Revista TriploV de Artes, Letras & Ciências .
ns . nº 53 . agosto-setembro 2015 .índice


 

RAFAEL GOMES FILIPE

Dandismo e regime do olhar na poesia de Cristino Cortes

 
Rafael Gomes Filipe (Portugal). Assessor principal do quadro do Ministério da Educação, professor do ensino superior, crítico literário, tradutor e prefaciador de obras literárias e científicas. A sua investigação tem-se centrado, cada vez mais, na área da cultura alemã dos séculos XIX e XX. Prepara uma tese de doutoramento sobre as influências de F. Nietzsche na formação do pensamento de Max Weber.
 

1. Em Uma voz bem nossa, prefácio que escrevi em Setembro de 1985 para Ciclo do Amanhecer, que assinalou a estreia em livro do poeta Cristino Cortes, pude destacar dois traços que se me tinham imposto como mais presentes e promissores na nova voz poética que então se tornava pública: desde logo, o lirismo, conjugado em todos os seus cambiantes de “amor à portuguesa”, a par de uma outra nota, a da imersão desses sortilégios no mais raso quotidiano, um quotidiano em que o poeta e o homem circulam, e em que ambos se entregam ainda à ironia e ao humor; ao humor, sublinhe-se, pois Cristino Cortes não desfere as suas farpas de qualquer torre de marfim e não poucas vezes abandona, com humildade, a sua própria seriedade e importância. Sem pompas fanáticas, só fica, assim, mais perto de quem o escuta.

É, precisamente, esta imersão no quotidiano que nos propomos agora surpreender nas suas manifestações e consequências porventura menos aparentes, para o que desdobraremos dois fios do emaranhado novelo de motivos presentes na obra de Cortes: o fio que tem a ver com um certo regime do olhar, e o outro, que nos remete para o dandismo, traço comum, é essa a nossa tese, à maioria dos artistas e dos criadores em geral, de que poetas e artistas plásticos serão o mais excelso florão; traço comum, mas sui generis nas sua manifestações individualizadas, o que forçosamente decorre da definição mesma de dândi.

Diz-nos Jürgen Habermas, num ensaio famoso, ter sido no domínio da estética que pela primeira vez se tomou consciência do problema da fundamentação da modernidade a partir de si mesma. O distanciamento do modelo da arte antiga iniciara-se, no século XVIII, com a célebre Querelle des anciens et des modernes. Os modernos põem em questão o sentido de imitação dos modelos antigos e, em contraposição às normas de uma beleza absoluta, aparentemente supra temporal, salientam os critérios do belo relativo ou condicionado temporalmente. A palavra substantivada, “modernidade”, só apareceria mais tarde, em meados do século XIX, e ainda no domínio das belas-artes. Modernidade conserva, assim, até hoje, um núcleo de significado estético marcado pela maneira como a arte de vanguarda se vê a si própria (Habermas, 2002, pp.13-14).

