrega ao passadiço onde está amarrado.
As árvores estavam de costas para aqui.
Talos mortos mediam a profundidade da neve.
Pegadas envelheciam na neve gelada.
Sob um toldo, a linguagem definhava.
Um dia, uma coisa aproximou-se da janela.
O trabalho parou, eu ergui os olhos.
As cores ardiam. Tudo girava.
Saltámos um contra o outro, o solo e eu.
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Afundado na europa
Eu, casco
obscuro que flutua entre duas comportas,
descanso na
cama de hotel enquanto, à volta, a cidade
acorda.
O barulho
silencioso e a luz cinzenta entram
e erguem-me,
lentamente, até ao próximo nível: a manhã.
Horizonte
escutado. Eles querem dizer algo, os mortos.
Fumam, mas
não comem. Não respiram, mas resta-lhes a voz.
Vou andar
depressa pelas ruas como um deles.
A catedral
enegrecida, pesada como uma lua, faz fluxo e
refluxo.
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Silêncio
Segue o teu
caminho, eles foram enterrados…
Uma nuvem
desliza diante do disco do sol.
A fome é um
grande edifício
que se
movimenta durante a noite.
No quarto
abre-se o poço do elevador,
uma barra
obscura contra as entranhas.
Flores na
vala. Fanfarra e silêncio.
Segue o teu
caminho, eles foram enterrados…
O talher de
prata sobrevive entre imensos cardumes,
nas
profundezas onde o Atlântico é negro.
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Esmirna
Esmirna às
três da tarde
Logo em
frente, na rua quase vazia,
dois
pedintes, um deles, sem pernas,
é levado às
costas pelo outro.
Estiveram
ali, durante um instante – como nos caminhos
da meia
noite um animal encandeado, olhando fixamente
os faróis
dos carros – e seguiram o seu caminho.
Moviam-se,
como rapazes no recreio de uma escola.
rápidos,
atravessaram a estrada, enquanto as miríades dos
relógios
do calor do
meio-dia soavam no espaço.
O azul
passou resvalando pelo ancoradouro e cintilava.
O negro
rastejou e encolheu - se, espreitando por entre
as pedras.
O branco
cresceu até ser uma tempestade nos olhos.
Quando as
três da tarde foram pisadas pelos cascos
e a
obscuridade palpitava na parede da luz,
a cidade
rastejava diante das portas do mar
e reluzia
nos binóculos do abutre.
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Tomas Tranströmer
nasceu a 15 de abril de 1931 em
Estocolmo, vindo a falecer na mesma
cidade a 26 de março de 2015.
Estudou literatura e história das
religiões, assim como psicologia.
Começou a escrever poemas durante o
seu tempo de estudante. Em 1954 foi
publicado o seu primeiro livro:
17 Dikter
(17 poemas).
Tranströmer, cujos poemas se
encontram traduzidos em muitas
línguas, é considerado um dos mais
importantes poetas suecos.
A sua
poesia (bastante próxima da
poésie
pure
de um Paul Valéry) "aposta"
sobretudo, na intensidade e, a
partir de uma linguagem que,
com o passar dos anos, se foi
tornando cada vez mais lacónica, de
imagens concentradas, mas sempre
fulgurante e expressiva, consegue
provocar no leitor uma enorme
sensação de deslumbramento e
surpresa, podendo ser, em muitos
casos, considerada surreal.
A poesia de Tranströmer, embora as
influências que vão de Horácio aos
expressionistas e surrealistas, é
muito peculiar.
Como o
poeta/ ensaísta Harald Hartung
repara:
o universo poético de Tomas
Tranströmer não é deste mundo, ele é
antes um espaço
imaginário que projeta uma luz
fresca, mas intensa, sobre os
objetos e os homens.
Em 1990 um acidente vascular
cerebral deixa-o, em parte, afásico
e hemiplégico. Depois de uma longa
reabilitação, começa a escrever
novamente com a ajuda de sua esposa.
A partir de então a sua poesia torna
-se mais concisa, abordando não
raras vezes a relação do poeta com a
linguagem.
O seu último livro,
Den stora
gåtan (o
grande mistério), um livro com 5
poemas e haikus foi editado em 2004.
A partir daí não publicou
mais nada.
Em 2011
foi galardoado com Prémio Nobel da
Literatura:
porque
através das suas imagens condensadas
e translúcidas nos permite
um novo acesso à realidade.
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