Revista TriploV de Artes, Letras & Ciências
N.s . nº 53 . agosto-setembro 2015 - ÍNDICE


 
FERNANDO NAPORANO

Poemas
 

Há certas-e-tantas coisas

que melhor ficariam se deixadas para trás,

ajoelhadas ao colo carcomido do passado;

ai, cruz  em coxas de lilás flácido

na distância onde viveram crianças, crenças

e a Crimeia incendiada.

 

Névoas incandescentes de gestos antigos

causam brônzeo desconforto

ao tentar enxergar a orquídea

tal como-apenas a orquídea

que se faz ausente ou presente

na bússola dos sentidos.

 

A maturidade, por sua vez, nada perdoa;

mostra-me o lado disforme da orquídea,

a incoerência de sua anatomia;

a sincronia Única, diz ela, seria fitar,

assar o veludo do céu,

ao véu de salitre, ao léu da (sobre)vivência.

 

Inédito do livro A Coerência Das Águas

 

Quando travo as pálpebras com seu rosto ao centro

a febre que busca (re)cantos em mim

aprendeu a ser chumbo

e com o coração-do-pensamento, derreter-se

 

A Substância derretida constroi seu relevo na terra

que por ser infinita desconhece o sentido do tempo

- mistério que não ouso tocar -

e quando o inverno vira neve pura 

 

abro novamente os olhos;

a febre encontra seu fim na tessitura do gelo

 

A Coerência Das Águas instala-se em minha alma

com a lógica de mares que existem por toda a parte

e eu te vejo inteirinha,

abraço-te como nunca fostes abraçada

 

com a árida, por vezes, vibrantemente cálida ternura

do imenso amor Desconhecido

 

Inédito do livro A Coerência Das Águas

 

O que permanece e acorda tão cedinho

(se calhar, nem desperta; tropeça na insônia)

e adormece na planície do desejo

são as palavras muito pisoteadas

e os melros que não ousam mais voar

 

Firebird, tu conheces as raízes e as folhas

dessas vogais e consoantes

até já formastes versos com elas

quando éramos rima, saliva de estrelas

e quanto aos imprecisos pássaros,

 

ah esses nem quisestes ver de perto,

eram mesmo loucos;

alguns poucos se atreviam ainda a gorjear

e pichavam Liberdade em maiúsculas

em ninhos de amor completamente esquecidos

 

Inédito do livro A Coerência Das Águas

 

Havia (ar)riscado meu último grito :

 

na esperança de colher-te como andorinha feridíssima

entre as mãos

e beijar o sangue que as vinhas e vícios da vida

tiraram de ti

 

Os pés roxos de meus desejos cintilam:

 

na espera imóvel, irrigada, incansável

mas sobretudo Inabalável;

Soberana em sua coerência surda

com a matemática do vazio

 

Inédito do livro A Coerência Das Águas

 

Navegação da Flauta De Fogo

 

A totalidade, a radiação, a harmonia

em seu rosto

do cristal dos incêndios

vento de fragmentos

de sal e São Tomás de Aquino

 

Na garoa dos suspiros encantados

nos dedos liláses de suas sutilezas

no absoluto suor das unhas

carpindo os segredos

de sangue e Hieronimous Bosch

 

Ah, era assim, o corte,

derme desenfreada do Sim,

iluminado extâse

em ametista silenciosa

na claridade sem confins

 

Luz barulhenta da juventude

 

raio que me parte

em poderosa petrificação

 

Inédito do livro Nas Colinas De Valdemossa Com O Fantasma De George Sand

 

As Tardes De Madeira

 

Carrego no peito as tábuas da peste

leis impostas por cada nomeada parte

de teu corpo

que nos internos dos infernos

atendia pelo nome

de Congresso Da Paixão

 

Carrego intactas as valas do vazio

que para sempre você construiu

em todos os meus ossos

por onde me alimento

com a secura das almas pisadas

que respiram flores

 

nas quatro paredes da insanidade Bruta

 

Inédito do livro Nas Colinas De Valdemossa Com O Fantasma De George Sand

 
 

Esplendor Na Compreensão Da Descida

 

Em degraus descascados

pintados pelo halo das madressilvas

a saudade de quartzo

vai subindo

até o fúnebre coral

da nuvem pranto-gris

 

Feixe de vozes escurecidas

trazem à tona :

I'm Leaving You

sua derradeira frase

sintaxe de passos de bailarina

na linfa da Quinta de Beethoven

 

Eis a prata ousada:

o mercúrio a morrer bastante

no pouco-rouco de cada dia

 

Inédito do livro Nas Colinas De Valdemossa Com O Fantasma De George Sand

 

A Falta Do Anjo Impossível

 

As rugas xilografadas na pele da solidão

ecoam a indiferença de seus dedos transparentes

espanando as tardes do mês de fevereiro de 2012

em veraneio de cistos cósmicos

nascidos com a indevida brutalidade

dos jasmins de ferro que se livravam da maquilagem

 

