Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº 56. janeiro-fevereiro 2016



TOMAS TRANSTRÖMER
O sonho de Balakirev e outros poemas

Transmudações de Luís Costa

Tomas Tranströmer (Estocolmo, 15 de abril de 1931 – Estocolmo, 26 de março de 2015).  É considerado um dos maiores poetas suecos. Recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 2011.
 

Caprichos

 

Escurece em Huelva: palmeiras cobertas de fuligem

e os apressados morcegos prateado - claros

do apito do comboio.

 

As ruas encheram-se de gente.

E a senhora, que caminha apressada por entre a multidão,

pesa cautelosamente a última luz do dia na balança dos seus olhos.

As janelas dos escritórios abertas. Ainda se ouve,

como o cavalo bate com os cascos lá dentro.

 

O velho cavalo com cascos de carimbo.

As ruas só se esvaziam depois da meia-noite.

Finalmente, todos os escritórios ficam azuis.

 

No espaço, lá em cima:

troteando em silêncio, cintilante e negro,

despercebido e solto,

o cavaleiro derrubado:

 

uma nova constelação a que dou o nome Cavalo.

Leonardo da Vinci

Abril e silêncio

 

Primavera consternada.

Uma valeta de veludo negro

rasteja ao meu lado,

sem reflexos.

 

As únicas coisas que brilham

são as flores amarelas.

 

A minha sombra leva-me

como um violino

no seu estojo negro.

 

Tudo o que queria dizer

cintila, inacessível,

como a prata

no penhorista.

Via – férrea

 

Duas da noite: luz da lua. o comboio deteve-se

no meio do campo. Ao longe, pontos de luz numa cidade

que brilha, friamente, na orla que os olhos não alcançam.

 

Como alguém que cai num sono tão profundo

que não se recorda de ter estado ali

quando regressa ao seu quarto.

 

Ou alguém que cai numa doença tão profunda

que tudo o que eram os seus dias se converte em pontos cintilantes,

um enxame,

pequeno e frio, que os olhos não alcançam.

 

O comboio continua parado.

Duas horas: o brilho intenso da lua. Poucas estrelas.

Em outubro

 

O mar de outubro brilha, frio,

com a sua barbatana de miragens.

 

Nada ficou de tudo aquilo que fazia lembrar a clara

vertigem dos barcos à vela.

 

Luz de âmbar sobre a cidade.

Todos os ruídos numa fuga vagarosa.

 

Um hieróglifo de latidos de um cão,

desenhado sobre o jardim

 

onde os frutos amarelos iludem a árvore

e se deixam cair. 

Sesta

 

Pentecostes de pedras. E com línguas faiscantes...

A cidade, sem peso, no espaço do meio-dia.

Inumação na luz fremente. O tambor que abafa

Os punhos palpitantes da eternidade enclausurada.

 

A águia sobe e sobe sobre os que dormem.

Sono onde a pedra do moinho roda como o trovão.

Passos de cavalos com os olhos vendados.

Os punhos palpitantes da eternidade enclausurada.

 

Os que dormem pendem como pesos no relógio do tirano.

A águia plana, morta, nas cascatas que jorram do sol

E ecoam no tempo, como na urna de Lázaro

Os punhos palpitantes da eternidade enclausurada. 

Página do livro noturno

 

Numa noite de maio fui a terra

o brilho da lua era fresco,

a erva e as flores, cinzentas,

mas os odores, verdes.

 

Deslizei pela encosta

na noite daltónica

enquanto as pedras brancas

apontavam para a lua.

 

Um período de tempo

com poucos minutos de comprimento

cinquenta e oito anos de largura.

 

Atrás de mim,

para além da água que brilhava como chumbo,

estava a outra costa

e aqueles que a governavam.

 

Homens com um futuro

em vez de um rosto. 

 

Nattbokblad

 

Jag landsteg en majnatt

i ett kyligt månsken

där gräs och blommor var grå

men doften grön.