Para Baudelaire, esse exemplar “pintor da vida moderna”, a experiência estética confundia-se com a experiência histórica da modernidade. A obra de arte moderna ocupa um lugar notável, em seu entender, na intersecção do eixo entre actualidade e eternidade: “ A modernidade é o transitório, o efémero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável”, como ele diz (Habermas, 2002,p.14). O presente já se não pode conceber em oposição a uma época ultrapassada, a uma figura do passado. A actualidade só se poderá constituir como o ponto de intersecção entre o tempo e a eternidade. Contacto sem mediação que salvará a modernidade da trivialidade. E para que a modernidade seja digna de tornar-se antiguidade – ainda segundo Baudelaire (e Habermas) – é necessário que dela se extraia a beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente lhe confere (Habermas, 2002,p.15). Partindo do resultado da célebre querela, Baudelaire desloca, segundo Habermas, de maneira característica, o peso do belo absoluto e do belo relativo: “O belo é constituído por um elemento eterno, invariável… e por um elemento relativo, circunstancial, que será…sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão. Sem este segundo, que é como o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigesto, inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana” (Habermas, 2002,p.15). Enquanto crítico de arte, não admira, pois, que Baudelaire sublinhe, na pintura moderna, o aspecto “da beleza fugaz e passageira da vida presente, do carácter daquilo que o leitor nos permitiu chamar “Modernidade”. Palavra que ele grafa entre aspas, consciente do novo uso, terminologicamente peculiar, desse termo. A obra autêntica está radicalmente presa ao instante do seu surgimento; precisamente porque se consome na actualidade, ela pode deter o fluxo constante das trivialidades, romper a normalidade e satisfazer o anseio imortal de beleza durante o momento de uma ligação do eterno com o actual. A beleza eterna revela-se apenas sob o disfarce dos costumes de época (Habermas, 2002, pp.15-16). O carácter de actualidade justifica também uma nova afinidade da arte com a moda, o novo, e com o ponto de vista do ocioso, do génio assim como da criança, que não dispõem da protecção constituída por formas de percepção convencionais e por isso são abandonados sem defesa aos ataques da beleza e dos estímulos transcendentes, ocultos naquilo que há de mais quotidiano (Habermas, 2002, p.16). Já não estará longe o dândi e/ou o flâneur, aquele que passeia sem pressas, abandonando-se à impressão do momento. Segundo Baudelaire, apropriadamente citado por Habermas, cabe a este dândi buscar “esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade; pois não me ocorre melhor palavra para exprimir a ideia em questão. Trata-se, para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório” (Habermas, 2002,p.16).

  Quanto ao dândi, impõe-se aqui uma explicação. É que há dândis e dândis, mesmo que seja impossível imaginar um dândi confinado ao seu aposento, um dândi sozinho. Desembarcado numa ilha deserta, ele morreria de tédio antes de morrer de fome, como nos diz Clément Rosset (Rosset, 2013, p.239). Há, por outro lado, dândis superficiais e fátuos, e outros que tiram um sentido mais substancial das disposições comuns a todo o dandismo. O dândi déclassé, ao contrário do dândi de raça, procura sobretudo chamar a atenção e ganhar os favores da opinião, (género Cocteau, ou Bernard Henri-Lévy, segundo Rosset). O dândi de raça, esse (género Óscar Wilde) faz ponto de honra em não dar a mínima importância àqueles propósitos. Antes faz gala em não se exibir, em permanecer impassível e parecer ignorar o seu talento, o que seria o caso de Delacroix, no entender de Baudelaire (Rosset, 2013, pp.240-241).

  Diz-nos Camille Paglia que Théophile Gautier, mestre de Baudelaire, para se defender de um mundo que colapsara num montão de objectos, inventou o esteticismo como modo de controlo perceptivo, ritualizando a relação olho-objecto. Uma distância estética fixa corta pela base o efeito destruidor do influxo dos fenómenos. Tudo nele, do sexual ao metafísico, é estruturado pela arte. O estilo Decadente, ao congelar o mundo em imagens, visa propiciar o olhar pagão (Paglia, 1991, pp.420-421). Baudelaire, seguindo estas pisadas, apresentaria, num texto em prosa, O Pintor da Vida Moderna (1863), uma teoria da persona masculina ideal. Na linha de um ensaio de Barbey d’Aurevilly (1845), faz do dândi o exemplo ideal do estilo pessoal e qualifica de dandismo um “culto do eu” romântico, que surge da necessidade ardente de criar uma originalidade pessoal.

