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Introdução
O que é qualidade literária?
Estamos cientes de que propomos uma reflexão
sobre uma ideia deveras cara à literatura, aos
escritores, aos estudiosos de literatura, aos
editores e aos leitores de uma forma geral, e
que determina os méritos e os deméritos de
determinada obra literária ou escritor. Estamos
cientes, por conseguinte, da controvérsia a que
tal reflexão se presta.
A relevância desta abordagem reside na
possibilidade de trazer ao de cima o que
chamamos de vícios discursivos, quando se
pretende conferir qualidade a determinada obra,
vícios que não creditam esse conceito com
capacidade de conferir à obra literária o
estatuto que tácita e socialmente se lhe confer
(1).
Almejamos certo rigor e objectividade
necessários a um juízo de que depende um
percurso artístico inicialmente individual, mas
resultante dessas inúmeras e historicamente
diversificadas leituras, uma resultante
colectiva no que ele pode levar consigo de
manancial cultural e intelectual de dimensão
nacional e até internacional.
Propomo-nos falar da qualidade literária de
obras moçambicanas produzidas a partir de 1990.
Estamos cientes do volume de trabalho e dos
riscos que significa tratar de mais de 20 anos
de literatura e com base num conceito polémico
como é o de
qualidade
literária. Por isso, delimitamos a presente
abordagem aos domínios seguintes:
i)
Génese da nova geração de autores moçambicanos;
ii)
A metalinguagem literária e seus vícios;
iii)
A ideia de qualidade literária.
A escolha do primeiro domínio justifica-se pelo
facto de a nova geração de autores moçambicanos
começar a preparar a sua estreia em livro na
década 90, facto que nos permite entrar em
contacto com a ideia de
qualidade
literária de forma particularmente actual e,
quiçá, mais problemática (de acordo com a lógica
segundo a qual, regra geral, é na sequência da
publicação de obras literárias que se produzem
metalinguagens, textos cuja missão é analisar e
avaliar o que se publicou) e considerando a
ausência da crítica em relação ao conjunto de
obras/autores de que aqui se trata.
Em relação ao segundo domínio, a sua escolha tem
a ver com o interesse não sobre as obras
literárias em si, de forma directa, mas sobre os
juízos a que já nos referimos e que foram
emitidos à medida que os novos autores foram
publicando os seus livros.
Finalmente, resulta da leitura dessa
metalinguagem a ideia de
qualidade
literária que aqui se propõe e que,
certamente, há-de ser preciso questionar.
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Génese da nova geração de escritores
moçambicanos
A década 90 é o tempo de preparação de uma nova
fase na literatura moçambicana no que diz
respeito ao surgimento de novos autores.
De Xai-Xai, chegam-nos destacadas as vozes de
Andes Chivangue e Dom Midó das Dores,
co-fundadoras do Núcleo Literário Xitende,
criador da Revista Literária Xitende onde
aqueles publicaram os seus textos (2).
De Inhambane, chegam-nos, pelas páginas do
Caderno Literário Xiphefo (criado em 1987), as
vozes de Rogério Manjate (3)
e Guita Jr. (4),
partilhando as mesmas páginas com autores já
consagrados como Sebastião Alba, Luís Carlos
Patraquim ou o francês Victor Hugo.
Em Maputo, surgem duas revistas, a
Lua Nova e a revista Oásis –
Jovens pela Literatura. Criada em 1988 pela
Associação dos Escritores Moçambicanos – AEMO, a
Lua Nova
ainda pôde testemunhar o surgimento de nomes
como o já mencionado Rogério Manjate, que chegou
a ser editor da revista, Aurélio Furdela (5),
Clemente Bata (6)
e Ruy Ligeiro (7), todos partilhando o mesmo
espaço com escritores consagrados como Eduardo
White e Mia Couto.