 

Jag gled uppför sluttningen

i den färgblinda natten

medan vita stenar

signalerade till månen.

 

En tidrymd

några minuter lång

femtioåtta år bred.

 

Och bakom mig

bortom de blyskimrande vattnen

fanns den andra kusten

och de som härskade.

 

Människor med framtid

i stället för ansikten. 

Cara a cara

 

Em fevereiro a vida estava parada.

Os pássaros voavam a contragosto e a alma

roçava-se na paisagem como um barco

que se esfrega ao passadiço onde está amarrado.

 

As árvores estavam de costas para aqui.

Talos mortos mediam a profundidade da neve.

Pegadas envelheciam na neve gelada.

Sob um toldo, a linguagem definhava.

 

Um dia, uma coisa aproximou-se da janela.

O trabalho parou, eu ergui os olhos.

As cores ardiam. Tudo girava.

Saltámos um contra o outro, o solo e eu. 


Silêncio

 

Segue o teu caminho, eles foram enterrados…

Uma nuvem desliza diante do disco do sol.

 

A fome é um grande edifício

que se movimenta durante a noite.

 

No quarto abre-se o poço do elevador,

uma barra obscura contra as entranhas.

 

Flores na vala. Fanfarra e silêncio.

Segue o teu caminho, eles foram enterrados…

 

O talher de prata sobrevive entre imensos cardumes,

nas profundezas onde o Atlântico é negro.

 

Allegro

 

Depois de um dia negro, toco Haydn

e sinto um calor humilde nas mãos.

 

O teclado quer. Suaves marteladas batem.

O acorde é verde, animado e calmo.

 

O acorde diz que a liberdade existe

e que alguém não paga impostos ao imperador.

 

Enfio as mãos nos meus bolsos de Haydn,

imito alguém que contempla o mundo com serenidade.

 

Iço a bandeira de Haydn - o que significa:

nós não nos rendemos. Antes queremos paz.

 

A música é uma casa de vidro na encosta

onde as pedras voam, onde as pedras rolam.

 

E as pedras rolam, rolam e atravessam-na

mas os vidros das janelas permanecem intactos. 

Madrigal 

Herdei uma floresta sombria onde raramente vou. Porém, há -de chegar o dia em que os mortos e os vivos trocam de lugar. Então, a floresta pôr-se-á em movimento. Nós não existimos sem esperança. Os maiores crimes continuam por esclarecer, apesar da mobilização de tantos polícias. Do mesmo modo, há algures, na nossa vida, um grande amor que fica por esclarecer. Herdei uma floresta sombria, porém, hoje vou à outra floresta, que é luminosa. Tudo está vivo, tudo canta, serpenteia, abana e rasteja. É Primavera, o ar é robusto. Fiz os meus exames na universidade do esquecimento, tenho as mãos vazias como uma camisa que seca no estendal.

Despois de uma longa seca 

Agora mesmo o verão é cinzento. Noites estranhas.

A chuva desliza do céu

e poisa calmamente

como se se tratasse de surpreender alguém.

 

Os círculos da água formigam na superfície da enseada.

Esta é a única superfície que existe –

a outra é altura e profundidade,

subida e descida.

 

Dois troncos de pinheiro

emergem e espraiam-se em longos e vazios sinais de tambores.

Longe estão as cidades e o sol.

Ao cimo da erva alta, a trovoada.

 

É possível chamar a ilha das miragens.

É possível ouvir a voz cinzenta.

O ferro é mel para a trovoada.

É possível viver com o seu código.

 

O sonho de Balakirev (1905) 

 

O piano de cauda negro, a aranha cintilante

estremecia no meio da sua teia de música.

 

Na sala de concerto foi entoado um país

onde as pedras eram leves como orvalho.

 

Balakirev adormeceu com esta música

e sonhou com a carruagem do Czar

 

que rodava sobre os paralelepípedos  

sempre em frente, na escuridão crocitante.

 

Ele estava sozinho dentro da carruagem e olhava,

porém caminhava ao mesmo tempo lá fora.

