Revista TriploV de Artes, Letras & Ciências . ns . nº 53 . agosto-setembro 2015


 
MARIA MANUEL ROCHA

As horas possíveis

Maria Manuel Rocha (1960, Aveiro, Portugal). Colaborou esporadicamente em publicações conjuntas: revista literária Sol XXI, jornal regional “O Aveiro”, “Da Poesia – vol. II” (ed. Minerva), “Antologia de Contos” (ed. Sol XXI), “Folhas, Letras & Outros Ofícios”, nº 14 (ed. Grupo Poético de Aveiro), ANTOLOGIA “Poetas d’ hoje” (ed. Grupo Poesia da Beira-Ria, Aveiro). Publicou o livro “As Horas Possíveis” (poesia) em 2014. É membro do Grupo Poético de Aveiro.

 

Entontece o grito das aves em torno da madrugada

 

Entontece o grito das aves em torno da madrugada

e retomamos as horas possíveis:

há uma salubridade no olhar que nos impele

ao declive do primeiro instante,

as marés, complacentes, sabem que atravessamos

as águas na certeza da bonança e da intempérie

como cristais de sal onde intentamos a voz:

 

os dias, na linguagem inequívoca do cais.

 

Dos cais, como curiosidades expectantes

 

Dos cais, como curiosidades expectantes

respira-se um odor a crepitação na tessitura

do fogo, memória de ícaro no tempo,

 

das asas breves inscritas

na certeza do voo que arroja.

E ícaro vê as labaredas líquidas de negro

onde a terra e o céu perdem o rasto. Onde a queda

não é a única medida de todas as coisas.

Onde o êxtase mudo.

 

Não sei quando desaguaram nossos olhares

 

Não sei quando desaguaram nossos olhares

neste mesmo abismo de luz como duas aves

únicas, impulso de asas à mesma sede.

 

Enlaçaste-me depois a mão, concha

de rosas a soprar ternura a soprar desejo

pétalas pólen orvalho espinhos. Caminhos

 

pela orla húmida na hora das marés

em meio das urzes mel escoado de sol,

rentes às paredes saturadas de pêndulos.

 

E lentamente na lassidão da madrugada

no respirar crepúsculo na fundura da noite,

ou na ausência, dizemos nosso nome: amor.

 

Na nudez clara do teu olhar

 

Na nudez clara do teu olhar

escuto o areal da nossa casa,

travessia do incenso no espaço

concreto do nosso amor,

 

ecos de um marulhar a ser

água na inteireza dos lábios,

nossos corpos enlaçados

mãos abertas sobre o ventre.

 

Como se uma ardência nas paredes

suturadas da pele, uma redenção.

Um incêndio no silêncio

de libertação extrema.

 

Como se uma maçã mordida inteira

numa tarde quente de verão

trouxesse a nova tessitura

escrita na mudança das estações.

 

Ser cada madrugada

 

Ser cada madrugada

a névoa que recolhemos

no interior da noite, na travessia

instintiva das paredes da memória,

como rumor entre margens.

 

Ser o labor dos dedos

o tacto da raiz frágil

nos declives da casa

da penumbra das horas.

 

Penso as pequenas pétalas de uma cidade enviesada

 

Penso as pequenas pétalas de uma cidade enviesada,

caules magníficos erguendo as taças nos breves canteiros.

A voragem dos passeios sob o céu agreste,

o céu dos teus olhos que despertam as madrugadas

de fábricas imensas na ausência dos girassóis,

de pranto na boca das crianças em meio das ruínas.

 

Penso essa pequena claridade,

gotas raras de orvalho.

 

Este tanger dos sinos

 

Este tanger dos sinos

pela madrugada, uma récita

a dizer dor a dizer morte,

e depois as sirenes

a tantas as horas.

 

O frenesi repisado

das sirenes, palidez

no interior do fino aguaceiro,

gotas de sangue pelas artérias

da cidade.