A revista
Oásis, metáfora da esperança na
revitalização ou fortalecimento da nossa
literatura, foi fundada em 1997, em meio a
obstáculos e/ou dificuldades de publicação. Por
isso mesmo, ela foi o espaço privilegiado de um
fervilhar de emoções e desencantos de parte
dessa geração ávida de ver os seus textos
publicados e os seus autores reconhecidos como
escritores.
A este propósito, vale recordar um excerto do
editorial do primeiro número da revista e
sublinhar o seu tom irónico e inconformista
perante certa obsessão de entidades de cujos
vaticínios (infalíveis?), supostamente escudados
numa temporalidade existencialmente irónica ou
castradora dessa possibilidade de se vir a
ser
escritor/obra, seriam sinais reveladores de que
os mecanismos que dificultariam a revelação das
então novas vozes tinham sido accionados:
Profeta
– Só daqui a meio século, ou mais…
Oásis
– Calma aí… o pensamento é a essência da
existência, e eu penso.
Profeta
– Pensar não é existir meu filho. Não sejamos
idealistas subjectivos, o vulcão só é quando há
erupção. Uma coisa é existir, e outra é ser.
Oásis
– Não me confundas. As coisas não acontecem por
si próprias, fazemo-las acontecer. Também não
sou vulcão para usufruir da erupção. Eu sou o
fim último de um rio subterrâneo num deserto…
Profeta
– Estás a ver… subterrâneo… deserto.
Decididamente não existes. Só daqui a um
século…!
Oásis
– A sua profecia é inconsequente. Melhor é
comprares um cronómetro, o espírito do rio já
perfura o perfil do deserto... (8)
A revista
Oásis era propriedade da AEMO, cumprindo
assim a Associação um dos seus desígnios
estatutários, designadamente, o incentivo ao
surgimento de novos autores. De resto, nomes
como Aurélio Furdela, Ruy Ligeiro e Chagas
Levene (9),
que veriam mais tarde os seus textos publicados
em outras revistas (como as já mencionadas) e em
livro, publicaram inicialmente na
Oásis. Outros, que mais tarde também sairiam em livro, militaram na
Oásis,
casos de Dinis Muhai (10),
Helder Faife (11)
e Sangare Okapi (este sob pseudónimo de Orpa
Oripa de Barca) (12).
Importa destacar que a maior parte destes
autores, por alturas da década 90, já publicava
textos em jornais como
Savana
e Domingo.
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A metalinguagem literária e seus vícios
Eco e reflexo de diversas militâncias
literárias, como já se disse, o ano de 1997
testemunha, em termos de publicação em livro e
sob os ditames da poesia, o surgimento da nova
geração de autores, com a obra
O Agora e
o Depois das Coisas, de Guita Jr.. Este
impulso foi repercurtido, em 1999, com a
publicação das obras
Os
Segredos da Arte de Amar, de Adelino TimóteO
(13),
e Abutres
do Amor,
de Jorge MatinE (14),
as primeiras duas chanceladas pela AEMO. A
referência a Jorge Matine ou a
Oásis
suscita mais uma observação.
Segundo entendemos das palavras do poeta Sangare
Okapi, Jorge Matine não pertence ao grupo de
autores que deu os primeiros sinais da
existência de uma nova geração de escritores –
referência ao Movimento Oásis, como ficou
chamado. De facto, uma leitura ao texto
consagrado ao Movimento, da autoria de Sangare e
publicado no
Memorial
que assinala o 25.0 aniversário da
AEMO, permite perceber que a questão está longe
de ser consensual:
O projecto Oásis tinha no seu leque vários
propósitos, dos quais destacam-se os literários,
designadamente a intenção alcançada de publicar
uma revista literária; … Também havia um
manifesto desejo de publicar duas antologias,
uma de contos e outra de poesia. Até aqui vê-se
claramente que os objectivos estavam acima de
quaisquer interesses individuais. Mas porque, e
socorrendo-me de um certo escritor que a memória
ofusca, “a escrita é um acto meramente
individual”, (há ainda quem a tenha como um
autêntico voto à solidão), esta intenção
colectivista estava fadada ao insucesso.