 

Sabia que tinha sido uma longa viagem:

o seu relógio batia dias e não horas.

 

Havia um campo onde jazia um arado

e o arado era um pássaro caído.

 

Havia uma baía onde jazia um barco congelado,

as luzes apagadas, com gente no convés.

 

A carruagem deslizava sobre o gelo e as rodas

Ronronavam, ronronavam com um ruído de seda.

 

Um pequeno navio de guerra: Swastopol

Ele também estava a bordo. A tripulação acercou-se:

 

«Se souberes tocar, não tens de morrer.»

Mostraram-lhe um instrumento estranho.

 

Parecia uma tuba ou um fonógrafo

ou parte de uma máquina desconhecida.

 

Paralisado e desamparado compreendeu: era

o instrumento que faz andar o navio de guerra.

 

Dirigiu-se ao próximo marinheiro. Ansioso

e gesticulando com as mãos, pediu:

 

«faz o sinal da cruz como eu, faz o sinal da cruz! «

triste como um cego, o marinheiro olhou-o

 

esticou os braços e deixou cair a cabeça:

pendia como se estivesse cravado no ar.

 

Os tambores soaram. Os tambores soaram.

Aplausos! Balakirev acordou do seu sonho.

 

As asas dos aplausos crepitavam na sala.

Viu o homem do piano de cauda pôr-se em pé. 

 

Lá fora, as ruas obscurecidas pela greve.

Ligeiras, as carruagens passavam na escuridão.

                                                             (Mily Balakirev,                                                             compositor russo, 1837-1910)

 

O barco, a aldeia

 

Um barco de pesca português, azul, o sulco rola um pedaço

pelo Atlântico.

Um ponto azul muito distante, porém, eu também lá estou

- os seis a bordo não reparam que somos sete.

 

Eu vi como um barco destes é construído: jazia

como um grande alaúde sem cordas,

na cova da pobreza: a aldeia onde as pessoas lavam

e lavam com raiva, paciência e tristeza.

 

Uma negridão de pessoas na praia. Uma reunião que

foi dispersada, os alto-falantes foram levados.

Os soldados escoltavam o mercedes do orador por entre a multidão.

as palavras batiam contra as paredes de chapa.

Kyrie 

 

Às vezes a minha vida fechava os olhos na obscuridade.

A sensação de uma multidão que cega e inquieta

passava pelas ruas a caminho de um milagre

enquanto eu permanecia invisível e quieto.

 

Como a criança que adormece cheia de medo,

escutando os rudes passos do coração,

durante muito tempo, até que a manhã ponha os seus raios

na fechadura e as portas da obscuridade se abram.

A casa Azul 

É uma noite de sol radiante. Estou no bosque denso e observo a minha casa com as suas paredes de azul acinzentado. Como se tivesse morrido recentemente e visse a casa a partir de um novo ângulo.

Já está ali há mais de oitenta verões. A sua madeira foi impregnada quatro vezes com alegria e três com tristeza. Quando morre algum dos que ali viveram, é pintada de novo. É o próprio morto que pinta, sem pincel, por dentro.

Do outro lado, há um terreno aberto. Antes era um jardim. agora está abandonado. Vagalhões imóveis de erva daninha, pagodes de erva daninha, textos que emanam, Upanishads de erva daninha, uma frota viquingue de erva daninha, cabeças de dragão, lanças, um império de erva daninha!

Sobre o jardim abandonado esvoaça a sombra de um boomerang que é atirado sempre e sempre. Isto tem a ver com alguém que viveu na casa muito antes de mim. Quase uma criança. Um impulso liberta-se dele, um pensamento, um pensamento de vontade: «criar… desenhar…» Para escapar ao seu destino.

A casa faz lembrar um desenho infantil. Uma infantilidade fugaz, que surgiu porque alguém, precocemente, não aceitou o encargo de ser criança. Abre a porta! Entra! Aqui dentro há inquietação sob o teto e paz nas paredes. Sobre a cama está pendurado um quadro de amador que representa um barco com 17 velas, cristas de velas espumosas e um vento que a moldura dourada não consegue domar.