  Baudelaire era amigo de Édouard Manet, outro artista radical. Também para ele a arte deveria interpelar a vida moderna. Recusando o ensino académico, estudou com um grande pintor de salão, Thomas Couture, com quem não tardaria a entrar em choque. Conta Camille Paglia, a quem parafrasearemos nos próximos desenvolvimentos, que numa discussão acesa com um modelo de nu masculino que fazia poses clássicas no estúdio de Couture, Manet terá dito: “Não estamos em Roma, e não queremos lá ir. Estamos em Paris – deixemo-nos estar aqui” (Paglia, 2012, p. 91). O realismo, então um movimento subversivo a que Manet pertencia, provoca escândalo, o que aconteceu com quadros dele, hoje tão célebres como Le Déjeuner sur l´herbe ou Olympia. A fotografia, inventada em finais dos anos 30 e que não parava de evoluir, intrigava Manet e Degas. Os dois pintores reproduzem muitas vezes o ar confuso e casual de fotografias ingénuas, com figuras seccionadas nas extremidades das suas telas. No entanto, se de início a fotografia pareceu ameaçar os artistas, em especial os retratistas, o certo é que, com o tempo, ela libertou a pintura da obrigação de reproduzir o mundo físico tal como ele se oferece aos olhos. Manet, se admirava a rapidez (o à la minute) e a sinceridade da fotografia, não apreciava o seu literalismo (carácter prosaico, não imaginativo). Daí, por certo, a distorção sistemática típica das suas obras: espaço com pouca profundidade, violando a canónica ilusão desta que o Renascimento impusera, composição ambígua, execução desigual.

  Manet era, tal como Baudelaire, um flâneur consumado, um calcorreador elegante e espirituoso dos boulevards da sua Paris natal, então a ser radicalmente transformada pelo Barão Haussmann, deitando abaixo ruelas e tugúrios medievais para sobre eles lançar grandes avenidas e abrir soberbas praças. Estas inovações intensificaram o trânsito pedestre e a vida nocturna nas novíssimas ruas iluminadas a gás. Cafés e brasseries instalaram mesas nos passeios alargados, convertendo em desporto a recíproca observação de transeuntes e clientes. A indústria do entretenimento conhece uma explosão, ao serviço dos ócios das classes médias e de hordas de turistas, que preferem a cerveja ao vinho. Nova instituição era então o café/concerto, que servia comida e bebidas alcoólicas, e espectáculos de variedades, durante os quais os clientes circulavam e conversavam. Em At the Café, quadro de Manet de que Camille Paglia nos oferece uma das suas exímias close readings, num texto com o significativo título de City in Motion, o pintor capta, em flagrante, a animada mistura de classes sociais e de personagens nesse ambiente ruidoso. Nós, os que contemplamos o quadro, quase nos convertemos em barman, pois estamos postados diante de um balcão de mármore, onde abancam, numa extremidade, uma rapariga bisonha, com buço e sobrancelhas hirsutas, lojista diurna vencida pelo cansaço, flor murcha que ainda se vem oferecer para qualquer devaneio nocturno, um triste cigarro fumegando na mão direita, junto de uma caneca onde a cerveja perdeu o viço; a seu lado, indiferente, um soberbo e fino cavalheiro de meia-idade, trajando segundo a moda mais recente, de cartola, a mão direita pousada no castão da bengala, contempla, com ar de connaisseur, uma rapariga esbelta que canta por detrás do balcão, do que só nos damos conta pelo seu reflexo num grande espelho, no fundo da sala. Diz-nos Camille Paglia que as linhas de vista das figuras (elas são mais do que as que referi) disparam como raios em cinco direcções diferentes, sugerindo a sua desconexão psicológica num espaço temporariamente partilhado (Paglia, 2012, p.94).

2. Temos agora de dar um grande pulo no tempo e no espaço – por sobre todos os nossos dândis, como Garrett, decerto o mais feliz em todos os registos, como Gomes Leal, o mais infeliz de todos; por sobre Cesário Verde, Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, António Patrício, Teixeira Gomes e Fialho de Almeida, para ficarmos por aqui e finalmente desembarcarmos na última colectânea de Cristino Cortes. Penso que ele enfileira nesta múltipla, luzida e internacional linhagem de dândis – talvez com surpresa ou desconfiança sua, dada a sua índole, que o faz “um tanto avesso a grande exposição pública”, como se pode ler na badana de Poemas de Ironia e Má-língua.