Daí que o caminho para a afirmação
individual desenhou os seus contornos, sendo a
primeira tentativa de publicação de uma obra
individual dada pelo jovem Jorge Matine.
Tentativa porque o livro foi uma publicação de
poemas de Jorge Matine e desenhos de um artista
plástico português, isto num território
estrangeiro, Portugal. Esta publicação, em
terras lusas, caiu como uma espécie de traição à
causa colectivista. Afinal, o Oásis congregava
também jovens artistas plásticos. Mas o jovem
Matine talvez tivesse as suas justas motivações
para lançar o seu primeiro livro, o primeiro
livro da Oásis, fora do grupo.
Não se trata aqui de discutir a justeza das
acusações que o poeta Sangare Okapi faz ao poeta
Jorge Matine, acusações pejadas de uma ironia
contundente sobre o anti-colectivismo e
anti-nacionalismo de Matine, tão pouco se trata
de fazer um estudo sobre o Movimento Oásis.
Interessa-nos, isso sim, assinalar o surgimento
de uma nova geração de autores num período
passível de ser demarcado em função da origem de
boa parte de seus autores (movimentos e/ou
revistas literários) – e aqui reside o facto que
nos impele a falar de «nova geração» de autores.
De qualquer forma, se os marcos aqui
estabelecidos podem ser questionados, igualmente
não se pode argumentar que a produção
subsequente ao
O Agora e
o Depois das Coisas, de Guita Jr., mereceu,
por parte da crítica e dos estudos literários, a
recepção nos termos que aqui interessa,
sobretudo da crítica feita em Moçambique. O
silêncio de uma crítica que seja capaz de reagir
à medida que a produção vá aumentando a sua
quantidade, ao longo destes mais de vinte anos,
revela um suposto consentimento em relação à sua
qualidade. As nossas hipóteses sugerem que esse
silêncio de mais de vinte anos sobre a qualidade
da nossa literatura consente que:
i)
existam novas vozes, contudo ignorando-as, por
falta de qualidade literária;
ii)
existindo
novas vozes, elas permaneçam desconhecidas para
o vasto público, nacional e estrangeiro, sob o
risco de se questionar a consagração de uma
mancheia de autores cuja suposta consagração
está cada vez mais dependente de imperativos
colectivistas, de movimentos ou de gerações
cujos alicerces podem ser encontrados nas
directrizes massificadoras da leitura e do livro
(ao nível da educação, por exemplo) no contexto
da primeira república;
iii)
embora permaneçam desconhecidas para o vasto
público, as novas vozes se transformem em
evidência (quando mencionadas) de que existe uma
geração de escritores consagrados a que a
crítica vai dando o «merecido» destaque em
jornais e revistas nacionais e internacionais.
Em cada uma destas hipóteses, o silêncio
assumiria uma atitude deliberada, ou seja,
crítica, (in)consequente, que nos parece
compreensível. À semelhança de outros sistemas
sociais, o sistema literário não é imune ou à
ignorância e inconsciência de si próprio ou, o
que é mais grave, ao tráfico de influências e de
uma adulação danosa (contratuais ou tácitos),
onde a invisibilidade de uns credita o sucesso
de outros na rede de relações que se estabelecem
entre os diferentes elos do sistema: escritores,
editores, livreiros, críticos, estudiosos de
literatura, leitores
latu sensu (jornalistas, professores, estudantes).
