Para entrar diretamente no tema, reproduzo, de
Piva, o “Poema vertigem”, publicado em
Ciclones,
seu livro de 1997:
Eu sou a
viagem de ácido
nos
barcos da noite
Eu sou o
garoto que se masturba
na
montanha
Eu sou
tecno pagão
Eu sou
Reich, Ferenczi & Jung
Eu sou o
Eterno Retorno
Eu sou o
espaço cibernético
Eu sou a
floresta virgem
das
garotas convulsivas
Eu sou o
disco voador tatuado
Eu sou o
garoto e a garota
Casa
Grande & Senzala
Eu sou a
orgia com o
garoto
loiro e sua namorada
de
vagina colorida
(ele
vestia a calcinha dela
&
dançava feito Shiva
no meu
corpo)
Eu sou o
nômade do Orgônio
Eu sou a
Ilha de Veludo
Eu sou a
Invenção de Orfeu
Eu sou
os olhos pescadores
Eu sou o
Tambor do Xamã
(& o
Xamã coberto
de peles
e andrógino)
Eu sou o
beijo de Urânio
de Al
Capone
Eu sou
uma metralhadora em
estado
de graça
Eu sou a
pomba-gira do Absoluto (Piva 2008, p. 74-75) (1)
Compararei com trechos de um texto arcaico, um
hino gnóstico descoberto entre os códices de Nag
Hammadi, datados do século IV d.C. É “O Trovão –
Intelecto Perfeito” (a seguir, os trechos que
transcrevi em minha tese sobre gnosticismo e
poesia, Um
obscuro encanto, publicada em livro em
2010):
Pois eu
sou a primeira: e a última
Sou eu a
venerada: e a desprezada.
Sou eu a
meretriz: e a santa.
Sou eu a
esposa: e a virgem.
Sou eu a
mãe: e a filha.
Eu sou
os membros de minha mãe.
Sou eu a
estéril: e a que tem muitos filhos.
Sou eu
aquela cujo casamento é magnífico; e a que não
se casou.
Sou eu a
parteira: e a que não dá à luz;
Sou
consolação: de meu próprio trabalho.
Sou eu a
noiva: e o noivo.
E o meu
marido é quem me gerou.
Sou eu a
mãe do meu pai: e a irmã do meu marido.
É ele
que é minha prole. [...]
Sou seu
silêncio incompreensível:
E
pensamento posterior, cuja memória é tão grande.
Sou eu a
voz cujos sons são tão numerosos:
E o
discurso cujas imagens são tão numerosas.
Sou eu a
fala: de meu próprio nome.
(Willer 2010, p. 94;
apud
Layton p. 96-97)
A repetição do “eu sou” confere qualidade
litúrgica a “O Trovão – Intelecto Perfeito”; a
série de antinomias lhe dá valor poético.
Tal expressão através
de antinomias, oximoros e paradoxos é arcaica
(2).
Pode ser encontrada em hinos órficos do século
IV d.C. No
Asclépio, um dos livros do
Corpus Hermeticum, “Deus é uma esfera
inteligível, cujo centro está em toda parte e a
circunferência em nenhuma”.
Nessas manifestações órficas, gnósticas,
herméticas e de outros cultos, o
Ser perfeito – em “O Trovão – Intelecto
Perfeito” quem fala é Barbelô, um princípio
feminino criador do universo – se expressa ou é
descrito através de antinomias por estar além do
princípio lógico da identidade e
não-contradição. O acesso a esse plano é através
da gnose, do conhecimento absoluto,
caracterizado por Layton como “entendimento
não-discursivo” (Layton 2002, p. 145; Willer
2010, p. 36) Por isso, oximoros e antinomias
reaparecem tão freqüentemente na produção de
poetas-místicos ou místicos-poetas como Rumi ou
San Juan de la Cruz, seguindo o pseudo-Dionísio
Areopagita: “A Causa perfeita e unitária de
todas as coisas está acima de toda afirmação, e
a excelência dAquele que está absolutamente
separado de tudo e acima de tudo supera toda
negação” (Lucchesi, 1994, p. 158). É a “teologia negativa”, que define a
divindade ou a esfera transcendental por
antinomias e negações, tal como exposta pelo
Mestre Eckhardt:
Deus
não é um nem o outro, como as diferentes coisas.
Deus é unidade. [...] Insisto: Se tomo a Deus
como um ser, isso é tão completamente falso como
se pretendesse que o Sol fosse pálido ou negro.
Deus com efeito não é isso nem aquilo.
(Eckhart 2002; p. 42 e 92).
A expressão por antinomias é forte em doutrinas
orientais, como nesta passagem do
Tao-te-Ching de Lao-tsé (livro de cabeceira
de Piva nos últimos anos):
O Tao
que pode ser pronunciado
não é o
Tao eterno.
O nome
que pode ser proferido
não é o
nome eterno.
Ao
princípio do Céu e da terra chamo “Não-ser”.
À mãe
dos seres individuais chamo “Ser”.
Dirigir-se para o “Não-ser” leva
à
contemplação da maravilhosa Essência:
dirigir-se para o Ser leva
à
contemplação das limitações espaciais.