  Dândi não será o nosso poeta, decerto, pelo vestuário, mas há que dizer em abono dele que se o vestuário ainda era, para um Carlyle, o ingénuo brasão dos dândis, já isso nada significava de essencial para Barbey d’Aurevilly, e isso em 1845! Se ele não é, assim, um dândi déclassé, tem de ser um dândi de raça, pois Clément Rosset dixit, e o que ele diz, para mim, tem muito peso É capaz de não haver terceiro termo. Estou convencido de que Cristino Cortes é um dândi, e um dândi sobretudo pelo regime do olhar (e do imaginar subsequente), regime que se foi definindo e complexificando de obra para obra, pela revelação progressiva das suas molas secretas. Desde logo, é nele dominante a obsessiva aproximação à cidade, na polaridade campo/cidade, e nas suas metamorfoses, até hoje, ao longo dos últimos 30 anos.

  Este poeta que desde sempre se definiu como um “Camponês transplantado nas margens da cidade” (Cortes, 1991, p.15) parece aceitar a ensaiada genealogia que vos proponho, numa conversa com Cesário Verde em que admite, mutatis mutandis, um múnus e um destino comuns: “Poeta desta cidade em que vivo e arredores/Em que diariamente passo – sem os primores/ De frutas que a contragosto exportavas/ Por entre as ferragens que por desfastio vendias; /Esse físico mester/ Eu to invejo oh camarada/ Atender o público é melhor que escrever papéis/ E a quase clandestinidade no sopro da poesia/ Hoje se repete e só a idade de cada um / Explica diferenças cambiantes tonalidades/ Mas o fado é o mesmo nada o destino mudou; / De ti me dizem parente e é provável que sim/ Não é mais a poesia o calmo verso que manso flui / Mas podes crer que bem te entendo oh Cesário/ Bem te compreendo oh amigo e mais não quisera/ Que a perfeição das coisas que tu se não morresses/ Decerto alcançaras – mas os deuses levam cedo /Os que amam e assim companheiro me despeço (Cortes, 1991, pp.40, 41).

  O dandismo do vezo poético de Cristino Cortes tem, pois, a ver com um certo olhar, com um regime do olhar, desde sempre dominante, mas que, de obra para obra, se torna mais consciente de si e dos seus recursos expressivos, o que é bem sintetizado nestas palavras da prefaciadora do volume agora publicado, a Professora Annabela Rita: “ …o olhar parece insinuar-se nas pregas da vida e da memória, fazendo de ambas matéria plástica onde a aresta aguçada se combina com a curva suave e com a arte da fuga reflexiva…” (Cortes, 2015,pp.6 e 7).

  No caso deste moderníssimo pintor da moderna vida portuguesa é difícil destrinçar, assim, o biográfico do que o que sobre ele se reelabora, o vivido do que se prolonga em viva imaginação, pelo que nos movemos, afinal, num círculo, num vaivém, sem ponto de repouso; circularidade que é um eterno retorno entre o lá fora e a escrita, entre o boulevard e o estúdio, entre a materia prima dos poemas, colhida rente à vida no seu acontecer desabalado, e a apetrechada oficina poética onde esses flashes nos são restituídos, sem perda da surpresa e do brilho que os fizera únicos.

  O regime do olhar a que nos vimos referindo parece ter encontrado um ponto alto da sua definição pelo mão do próprio poeta, num livrinho de aforismos e breves poemetos – EIA Evidências, Inscrições, Aforismos – publicado em 2013, ao cabo de 28 anos de regularíssima produção poética. É como se o poeta nos quisesse ofertar uma chave para acedermos à intimidade da sua estesia poética, um bom vade-mécum para o escutarmos e entendermos melhor, para nosso gáudio e desfrute. Creio que, no seu conjunto, esses aforismos compõem a arte poética de Cristino Cortes, arte, em última análise, assente naquele novo regime do olhar, que o é, por extensão e sinestesia, de todos os outros quatro sentidos. Permitam-me que vos cite agora alguns desses aforismos: 

   “Uma fotografia pára o tempo” ;

   “Se quiseres ouvir o som da vida não faças barulho”;

   “ Linguagem do mudo: nada falar e dizer tudo.”;

   “ A surpresa aprecio e o imprevisto             

      À experiência direi que não resisto.”;

   “ O à vontade das raparigas

       Sempre me gradou.”;

   “ O que amo nas colegiais

        É o elas serem assim e nada mais.”;

   “Não olho para elas

        Mas para onde elas olham.”;

    “ O que está à vista escusa candeia

          - É o que se chama ver à boleia.”;

     “ Para ouvires o mundo

        Tens de te calar.” (Cortes, 2013, pp.18,19, 25, 29, 31, 32).