Quantas vezes lemos ou ouvimos posições
(in)formadas sobre quais os nomes maiores da
literatura moçambicana, tantas quantas são as
suspeitas dessas vozes não terem, sequer, lido
uma página sobre o passado e sobre o presente da
nossa literatura, ou seja, não estarem em
contacto com a nossa tradição literária? Quando
se referem à nova geração de autores, não
vislumbram, essas vozes, por exemplo, as
aproximações e os distanciamentos entre, por um
lado, um Rogério Manjate, Aurélio Furdela, Andes
Chivangue prosador, Dom Midó das Dores, e, por
outro lado, Ungulani ba ka Khosa, Mia Couto,
Suleiman Cassamo, Marcelo Panguana, Luís
Bernardo Honwana; ou entre, por um lado, um
Andes Chivangue poeta, Sangare Okapi, Rui
Ligeiro, Helder Faife, Celso Manguana, Mbate
Pedro, Adelino Timóteo poeta e, por outro,
Eduardo White, Luís Carlos Patraquim, José
Craveirinha ou Rui Nknopfli.
Este hábito de roubar aos «pobres» para dar aos
«ricos» não será a prova inequívoca de que a
literatura moçambicana vive uma
contemporaneidade particularmente ameaçadora a
escritores, editores, jornalistas e críticos que
não se permitem debruçar-se sobre o que se vai
produzindo de «novo»?
Cientes deste ostracismo, sobretudo por parte da
crítica académica e jornalística (15),
os novos autores vão implorando pela leitura dos
seus textos, umas vezes a académicos, outras a
escritores que se lhes reconhece a consagração.
Ou seja, no caso da nova geração de escritores,
regra geral, a metalinguagem sobre os seus
textos preexiste à publicação da obra, não
resultando, portanto, da curiosidade em
acompanhar os compassos e descompassos do que se
vai produzindo. Não se lê porque é importante
que se leia, lê-se porque a formulação de um
pedido os obriga a ler. Desta atitude resultam
duas metalinguagens distintas e que designamos
i.
textos dos confrades e;
ii.
textos dos estudiosos de literatura.
A
metalinguagem literária,
segundo Aguiar e Silva, está imediatamente
vinculada à prática literária de um determinado
período histórico por uma função de
interdependência e, por conseguinte, deve ser
integrada no sistema semiótico literário.
Segundo o autor, a
metalinguagem literária é uma poética explícita
cuja finalidade é a defesa ou a condenação,
a descrição e a análise com carácter mais ou
menos marcadamente normativo, das convenções e
regras que configuram os códigos literários:
artes poéticas, tratados de poética e de
retórica, programas e manifestos de escolas e
movimentos literários, prefácios, epígrafes,
etc. (2000: 112)
No que diz respeito aos textos dos confrades e
dos estudiosos de literatura, eles vão
apresentar natural, mas não necessariamente,
matizes diferentes. Importa, então, perceber
quais são os métodos de abordagem apresentados
sob o título de
Prefácio,
que normalmente acompanham as obras dos novos
autores e, para tal, tomaremos em consideração,
apenas a título de exemplo, alguns textos (16).
2.1
Dos textos dos confrades
2.1.1
O vício do silêncio que não quer calar
Num texto introdutório intitulado «Poéticas»,
que abre o primeiro livro de Sónia Sultuane,
Sonhos,
o saudoso poeta Eduardo White apresenta-nos um
discurso que, pela interpelação à autora da
obra, faz lembrar uma carta. Seria esta uma
carta abonatória ao exercício poético de Sónia
Sultuane, um panegírico? Não necessariamente,
nem tão pouco tem de ser, como se pode
constatar:
Sónia: Chega-me à mão um livro de poesia
escrito pela própria poesia. Nunca se escreve o
que se é. Penso.
E depois detenho-me sobre ele. Leio-lhe os
sentidos da forma como se dói. Não se impõe este
livro, com certeza, nem tu o ambicionas, como o
livro da tua vida, mas ele está,
indubitavelmente, cheio de vida. … É belo ver-te
tu, autêntica. Tu poesia num país onde a poesia
se masculinizou.
E tu, também, frágil como os teus versos,
como o lugar donde se deslumbram as canções
maduras que adubas para sonhares, amanhã, com o
que o poema sonha sempre. Que bom seres bonita
para falares de tudo isto, muito embora nem tudo
em ti esteja ainda pronto. (Sultuane, 2001:
II)
A obra que aqui se apresenta de poético não tem
absolutamente nada. Isto é o que depreendemos
deste texto laboriosamente urdido. Entendemos
mais, trata-se de uma escrita a revelar-se num
futuro, não obstante apresentar-se hoje cheia de
vida.