Aqui dentro é sempre muito cedo, antes da encruzilhada, antes das decisões irrevogáveis. Obrigado por esta vida! Porém, careço de alternativas. Todos os esboços se querem tornar reais.

Muito longe, na água, um motor dilata o horizonte da noite de verão. A alegria e a tristeza incham na lupa do orvalho. Na realidade, pouco sabemos, mas suspeitamos: a nossa vida tem um navio gémeo que segue uma rota totalmente diferente. Enquanto o sol arde atrás das ilhas.

A janela aberta

 

Diante da janela aberta do primeiro

andar, uma manhã, fazia a barba.

Liguei a máquina de barbear

que começou a zumbir.

Zumbia cada vez mais alto.

Cresceu até ser um estrondo.

Cresceu até ser um helicóptero.

E uma voz, a do piloto, atravessou

O estrondo e gritou-me:

«abre os olhos!

é a última vez que vês isto!

Levantámos voo.

Voámos baixinho por cima do verão.

Todas as coisas que amei, quanto pesam?

Dúzias de dialetos na verdura.

E sobretudo o vermelho das casas de madeira.

Os escaravelhos brilham no estrume, ao sol.

Caves, arrancadas pela raiz, vinham

pelo ar.

Atividade.

As prensas rebolavam-se.

Nesse momento, as pessoas eram

as únicas que se mantinham quietas.

Faziam um minuto de silêncio.

E sobretudo os mortos do cemitério rural

estavam quietos

como quando em crianças nos púnhamos

em pose diante da máquina fotográfica.

Voa baixo!

Já não sabia para onde virava a cabeça

com o rosto dividido

como um cavalo.

Do cimo da montanha

 

Estou na montanha e contemplo o fiorde.

Os barcos repousam na superfície do verão.

«Somos sonâmbulos. Luas à deriva.»

Eis o que as velas brancas me dizem.

 

«Vagueamos numa casa adormecida.

Abrimos as portas suavemente.

Apoiamo-nos no patamar da liberdade.»

Eis o que as velas brancas me dizem.

 

Uma vez vi como as vontades do mundo velejavam.

Seguiam o mesmo curso — uma única frota.

«Agora: caminhamos, tresmalhados. Sem companheiros.»

Eis o que as velas brancas me dizem. 

Ao ar livre

 

I

 

Labirinto de outono tardio.

À entrada da floresta uma garrafa vazia.

Vá, entra. Nesta altura do ano a floresta é um salão

calmo e abandonado.

Apenas alguns ruídos: como se alguém virasse ramos,

meticulosamente, com uma pinça

ou uma dobradiça que choraminga, silenciosa,

num tronco vigoroso.

A geada soprou nos cogumelos e eles encolheram,

fazem lembrar objetos e peças de roupa

dos desaparecidos, que vamos encontrando.

Agora, que o crepúsculo cai,

temos de procurar uma saída. Encontrarmos de novo

o ponto de orientação:

as alfaias enferrujadas no campo, e na outra margem

do lago, a casa, um quadrado vermelho e castanho,

robusto como um cubo de caldo.

Solstício de inverno

 

Um brilho azul

irradia da minha roupa.

Solstício de Inverno.

Pandeiretas de gelos tilintantes.

Fecho os olhos.

Um mundo silencioso,

uma fenda

onde os mortos são passados

clandestinamente pelas fronteiras.

Da ilha, 1860

 

Um dia, quando ela lavava roupa no passadiço,

 

o frio da baía subiu-lhe pelos braços

e entrou-lhe nas entranhas.

 

as lágrimas congelaram-se como óculos.

 

a ilha ergueu-se da erva

e a bandeira do arenque ondulava nas profundezas.

Noturno

 

Conduzo, de noite, através de uma cidade. As casas surgem

no resplendor da luz. Estão acordadas. Têm sede.