 

  3. Este regime do olhar, na primeira secção da colectânea agora publicada, significativamente intitulada Observações, passa, desde logo, pelo manter à distância do objecto observado, di-lo o próprio poeta em Musa Preta, que decorre num autocarro em movimento ou brevemente parado nos semáforos: “Vista de costas, à distância, a rapariga dir-se-ia/ Nua”. Certifica-se o poeta de que não é bem assim, e que a epifania daquela Musa ou Vénus em tons negros, de que ele beneficia em pormenor, “conscientemente”, advérbio dele, lhe seria destinada “por especial graça”, pois ele conta-se entre os que têm a sorte de a ver, mesmo que não saibamos se outros a viram. E o poema fica feito, sem mais qualquer exigência: “ Que os deuses a protejam, sortudo será o homem que a amar” (Cortes, 2015, p.17).

  Prossegue o poeta o seu “ver à boleia” em Episódio de Metropolitano, onde, sempre à distância, vislumbra, de perfil, uma rapariga que parece só ter uma perna, na outra extremidade da escada rolante (Cortes, 2015, p.18).

 Já em Leque de Verão – mais uma rica variação, a somar a outras inseridas em obras anteriores de Cristino Cortes, das camonianas voltas a mote “Descalça vai pera a fonte/Lianor pela verdura; / Vai fermosa, e não segura”, verdadeira obsessão de Cortes, diga-se de passagem –, assistimos a um refinado jogo de revelação e ocultamento, pautado pela rapariga que manobra as lâminas do leque, “se calhar mais experiente do que parecia”, pois “no sugerir mora o encanto, e ela bem o sabia/ Assim escondendo o que só de relance nos oferecia.” Se tudo isto nos comunica o poeta, também parece censurar-se, certamente pela insistência do seu olhar, que chegou, pelo menos, às alças do soutien: “Ao vê-la assim, com a distância que as lentes já me exigem / Ao balcão tomando um café, falando com outras colegas… oblíquo olhar/ Era o meu, um quase delito, estas coisas não se fazem.” (Cortes, 2015,p.26).

  Em Salvou-me o dia, temos uma exuberante rapariga que, por acaso, almoça ao lado do poeta, cujo riso em cascata o delicia, embora pareça intimidar um tanto o parceiro dela. O que, saído o par, leva o poeta a dar-se ao luxo de “imaginar / Tal criatividade em outros domínios: se em amar / Ela assim fosse, em vez de um precisaria de dois!” (Cortes, 2015,p.29).

  A transição do que se observa para o que se imagina, parece, assim, desdobrar noutro domínio, aquele onde os apetites procuram o seu bonum, o que já despontava na intensidade e minúcia do olhar inspectivo, sempre mais constrangido nas fronteiras da contemplação do belo. Repare-se, a propósito, no aforismo já citado: “Não olho para elas/ Mas para onde elas olham.” É claro que o poeta teve de olhar para elas para se pôr no encalço da linha do olhar das raparigas, o que só virá reforçar, por sua vez, o primeiro olhar que as surpreendeu, assegurando uma captura e posse mais deliciosamente completas do objecto olhado. A não reciprocidade dos olhares do poeta, a certeza da impunidade do exercício a que este se entrega dão asas suplementares à pulsão voyeurista que o habita.

  Para o fim desta primeira secção, o poeta afirma, em Aparências, sem margem para contestações, o que mais parece uma justificação ou álibi para o que ele faz: “Nem sempre mostram as mulheres a vontade que lhes mora / Por baixo da roupa”, actividade/ criatividade sobre a qual o poeta se diverte a ajuizar “Na paisagem humana pelos meus olhos desfilando…” (Cortes, 2015,p.33).