Não se trata, como se vê, de nenhum panegírico.
O discurso poético que encobre as verdades que
procuramos desvelar é que é melífluo, de uma
retórica adiposa e eufemística.
Como «conferir» qualidade literária à obra
nestas condições? Este é um vício comum entre
nós, o vício do silêncio que não quer calar. Que
importa que se diga ao escritor e/ou ao leitor,
num texto que abre determinada obra, assumindo
ares de texto de apresentação ou de prefácio,
que a verdadeira obra está por acontecer?
Quantas leituras da obra, e em que tempo e
espaço históricos, seriam indispensáveis para se
questionar posicionamentos nada abonatórios e
assim justificar-se um texto desta natureza? O
que é um prefácio? Se a obra deve esperar para
ser “amanhã”, o que dizer do seu prefácio?
2.1.2 O vício da irresponsabilidade sistémica
sobre os mecanismos de legitimação
Suleiman Cassamo, no “Prefácio Acima da linha
d’água”, à obra
De Medo
Morreu o Susto, de Aurélio Furdela, afirma
que a obra é vencedora, não «pela volátil
circunstância de ter ganho o Prémio Revelação,
da Associação dos Escritores Moçambicanos …
Sabemos como são falíveis e subjectivas as
deliberações de um júri», mas pelo estatuto de
arte que a obra reivindica e que o prefaciador
sintetiza da seguinte forma:
Em
De Medo Morreu o
Susto,
desfila um conjunto de estórias embebidas no
quotidiano, e no que ele tem de surrealista.
Afinal, ao contrário do que se poderia pensar, o
fantástico está à nossa porta … A prosa
furdeliana é de recorte quase realista,
oscilando entre a crónica e o conto. O seu forte
não é o labor minucioso da palavra, mas o
encadeamento das situações, a cadência, o
sentido do balanço narrativo, as saídas
patéticas, a coerência do absurdo. … Finalmente,
a questão que fica: será que a literatura
moçambicana ganhou definitivamente mais um nome
com esta estreia?
Fica para ti, leitor, a busca da resposta nas
páginas deste livro. (Furdela, 2003: 11-12)
Mais objectivo na sua abordagem, em relação ao
texto “Poéticas”, o texto de Cassamo
apresenta-nos, de facto, uma obra, um autor.
Quem lê o prefácio sabe que tipo de histórias
pode esperar, de facto. Não sabendo, tanto
melhor, abre-se uma oportunidade para se entrar
em contacto com um mundo de saberes necessários
para a leitura e entendimento da obra –
sugerido, no caso, pelos conceitos de
Surrealismo e Fantástico –, segundo o autor do
prefácio. E esta parece-me ser uma das
potencialidades dos prefácios ou textos de
apresentação, a possibilidade de criar leitores
ou habilita-los à leitura.
Dois aspectos parecem-nos importantes salientar
da apresentação da obra de Furdela. Primeiro, a
forma desconfiada como Cassamo lê os veredictos
dos prémios literários; segundo, o facto de,
talvez produto dessa desconfiança, preferir
remeter o juízo final à responsabilidade do
leitor.
A questão da qualidade literária deve ser, de
facto, discutida, primeiro, a nível das
instituições que criam prémios literários ou
pelas individualidades que integram os júris
desses prémios. Os critérios que regem a escolha
de uma obra vencedora são, não raras vezes,
subjectivos, ou seja, tendencialmente, cada
membro do júri elege os seus critérios. Desta
subjectividade resulta que as deliberações
acabam sendo uma espécie de debate sobre que
critérios são fiáveis e não sobre a forma como
cada concorrente respeitou determinado critério.