Pela
origem, ambos são uma coisa só,
diferindo apenas no nome.
Em sua
Unidade, esse Um é mistério.
O
mistério dos mistérios
é o
portal por onde entram as maravilhas. (Cheng,
1996, p 14).
Na poesia, oximoros e antinomias comparecem
desde os clássicos, passando por barrocos e
maneiristas, até a poesia da modernidade, do
romantismo – associada
a tudo que o movimento romântico teve de crítica
ao cartesianismo e ao Esclarecimento, e de
rebelião antiburguesa. Em Baudelaire; há uma
mudança fundamental, uma inflexão exemplificada
pela
proclamação da identidade de contrários em “O
Heautontimoroumenos”:
Eu sou a
faca e o talho atroz!
Eu sou o
rosto e a bofetada!
Eu sou a
roda e a mão crispada,
Eu sou a
vítima e o algoz! (Baudelaire 1995, p. 166).
Comparando esses versos com “O Trovão –
Intelecto Perfeito” e os demais trechos de
doutrinas arcaicas e místicos aqui mencionados,
vê-se a passagem do abstrato para o concreto, do
geral para o particular, do sagrado para o
profano. Pares de opostos como “talho” e “faca”
e “rosto” e “bofetada” estão em oposição
diametral com relação aos arquétipos, aos
grandes princípios que regem o universo nos
textos filosófico-religiosos. Isso, por
Baudelaire entender o princípio hermético das
correspondências e da harmonia universal não
mais como relação entre o alto e o baixo, porém
como uma combinatória, uma intrincada rede de
relações entre todas as coisas existentes. E
dessas com a subjetividade: “O
que é a arte pura segundo a concepção moderna? É
criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo
tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao
artista e o próprio artista.” (Baudelaire 1995,
p. 789) A “magia sugestiva” superaria, portanto,
a dificuldade observada por Breton em seu
prefácio para Nadja: “Subjetividade e
objetividade travam, ao longo de uma vida
humana, uma série de combates, nos quais a
primeira costuma sair-se inteiramente mal”
(Breton 2007, p. 20).
Se Baudelaire transportou a antinomia da esfera
cósmica para aquela do sujeito e do mundo das
coisas, Lautréamont (autor matricial,
notoriamente, para surrealistas e Piva) como que
a arrastou pelo chão em
Os Cantos de Maldoror. Por exemplo, nas séries de
belo como,
como nesta série ao afirmar-se, diante de sua
imagem monstruosa refletida em um espelho:
[belo
como] o vício de conformação
congênita dos órgãos sexuais do homem, que
consiste na brevidade relativa do canal da
uretra e na divisão ou ausência da parede
inferior, de forma que o canal se abra a uma
distância variável da glande e abaixo do pênis;
ou, ainda, como a verruga carnuda, de forma
cônica, sulcada por rugas transversais bem
profundas, que se ergue na base do bico superior
do peru; [...] e, principalmente, como uma
corveta encouraçada com torreões! (3)
Há uma tradição da expressão através modos
não-discursivos que, na civilização ocidental,
tem origem em antigos cultos de mistérios, por
sua vez reaparições do xamanismo das sociedades
tribais (como bem exposto por Dodds) – o
xamanismo tão cultuado por Piva, constantemente
invocado em
Ciclones.
Na Antiguidade tardia, está presente em
doutrinas religiosas heréticas e divergentes com
relação aos grandes monoteísmos. Volta a aflorar
através de místicos, para reaparecer no
romantismo. A partir de Baudelaire, são
imanentes, propriedades do mundo, e não mais
exclusivamente de uma esfera transcendental ou
entidade divina.
A essa tradição se vinculam, de modo evidente,
Piva
e o surrealismo. Em Breton, fundamenta uma visão
de mundo: “Tudo indica a existência de um certo
ponto do espírito, onde vida e morte, real e
imaginário, passado e futuro, o comunicável e o
incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser
percebidos como contraditórios.” (Breton 2001,
p. 154) É uma de suas proclamações em favor do
pensamento analógico, contra a lógica do
discurso; porém declarando a imanência da
analogia, como enfatizaria adiante:
A
analogia poética difere fundamentalmente da
analogia mística por não pressupor, de modo
algum, através da trama do mundo visível, um
universo invisível que tende a se manifestar.
Ela é toda empírica em sua progressão, apenas o
empirismo podendo assegurar-lhe a total
liberdade de movimento ao salto que ela deve
fornecer. (Breton 1975, p. 109).
Não obstante a
distinção entre poesia e misticismo, tal como
sustentada por Breton, situam-se ambos, o
surrealista e Piva, na tradição caracterizada
com precisão por Octavio Paz em
Os filhos
do barro:
Apesar dessa vertiginosa diversidade de
sistemas poéticos – isto é: no centro mesmo
dessa diversidade – é visível uma crença comum.
Essa crença é a verdadeira religião da poesia
moderna, do romantismo ao surrealismo, e aparece
em todos os poemas, às vezes de uma maneira
implícita e outras, em número maior, de maneira
explícita. Denominei-a analogia. (Paz 1983,
p. 79)
Vanguardas e
movimentos inovadores efetuaram a recuperações
de tradições; criaram suas próprias tradições.