Casas, palheiros, placas, veículos abandonados – agora

vestem- se de vida. As pessoas dormem.

 

Algumas dormem descansadas, outras com os rostos tensos

como se treinassem, duramente, para a eternidade.

Embora o sono seja pesado, não ousam libertarem-se de tudo.

Descansam como cancelas caídas quando o mistério as atravessa.

 

Fora da cidade, o caminho alarga-se por entre as árvores do bosque.

E as árvores, as árvores, silenciosas, em paz umas com as outras.

Têm a cor teatral que tem o brilho do fogo.

Como são claras as suas folhas! Acompanham-me até casa.

 

Estou deitado, quase a adormecer: vejo imagens desconhecidas

e signos que, solitários, sobem atrás das pupilas

e rascunham o muro da obscuridade. Na fissura, entre o despertar

e o sonho, uma carta grande tenta passar, em vão

O Céu inacabado

 

O desalento interrompe o seu curso

o medo interrompe o seu curso

o abutre interrompe o seu voo

 

a luz fervorosa derrama-se

até mesmo os fantasmas bebem um gole

 

e as nossas pinturas tornam-se visíveis,

animais ruivos de ateliês da idade do ferro

 

tudo começa a andar à volta

somos cem que caminham à volta do sol

 

cada pessoa é uma porta entreaberta

que leva a um quarto para todos

 

o abismo sob os nossos pés

 

a água brilha entre as árvores

 

a lagoa é uma janela que dá para a terra.

Quatro haikus

A morte debruça-se

e escreve na face do mar.

a igreja respira ouro.

 

*

 

O telhado explodiu

e a morte consegue ver-me.

este rosto.

 

*

 

Grande e suave vento

da biblioteca do mar

aqui posso descansar.

 

*

As folhas douradas

são tão preciosas como

os manuscritos do Mar Morto.

Degelo

 

O ar matinal distribuiu as suas cartas com selos incandescentes.

a neve brilhou e todos os pesares se aliviaram: um quilo

pesava apenas 700 gramas.

 

o sol estava alto por cima do gelo, planava sobre o lugar, quente

e frio.

o vento avançava lentamente, como se empurrasse um

carrinho de bebé.

 

as famílias saíram, viram o céu aberto pela primeira vez desde

há muito tempo.

estávamos no primeiro capitulo de um conto muito

intenso.

 

o sol agarrou-se a todos os gorros de pele como o pólen

aos zângões.

e a luz do sol agarrou-se ao nome Inverno e ficou ali

até que o inverno passasse.

 

na neve, uma natureza morta de troncos de árvore pôs-me

pensativo.

" acompanhais-me até à minha infância? ", perguntei,

responderam: " sim. "

 

no matagal ouvia-se um sussurro de vozes, um novo idioma,

os vocábulos eram céu azul,

as consoantes, ramos negros, e falavam em segredo

por cima da neve.

 

porém: o avião a jato, fazendo reverências com a sua túnica

de estrondo,

fazia com que o silêncio da terra crescesse em intensidade.

Rabiscos de fogo 

 

Durante os meses obscuros, a minha vida só brilhava

quando fazia amor contigo.

como o pirilampo que se acende e apaga, apaga e acende

e por um instante podemos seguir o seu caminho

na noite obscura do olival.

 

durante os meses obscuros, a minha alma estava encolhida e inerte,

mas o meu corpo caminhava na tua direção.

o céu da noite rugia.

clandestinamente ordenhávamos o cosmos e sobrevivíamos.

Tempestade

 

De repente, o caminhante dá com os olhos no velho

carvalho, que faz lembrar um alce empedernido

com uma coroa enorme diante do mar de setembro.

A fortaleza verde escura.

 

Tempestade do Norte. Nesta altura amadurecem

as bagas da tramazeira. Acordados na escuridão

ouvimos as constelações, por cima das árvores,

nas suas caixas, batendo com os pés.