Teoricamente, os critérios deliberativos são do
domínio dos membros do júri, objectivos,
portanto, variando apenas a avaliação que cada
membro faz em função de cada um dos critérios.
Não admira, portanto, que fora de portas
nacionais, haja concursos que façam constar nos
seus regulamentos os critérios de avaliação e o
peso percentual de cada um
dos seus critérios para domínio
público. Esta prática reduz significativamente a
falibilidade e a arbitrariedade que presidem as
deliberações dos júris e ajuda a conferir
qualidade à obra vencedora, porque, de facto,
como salienta o poeta Filimone Meigos no
prefácio ao
Inventário
de Angústias ou Apoteose do nada de Sangare
Okapi, os prémios literários são instrumentos de
legitimação e, por conseguinte, conferem
qualidade à obra vencedora:
O registo poético de Okapi cabe num arquivo
que nos remete aos Salmos. Aliás, o pórtico de
Okapi é o Salmo 6, Oração em Tempo de angústia:
“Depois de morto ninguém se pode lembrar de
ti. E no sepulcro, quem te louvará? Estou
cansado de gemer. Todas as noites choro na minha
cama e encho de lágrimas a minha almofada. A dor
turva-me a vista e os meus olhos envelhecem, por
causa dos meus adversários.”
Eis, pois, a morte, o sepulcro, a lembrança, o
cansaço, o gemido, a noite, o choro, a cama, as
lágrimas, a almofada, a dor os olhos, o
envelhecimento e os adversários estruturando as
angústias de Okapi.
Se esta acepção pode
ser verdade, não é menos verdade que qualquer um
destes termos plasma essa efémera e fugidia
existência a nossa, afinal, cosmogonia e
escatologia de mãos dadas. Ou seja, o nascer e o
morrer, o princípio e o fim acasalados, preto e
branco, dia e noite, utopia e distopia na pena
do poeta confundindo o real com o onírico de
angústia em angústia: Cá está a
poesis
e o
mirandum
de Okapi, quanto a mim, modestamente bem
conseguidos, para quem se estreia em livro com o
beneplácito e a legitimidade que resultam de um
prémio literário: Bom começo! (Okapi, 2005:
x)
A entidade “leitor”, para a qual Cassamo remete
a responsabilidade de conferir qualidade à obra
de Furdela, deve ser estudada no âmbito de uma
abordagem sistémica, onde a Educação, em
parceria com instituições ligadas à promoção do
livro e da leitura, joga papel importante na
disponibilização de hábitos de leitura. Trata-se
de uma discussão que não nos parece relevante
por ora.
O segundo vício, no caso apresentado no prefácio
que o escritor Suleiman Cassamo faz à obra de
Furdela, decorre de uma irresponsabilidade
sistémica que torna sombrios os mecanismos de
legitimação ou pelos quais se confere qualidade
às obras literárias. Ou seja, o facto de
determinada obra ter ganho um prémio literário,
sobretudo tratando-se de um Prémio Revelação,
devia ser motivo mais que suficiente para
enaltecer as qualidades literárias da mesma.
Então, somos levados a pensar que é importante
questionar e aferir a qualidade dos membros dos
júris. Caberia aos estudiosos de literatura, aos
críticos, professores, editores, escritores
consagrados e jornalistas devolverem à noção de
obra vencedora a responsabilidade que lhe merece
(17).
Esta lacuna abre um precedente para essa
referência (des)necessária à idoneidade de
“um júri
de reconhecido mérito no panorama literário
nacional”, como os regulamentos fazem
questão de garantir, a ponto de colocar-se em
causa essa idoneidade através de juízos às vezes
pouco esclarecedores que corporizam os prefácios de recados, recados que procuram fugir a uma verdade tão
necessária ao escritor e ao receptores, como
acontece no “Prefácio” à obra
O Sentido
das Metáforas, do poeta Manecas Cândido:
Embora não tenha havido muito daquilo que eu
chamo de malabarismo técnico, este livro merece,
em grande medida, o prémio que granjeou. É,
digamos, um começo. O resto, não passa de uma
simples necessidade de apuro, e mais labor para
quem está disposto a expor-se a todos os riscos
que a escrita oferece, quando o propósito é
procurar ser um verdadeiro e incansável
marceneiro da poesia, à maneira Knophliana.