  Assim se transita para a segunda secção do livro, Imaginações. Observar e imaginar, em voltas e contravoltas, dão-se as mãos para vencer o tédio e o sono que espreitam em Tardes de Reuniões (II): “Como seleccionar, por exemplo, de entre todas as que aqui /Se encontram e eu consigo ver, como seleccionar/ A mulher mais bela (…)?” Entrega-se então o poeta, qual Páris, que toma por modelo, a escolher a mais bela – “Pela face, pelos brincos, decote, sorriso, cabelo?” – delicioso embaraço da escolha. Mas também faz uma confidência relevante, ao informar sobre o método e sobre as candidatas: “ O método não é interactivo, jamais foi a poesia/ Ao menos no próprio momento em que o poeta a escreve. / Não sabem, aliás, o quanto a deusa da beleza lhes deve/ Nem o que eu faço quando as olho, um tanto à revelia” (Cortes, 2015,p.42).  

   Tal como o Scottie Ferguson (James Stewart) do Vertigo, de Hitchcock, tal como o próprio realizador, ambos consumados dândis, o nosso poeta gosta de ver mas não de ser visto a ver, ao mesmo tempo, pelos objectos do seu olhar. O facto da escolhida, para mais, não saber o resultado da selecção, deixa-o tranquilo. Os dândis não gostam de guerras!

  Em Eurídice, hoje em dia parece-nos tornar-se mais evidente ainda a ambiguidade do olhar aparentemente auto-suficiente e distanciado. Para o demonstrar, quiçá com laboriosidade excessiva, tive de consultar o Dicionário de Mitologia Grega e Romana, de Pierre Grimal, na excelente tradução do Professor Victor Jabouille. A ninfa Eurídice foi, um dia, quando passeava com as Náiades, suas companheiras, picada por uma serpente. Virgílio supõe que o incidente se deu quando ela fugia de Aristeu, que corria atrás dela para a violar. Orfeu, seu marido, chorou a morte da esposa de tal maneira que comoveu as divindades infernais, que o autorizaram a trazê-la à luz do dia, com a condição de não olhar para ela antes de haver chegado à superfície. Eurídice seguia-o no caminho do regresso, e estavam prestes a sair do mundo das sombras quando Orfeu, incapaz de resistir por mais tempo ao desejo de a voltar a ver, se voltou para trás. Teve de regressar sozinho à terra, pois logo uma força irresistível arrastou de novo Eurídice para os Infernos.

  Jura o nosso poeta que se identifica com Orfeu, mas, como amigo, atrevo-me a dar-lhe um conselho: melhor faria se lhe preferisse Aristeu, um potentado filho da ninfa Cirene e de Apolo, educado, como Aquiles, pelo centauro Quíron, versado ainda nas artes de Calíope (poesia), perito na apicultura, no cultivo da vinha, e nas artes da caça, que quis aplicar a Eurídice. Por todas estas prendas e feitos, não admira que os deuses acabassem por indultá-lo, o que não terá acontecido a Orfeu, que Afrodite, por ele ofendida, deixou desmembrar pelas mulheres da Trácia. Orfeu não teria, por outro lado, marido que era dela, necessidade de seguir a mulher, qual amante/voyeur eventual, como ocorre no poema de Cristino Cortes. Afigura-se-me que as tácticas e dispositivos laboriosamente aprestados pelo nosso poeta para a surpresa e captura da ninfa apressada dos nossos boulevards têm muito mais a ver com os estratagemas do astuto caçador Aristeu, mais monomaníaco, nestas coisas, como convém, do que Orfeu. Senão vejamos: Deliberadamente se deixou o poeta ultrapassar por ela (“de antemão o sabia”, confessa), no seu bambolear de pantera e ménada, para logo depois se pôr no seu encalço, bem melhor posição para predadores, convenhamos: “Durante um bom bocado gostosamente a segui”, embora, prudente, logo qualifique, “enquanto / Os nossos dois caminhos de algum modo coincidiam.” A impressão mais forte com que se fica é, porém, a de que estes ir na peugada e ver à boleia têm muito a ver com a perseguição de uma presa. “Fosse como fosse era um espanto, e eu, siderado, / A uma prudente distância, seguindo o seu espantar...”.