Uma urgência desabrida

a romper rumos,

como espuma de águas picadas

em desvio dos penhascos

em arremesso ao areal.

 

Sulcos invisíveis

aos olhares de pedra,

às paredes escoadas de água

nos instantes de luz enfermiça

que o sol consente no horizonte.

 

Sentamos os nossos pensamentos

 

Sentamos os nossos pensamentos

na densa curva do rio,

poalha de terra a circunscrever o lugar

onde apenas podemos nomear

as orlas da memória.

 

Sem medo as águas vagarosas do rio

viajam a encosta sinuosa da montanha.

Desde a nascente. Espelho líquido da inocência.

em meio de ramagens verdes

e pedras enxutas com paisagem ao fundo.

 

Linha d’água que desafia as colinas,

os sulcos a afluírem rios outros e lagos.

Mas os paus ou os caniços do caminho

vergastam os cantos da alma.

E o rio inclina demasiado.

As palavras largam de fugida.

A balança não tem peso nem medida.

 

Somos nós, ali, ao espelho líquido das águas.

Esparso de fragmentos, retalhos do tempo breve.

Em silêncio, um murmúrio secreto

fala dos mistérios da luz e da sombra.

Longe escuta-se o apelo da distância,

essa indomável sede de maresia.

 

Somos margem na possibilidade

das horas que não se quedam inteiras.

 

Escrevo

 

Escrevo

os rios rubros da lava

vertida em brasa,

imolação tremenda;

 

os leitos cálidos

a escassez do arado

os cutelos nas raizes;

 

a voragem das espirais

como espectros cinza

a despenhar caos;

 

as margens desvalidas

no sorvedouro vasto

das vagas, em tragos;

 

as fissuras da terra

covas escavadas,

o peso das pedras.

 

Escrevo

a fuligem das vozes

esquivas à indigência

os gatilhos surdos

como sismos, estilhaços;

 

a nudez

das casas das hastes

as aves refugiadas

as vidas as campas

os sonhos mudos;

 

e por dentro da ruína

os rostos de um dia,

olhares em suspensão

ou mãos em despertar

um dia outro, um dia outro.

 

Os homens vivem assombrosamente no interior da morte

 

Os homens vivem assombrosamente no interior da morte,

a cada dia morrem de orfandade na voragem do tempo:

 

morrem nas distâncias, idades contadas ao vento,

nas dores surdas do corpo do coração assolado,

nas vozes mudas, nas pedras de medo e solidão;

 

morrem nos instantes onde sepultam os nomes

os lugares, as palavras ditas e não-ditas,

muros altos que não conseguem habitar;

 

morrem nas máscaras nas mãos fechadas,

nas fugas nos rituais nas metamorfoses,

nas horas inflexíveis dos estendais da vida;

 

morrem na insanidade, nas sombras de exílio,

nas ventosas obscuras do aniquilamento,

no sangue devastado por dentro;

 

morrem na aridez das terras incultas,

na sede do calor incendiário do deserto

nos destroços dos dias de rastilho aceso;

 

morrem nas margens da unidade cósmica

em fragmentos, estilhaços de andaimes e cimento

em arquitectura de fim dos antigos caminhos;

 

morrem a soldo por mesas requentadas e

hipóteses de pão, em meio das brumas

que escondem vampiros e ultimatos de sangue:

 

os homens morrem assombrosamente em vida,

como folhas d’outono que rasam o chão, sem retorno.

 

Acontece que um dia finda o corpo na mesma terra

 

Acontece que um dia finda o corpo na mesma terra:

 

devagar, uma ave a vogar em meio das nuvens.

Devagar, a poalha das cinzas sobre as águas do mar;

as cinzas que serão ondas algas limos

na luz pura que não é sol nem lua.

As águas espumarão sob as gaivotas

na memória das horas possíveis:

 

memória de umas palavras talvez,

do rumor da habitação matinal,

instantes e afectos no remanso da brisa;

do interior da maresia, das ondas que habitava.

Como pedras de sal, como fábula de eternidade -

 
 
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