(Cândido, 2007: 4)
Se o “resto” é o que falta, mais apuro e
trabalho, e se a obra não apresenta o
malabarismo técnico advogado pelo prefaciador,
no caso o poeta Armando Artur, então por que
será que a obra ganhou o prémio?
2.2
Dos textos dos estudiosos de literatura
Se é verdade que as abordagens objectivas sobre
a obra literária, reveladoras da técnica e sua
relação com o que na obra (não) se insinua, não
são exclusivas dos estudiosos de literatura –
aliás, o prefácio de Suleiman Cassamo à obra
De medo
morreu o susto o prova –, não é menos
verdade que o discurso académico é
potencialmente menos floreado e, portanto, mais
sincero ou, no mínimo, mais elaborado na forma
que encontra para fugir aos juízos de valor. Mas
a falta de sinceridade, a fuga à verdade, é o
grande problema de toda uma metalinguagem que
teima em abrir obras vencedoras ou não. E se
calhar é fácil compreender: por um lado, foge-se
à tentação de dizer que determinada obra foi mal
conseguida, por outro, e talvez a mais
importante razão, é que a verdade deve ser
demonstrada. José Craveirinha não é nosso poeta
maior porque assim os deuses o quiseram,
demonstraram-no leituras afeiçoadas, cujo
compromisso era com a arte. É evidente que há
várias formas de ler e criticar, mas nenhuma
dessas formas deve permitir-se negar que ainda
que determinada obra não tenha qualidade é
necessário demonstrar objectivamente como se
opera essa falta.
Não pretendemos com isto dizer que a
metalinguagem académica é mais verdadeira que as
outras metalinguagens, pois é sabido que ela
também pode ser técnica e objectivamente
floreada, dúbia e manipuladora, mas é preciso
levar em consideração que se trata de um
discurso cujas teses são passíveis de
verificação, testagem, e, portanto, um discurso
mais próximo ao que o texto propõe, um sentido
mais adequado à obra, portanto. Chamemos a isso
verdade. É essa verdade que permite conferir
qualidade literária a determina obra. Cite-se, a
título de exemplo, os casos de Ana Mafalda Leite
no prefácio à
Pátria que
me pariu, do poeta Celso Manguana, e
Francisco Noa no prefácio às
Tatuagens
de Estrelas, de Chagas Levene,
respectivamente:
a.
Prefácio à
Pátria que Me Pariu, de Celso Manguana:
Este conjunto de poemas está organizado em
duas partes complementares, mas diversas. A
primeira organiza-se com um conjunto de poemas,
que poderíamos apelidar de epigramáticos, em que
a temática é convertida em Palavras-chave, nelas
condensada por uma técnica de repetições. Os
poemas articulam sintacticamente proposições
simples e directas, que actuam com o
desdobramento paralelístico de uma só figura
rítmica, e realizam o máximo de intensidade de
significação num mínimo de espaço de verso. … Ao
fazermos uma identificação das
palavras-chaves-temas mais significativas do
livro, encontramos no primeiro poema o
“programa” que orienta esta escrita: pátria,
morte e três lugares substantivos de exílio
(amor, memória, loucura). (Leite, 2007:
5-6)
b.
Prefácio às
Tatuagens
de Estrelas, de Chagas Levene
Como que movido por um rumorejante apelo
rítmico e musical, os poemas vão eles próprios
cadenciando-se na descontinuidade da mancha
gráfica (alternância entre poemas longos e
curtos), no resgate dos tons e dos sons, tal o
caso das aliterações presentes, por exemplo, num
verso como “Pensando bantas pernas esbeltas ao
vento” (p. 17), das onomatopeias “dong, dong,
dong” (p. 46), “Bum Bum Bum” (p. 66). Afinal,
como ele próprio assume, “A minha língua
materna/É o som das palavras” (p.29).