  A identificação com Orfeu, porém, tudo reconverte em (apetecia-me escrever “meras”) revelação e destinação poéticas, sem outras promessas de fuga à lei da gravidade. Mas há um regret final do poeta, é o que me parece: “O dia finalmente ganho… se a forma encontrasse / De, como ela, também eu do íman do chão me libertasse!” (Cortes, 2015,p.45). Transcurso e conclusão estes que, irreprimivelmente, me trazem à memória uma célebre canção de Fernando Pessoa ortónimo, em que ele diz, na primeira estrofe: “ Dá a surpresa de ser. /É alta, de um louro escuro. / Faz bem só pensar em ver /Seu corpo meio maduro.” E na última estrofe:” “Apetece como um barco./ Tem qualquer coisa de gomo. / Meu Deus, quando é que eu embarco? / Ó fome, quando é que eu como?” (Pessoa, 1979, p.147).  

 Tenho de concluir. Cristino Cortes, num múnus impenitente de mais de trinta anos de produção regular, aprendeu, progressivamente, e só assim se aprende, que a poesia é “una e vera”, que é “Múltipla e variável como a própria vida” (Cortes, 2013, p.53). Como o mar, afinal, sem precisar de reflectir o que quer que seja.

 As aparentes gaucherie ou imperícia de alguns versos, ou melhor, o seu prosaísmo às vezes cru, contrastam com a gnómica concisão e a perfeição oficinal inultrapassável de outros. Pelo que não se trata de imperícias. Hão-de ser outra coisa. Lembrarão talvez, e assim teremos de voltar à lição de Camille Paglia (Paglia, 2012,p.92), o pincel de Manet, que prefere, à opressiva ortodoxia do cânone oficial do bom gosto neoclássico, então encarnado nas formas polidas e superfícies envernizadas dos quadros de David, as pinceladas mais rudes e aparentemente anárquicas do seiscentista Diego Velásquez, que Manet estudara no Louvre.

  É que se o poeta Cristino Cortes é um dândi, convém dizer que o seu lugar de recuo e abrigo não é o polido século XVIII, mas o século XVII, sem que devamos esquecer o que o liga ao século anterior e a Camões, cuja poesia lírica ele conhece, glosa e recria na perfeição. É com este aparelho à primeira vista mais rústico, mas talvez por isso mais apto para captar os flagrantes da vida, que vemos o poeta, qual Sísifo feliz, flanar pela nossa cidade e seus ramificados arredores. Possa ele continuar por muitos e bons anos esta missão que o interpela e delicia, e a nós com ele, são os meus votos, doravante na Lisboa hipermoderna do hiperbólico turismo que a invade e compra, mas que nos há-de salvar a todos, como nos dizem e repetem os nossos sábios economistas e governantes.  

Referências 

 Cortes, Cristino, 1991, O Ciclo da Casa E Outros Poemas, Lisboa: Contra-Regra; 

 Cortes, Cristino, 2013, EIA Evidências, Inscrições, Aforismos, Lisboa: Edições Sempre-Em-Pé; 

 Cortes, Cristino, 2015, PimPoemas de Ironia e Má-língua, Lisboa, Calçada das Letras;

 Habermas, Jürgen, 2002, O Discurso Filosófico da Modernidade, São Paulo: Martins Fontes; 

 Paglia, Camille, 1991, Sexual Personae – Art and Decadence from Nefertiti to Emily Dickinson, New York: Vintage Books; 

 Paglia, Camille, 2012, Glittering Images – A Journey Through Art from Egypt to ‘Star Wars’, New York: Pantheon Books; 

 Pessoa, Fernando,1979,O Rosto E As Máscaras, antologia organizada e prefaciada por David Mourão Ferreira, Lisboa: Ática;  

 Rosset, Clément, 2013, Faits divers, Paris: Presses Universitaires de France.

 
 
 
 
 
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