Em julho de 90

 

Estava num enterro

e sentia que o morto

lia os meus pensamentos

melhor do que eu mesmo.

 

O órgão calado, as aves cantavam.

A cova debaixo do sol.

A voz do meu amigo permanecia

no reverso dos minutos.

 

Regressei a casa reconfortado

pela claridade daquele dia de verão,

a chuva e o silêncio,

reconfortado pela lua.

Bálticos

 

I

 

Era antes do tempo dos postes da antena.

O meu avô era um jovem piloto. Na sua agenda apontava os navios

que pilotava –

nomes, destinos, calados.

alguns exemplares de 1884:

Vapor Tigre Capitão Rowan. 16 pés. Hull Gefle Furusund,

Brick Ocean Capitão Andersen. 8 pés. Sandefjord Hernösand Furusund,

Vapor São Petersburgo, Capitão Libenberg. 11 pés. Stettin Libau,

Sandhamm.

Ele guiava-os até ao Báltico através do espantoso labirinto de ilhas e água. E aqueles que se encontravam no mesmo casco

e deixavam levar durante algumas horas ou dias, até que ponto

travavam conhecimento uns com os outros?

Conversas em inglês mal soletrado: entendimentos e mal-entendidos,

mas poucas mentiras conscientes.

Até que ponto travavam conhecimento uns com os outros?

Quando o nevoeiro era cerrado: visibilidade reduzida, velocidade limitada.

De uma passada, a península saía da invisibilidade e aproximava-se muito.

Sinais e gritos de dois em dois minutos. Os olhos liam a direito na invisibilidade.

(Teria ele o labirinto na cabeça?)

Os minutos passavam.

Bancos de areia e ilhotas rochosas, memorizadas como salmos.

E aquela sensação: "este é o ponto exato " que temos de manter como quem leva uma vasilha repleta que não se pode entornar.

Um olhar lançado à casa das máquinas.

A máquina – compound, robusta como o coração humano, trabalhava com gestos delicados e elásticos, acrobatas de aço, e os olores subiam como de uma cozinha. 

Cai neve

 

Os enterros aproximam-se

cada vez mais densos

como sinais de trânsito

quando nos aproximamos de uma cidade

 

o olhar de mil pessoas

na terra das longas sombras

 

uma ponte é construída

lentamente

a direito no espaço. 

Novembro

 

Quando o esbirro se aborrece, torna-se perigoso.

O céu enrola-se.

 

Ouvem-se pancadas de cela em cela

e o espaço jorra do gelo.  

 

Algumas pedras brilham como luas cheias.

Assinaturas

 

Tenho de atravessar

o limiar obscuro.

Uma sala.

Branco, o documento brilha

com muitas sombras que se movimentam.

Todas o querem assinar.

 

Até que a luz me agarra

e dobra o tempo. 

Sob pressão

 

O barulho do motor do céu azul é ensurdecedor.

Vivemos trementes neste local de trabalho

onde as profundezas do oceano podem aparecer de repente

-  o telefone e as conchas sussurram.   

 

só podemos admirar a beleza de viés, à pressa.

O grão denso no campo, muitas cores num fluxo amarelo.

As sombras inquietas na minha cabeça são atiradas para ali.

Elas querem meter-se no grão e transformar- se em ouro.

 

A escuridão cai. À meia noite vou para a cama.

O pequeno barco abandona o barco maior.

Estamos sozinhos na água. 

O casco obscuro da sociedade navega à deriva

                                      cada vez mais distante. 

Cara a cara

 

Em fevereiro a vida estava parada.

Os pássaros voavam a contragosto e a alma

roçava-se na paisagem como um barco

que se esfrega ao passadiço onde está amarrado.

 

As árvores estavam de costas para aqui.

Talos mortos mediam a profundidade da neve.

Pegadas envelheciam na neve gelada.

Sob um toldo, a linguagem definhava.

 

Um dia, uma coisa aproximou-se da janela.

O trabalho parou, eu ergui os olhos.