Nervos de grafite secam com o esmalte dos condenados

fitam os colares das horas a vácuo

que custam - até as raízes da alma! - a ornamentar

ou ao menos colidir, talvez em consolo, destituir

o horizonte postiço onde construí a fogo e vento

a mais obsessiva pinacoteca de todas as suas idades

 

Na íris da maturidade, o quadro híper-realista

- talhado no pátio do Café Gardel em Buenos Aires -

areando a lascívia de sua profunda tristeza

respirando o desejo esvaziado dos anos em brasas

ai, petrificada brisa entre olhos verdes mareados

que já não conseguiam mesmo me amar

 

Inédito do livro Nas Colinas De Valdemossa Com O Fantasma De George Sand

 

Hábitos Da Cegueira

 

A rígida desolação da dor

era brutalmente silente

enquanto as pedras me ouviam

e a cachorrinha moribunda

me fitava cambaleante

detendo a morte anunciada

com pavor de me abandonar

nos meses em que lágrimas

conhaque, cal e calcário

eram as estrelas cegas de minha vida

 

A incompreensão por ter sido traído

sabia a ventania de enxofre

egressa dos quintos dos infernos

que traziam suas palavras

em suspiros distintamente baldios

em perversos versos alexandrinos

todinhos queimados

vagas redondilhas carbonizadas

rimadas com a putrefação pavorosa

do amor eterno

 

Inédito do livro Nas Colinas De Valdemossa Com O Fantasma De George Sand

 

Still Life In Scorpio

 

Desejoceânico

em recifes de fracasso

a esperaesfera queimada

pela mágoa em riste

 

Desiste sonho (!)

desate o direito de sonhar

destine destino

a tudo o que foi Mar

 

Marca com ódio

a sereia

incapaz

de te afogar

 

Inédito do livro Nas Colinas De Valdemossa Com O Fantasma De George Sand

 

Un/evenly-Cut-Frames

 

O verbo de miosótis de tuas telas atormentadas

ao Branco de minha insônia põe-se a miar

as pinceladas abstratas, verde-desesperadas

são luz do lastro, esse gato-Kandinsky

de olhos de cerejas-de-seda

que hipnotizam o trago de meu cigarro

 

Nem durmo, nem acordo

dói-me demais saber que as tuas obras estão vendidas

por isso inalo a última que decora uma galeria

na montra, em Chelsea, New York

onde, sem dono, é minha fulgurante alucinação

que enxerga o travesseiro se transformando em rosto

 

esse rosto, gosto todo de ti.

 

Inédito do livro Detestável Liberdade

 

Jasper Johns; Enfâse Em Mistério

 

Como o dourado, o azul e o preto

do pássaro tríptico do Central Park, NY

meu desejo af(i)ava o coração

até ser lança, dança

que agora avança

na sala, na velada respiração das valas

 

de teus silêncios luminosos.

 

Inédito do livro Detestável Liberdade

 

Na carta-metragem

de teus pensamentos de arames distraídos

mergulho a curta-viagem

do Real Errante

onde nossos países distam-distantes

e o corpo humilhado

regressa ao Incabível,

ao mais inacabável longa-metragem do Sonho.

 

O roteiro da alma é sempre um troço desesperador,

oh desenvoltura atrofiada (!)

no Céu da gruta, bula

dos latidos do coração

sem noção alguma em qual compasso

a vida, essa ordinária, vai dar o primeiro passo

até ser alabastro ou música

na fragilidade do aço.

 

Inédito do livro Detestável Liberdade

 

Fernando Naporano. Cursou letras em São Paulo e Lisboa, mas sempre atuou desde a adolescência como jornalista. Desde os 14 anos escreveu para revistas e fanzines musicais. Em 83, ingressou na Folha Ilustrada. Fez parte da primeira equipe do Caderno 2, onde exerceu críticas na área de música e cinema.  Escreveu para revistas e jornais como Trip, Bizz, Around, El Pais, Isto É, A-Z, Interview e muitas outras.  Em 84 criou a banda Maria Angélica Não Mora Mais Aqui, com a qual gravou 3 lps. Em  89, mudou-se para Londres.  Entre 89 e 92, atuou como International Label Manager da gravadora Continental.  

Vivendo em Londres, além de escrever para publicações musicais americanas e inglesas como Amplifier, Popsided e Bucketfull Of Brains, tornou-se correspondente assíduo (por 9 anos) do Correio Braziliense, atuando nas áreas de  cinema e principalmente música.

(Entrevistou centenas de celebridades do mundo artístico, entre as quais figuram Marianne Faithfull, David Bowie, Richie Havens, Julia Roberts, Robert Altman e Spike Lee).  Em Londres, produziu programas radiofônicos; entre eles alguns para o Brasil como o programa Zig Zag (Brasil 2000FM) e Magic Buzz (Rádio Ipanema, Porto Alegre), um dos primeiros programas do mundo a ser arquivado e transmitido via Internet no mundo, entre 94-96.     

EDITOR | TRIPLOV
Contacto: revista@triplov.com
ISSN 2182-147X
Dir.
Maria Estela Guedes
 
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