A vocação musical da poesia de Levene pode
também ser encontrada na reiterada identificação
com ritmos: o “Mtsitso” (p. 9), o “kuduro” (p.
22), a “sungura” (p. 24), “timbilas” (p. 67),
“Jazz” (p. 76), “Rap” (p. 44); com músicos:
“Paul Simon”, “Ray Phiri” (p. 31), “Gabriel, O
Pensador” (p. 73) ou com instrumentos: “Mbila”
(p. 9), “piano” (p. 76).
Apesar de afirmar que “agora ando ando ando
atrás de algo/Que só existe na imaginação” (p.
11), encontramos, nos diferentes poemas desta
obra, múltiplas e variadas referências ao mundo
envolvente do sujeito e que traduzem um
intimismo do quotidiano, ora dialogante ora
questionador quando mesmo celebrativo.
(Noa, 2007: 6)
É para esta responsabilidade que pretendemos
chamar a atenção, para a necessidade de se
conferir objectivamente qualidade à obra
literária. Isto passa, como se depreende, por um
labor metódico, como o faz Cassamo ao
considerar, em síntese, que, “mais ágil o
enredo, mais densa a imagem, e Furdela não
deixará de nos surpreender”; Ana Mafalda Leite,
sobre a obra do poeta Celso Manguana:
O livro de Celso Manguana Pátria que me
pariu provoca no leitor um singular espanto
em ler, de forma simples, escandida em verso
breve, uma certeira crítica social, visível logo
a partir do trocadilho que o título propõe,
representativa de uma geração desencantada com a
guerra civil e as mudanças do projecto do país.
E, finalmente, Francisco Noa, sobre a obra de
Chagas Levene: “A vibração e a sensibilidade
juvenis desta obra … indiciam que a literatura
moçambicana não morreu, afinal.”
Pode considerar-se que a
surpresa é a tónica dominante das abordagens de Cassamo, Leite e
Noa, o resultado, a tese das leituras feitas,
enfim, a certificação de que a qualidade preside
o exercício dos autores, um certificado, uma
verdade passível de ser testada.
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A ideia de qualidade literária
Pensamos que todo o texto que fale de
determinada obra aspira conferir qualidade a
essa mesma obra, ou seja, dizer aquilo que a
caracteriza do ponto de vista de quem a lê.
Obviamente que esta tarefa depende ou é
determinada pela qualidade intrínseca da obra,
como ela foi estruturada, como ela se constrói.
Se insistimos na figura do leitor no âmbito da
abordagem à nova geração de escritores é por
desconfiarmos que certos juízos não nos permitem
situar a sua qualidade, para o bem do próprio
autor, dos leitores e da literatura moçambicana,
de uma forma geral.
Do que fica exposto, resulta que a qualidade
literária é uma verdade provável e, como tal,
deve ser descrita e percebida. A qualidade
literária é intríseca à obra, mas depende,
também, da consciência que lê e do método que
preside essa leitura – se sociológico,
psicanalítico, estrutural, histórico-literário,
etc. –, por isso é que ela é uma verdade
provável.
Afirmações do tido “este livro não tem
qualidade” devem ser tomadas como redutoras, se
não argumentarem o que a obra efectivamente não
tem, pois, do ponto de vista do leitor, a
qualidade materializa-se racional e
culturalmente (tal como o autor criou a sua
obra), não podendo, portanto, ser-lhe negada a
prova. Podem eleger-se critérios de qualidade,
mas tais critérios devem ser passíveis de ser
testados.
Depreende-se, portanto, que a expressão
qualidade
literária é o significante de um método que
integra uma certa tradição literária (que
impulsiona toda a produção e avaliação), o mundo
da subjectividade do leitor e critérios
objectivos.
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