As cores ardiam. Tudo girava.

Saltámos um contra o outro, o solo e eu. 

Afundado na europa

 

Eu, casco obscuro que flutua entre duas comportas,

descanso na cama de hotel enquanto, à volta, a cidade acorda.

O barulho silencioso e a luz cinzenta entram

e erguem-me, lentamente, até ao próximo nível: a manhã.

 

Horizonte escutado. Eles querem dizer algo, os mortos.

Fumam, mas não comem. Não respiram, mas resta-lhes a voz.

Vou andar depressa pelas ruas como um deles.

A catedral enegrecida, pesada como uma lua, faz fluxo e refluxo.

 

Silêncio

 

Segue o teu caminho, eles foram enterrados…

Uma nuvem desliza diante do disco do sol.

 

A fome é um grande edifício

que se movimenta durante a noite.

 

No quarto abre-se o poço do elevador,

uma barra obscura contra as entranhas.

 

Flores na vala. Fanfarra e silêncio.

Segue o teu caminho, eles foram enterrados…

 

O talher de prata sobrevive entre imensos cardumes,

nas profundezas onde o Atlântico é negro.

Esmirna

 

Esmirna às três da tarde

Logo em frente, na rua quase vazia,

dois pedintes, um deles, sem pernas,

é levado às costas pelo outro.

 

Estiveram ali, durante um instante – como nos caminhos

da meia noite um animal encandeado, olhando fixamente

os faróis dos carros – e seguiram o seu caminho.

 

Moviam-se, como rapazes no recreio de uma escola.

rápidos, atravessaram a estrada, enquanto as miríades dos relógios

do calor do meio-dia soavam no espaço.

 

O azul passou resvalando pelo ancoradouro e cintilava.

O negro rastejou e encolheu - se, espreitando por entre as pedras.

O branco cresceu até ser uma tempestade nos olhos.

 

Quando as três da tarde foram pisadas pelos cascos

e a obscuridade palpitava na parede da luz,

a cidade rastejava diante das portas do mar

 

e reluzia nos binóculos do abutre.

 
 
Tomas Tranströmer nasceu a 15 de abril de 1931 em Estocolmo, vindo a falecer na mesma cidade a 26 de março de 2015. Estudou literatura e história das religiões, assim como psicologia. Começou a escrever poemas durante o seu tempo de estudante. Em 1954 foi publicado o seu primeiro livro: 17 Dikter (17 poemas).
 
Tranströmer, cujos poemas se encontram traduzidos em muitas línguas, é considerado um dos mais importantes poetas suecos. A sua poesia (bastante próxima da poésie pure de um Paul Valéry) "aposta" sobretudo, na intensidade e, a partir de uma linguagem que, com o passar dos anos, se foi tornando cada vez mais lacónica, de imagens concentradas, mas sempre fulgurante e expressiva, consegue provocar no leitor uma enorme sensação de deslumbramento e surpresa, podendo ser, em muitos casos, considerada surreal.
 
A poesia de Tranströmer, embora as influências que vão de Horácio aos expressionistas e surrealistas, é muito peculiar. Como o poeta/ ensaísta Harald Hartung repara: 
o universo poético de Tomas Tranströmer não é deste mundo, ele é antes um espaço
imaginário que projeta uma luz fresca, mas intensa, sobre os objetos e os homens.
 
Em 1990 um acidente vascular cerebral deixa-o, em parte, afásico e hemiplégico. Depois de uma longa reabilitação, começa a escrever novamente com a ajuda de sua esposa. A partir de então a sua poesia torna -se mais concisa, abordando não raras vezes a relação do poeta com a linguagem. O seu último livro, Den stora gåtan (o grande mistério), um livro com 5 poemas e haikus foi editado em 2004. A partir daí não publicou mais nada.
 
Em 2011 foi galardoado com Prémio Nobel da Literatura: porque através das suas imagens condensadas e translúcidas nos permite
um novo acesso à realidade.
 
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