Atração pelo pensamento mágico, pelos mitos
arcaicos, por decorrência pelo esoterismo que
procurou perpetuar magia e mitos: aí está algo
partilhado por Breton e Piva, que subscrevia de
modo irrestrito o apelo ao esoterismo em
Arcano 17:
Os grandes poetas do século passado o
compreenderam [ao
esoterismo] admiravelmente, desde Hugo cujas
relações muito estreitas com a escola de Fabre
d’Olivet acabam de ser reveladas, passando por
Nerval, cujos sonetos famosos referem-se a
Pitágoras, a Swedenborg, por Baudelaire que
notoriamente vai buscar nos ocultistas sua
teoria das “correspondências”, por Rimbaud cujo
caráter de suas leituras nunca seria acentuado
suficientemente, no apogeu de seu poder criador
– basta remeter à lista já publicada das obras
que toma emprestado à biblioteca de Charleville
–, até Apollinaire, em quem alternam a
influência da Cabala judia e a dos romances do
Ciclo de Artur. Mesmo não sendo do agrado de
certos espíritos que só se sentem à vontade na
imobilidade e no óbvio, na arte esse contato não
cessou e não cessará de ser mantido. Consciente
ou não, o processo de descoberta artística,
embora permanecendo alheiro ao conjunto das suas
ambições metafísicas, não é menos enfeudado à
forma e aos meios de progressão da alta magia.
Tudo o mais é indigência, é banalidade
insuportável, revoltante: cartazes publicitários
e versinhos. (Breton 1985, p. 77)
Os infortúnios da recepção do surrealismo pela
crítica brasileira merecerão exame atento, na
ocasião oportuna (além do que já escrevi a
respeito). Como item ou tópico dessa má
recepção, observaria a recusa a identificar Piva
ao movimento encabeçado por Breton. Isso, por
representantes de um pólo da relação simpática
com Piva e idiossincrática com o surrealismo –
por exemplo, Pécora: “[...] anoto que se fala um
bocado sobre o “surrealismo” de Piva [..] sua
poesia evidentemente não quer produzir a recusa
de uma significação banal para entregar-se a uma
outra, banalíssima, na qual a ausência de
sentido é apenas uma regra estética [etc]” (em
Piva 2005, p. 12) – e de outro pólo da adesão
sectária ao surrealismo e da relação
idiossincrática com relação a Piva, representada
por Lima (por exemplo, em Löwy 2002, p. 142).
Sem disfarçar a intenção de polemizar com as
duas facções, adianto que discutir se Piva “é”
ou “não é” surrealista me parece aristotélico –
e cartesiano. Interessa discutir relações, para
além daquela mais evidente, que consiste em Piva
ter sido, por cinco décadas, um leitor do
surrealismo, conforme evidenciado através do que
escreveu. E não apenas por sua adoção de imagens
poéticas, por sua poesia onírica, pela
prodigalidade em matéria de epígrafes, citações,
menções e alusões, por
vezes de modo frenético – e de valiosas
indicações de leitura aos amigos, conforme posso
atestar. Já observei em outra ocasião (Willer
2010-b) que destacar o
Piva leitor é importante em um país com índices
tão altos de analfabetismo funcional e tão
baixos de leitura de livros. Foi manifestação de
inconformismo sua recusa a ser fácil e
discursivo; navegou contra a correnteza ao
apresentar-se como erudito, de uma erudição
não-curricular, nada acadêmica. Ter sido
um poeta-leitor o torna um permanente convite ao
comparatismo literário, o que de modo algum
conflita com seu modo de escrever, sempre
espontâneo, movido pela inspiração, criando
através da escrita automática (tenho acesso a
seus manuscritos: aqueles que rasurou foram os
que desistiu de publicar). A propósito, menciono
a notável contribuição de Riffaterre à melhor
compreensão da escrita automática em
surrealistas – especialmente em
Peixe Solúvel de Breton –, sempre mostrando como, nas criações mais
delirantes e à primeira vista menos
inteligíveis, há um sub-texto, um “inconsciente
do texto”, como diz esse semiótico, que é um
intertexto – um rastro mnemônico de leituras,
presumo.
É evidente a amplidão do intertexto de Piva, dos
clássicos aos contemporâneos, passando por
românticos, simbolistas e vanguardistas. Mas,
como sua relação com o surrealismo já foi objeto
de dúvidas – mesmo expressamente reafirmada, por
exemplo ao intitular um dos poemas de seu último
livro, Estranhos
sinais de Saturno,
de “Os Grandes Transparentes”, em alusão ao
“novo mito” proposto por Breton em seu
derradeiro manifesto –, volto a observar que a
demora, que pode ser medida em décadas, na
compreensão e recepção da sua obra, e deParanóia em
especial, resultou da surdez para o
não-discursivo na crítica brasileira. Há um
recalque brasileiro do surrealismo, que pode ser
associada às alternativas aceitas por nossos
letrados: a criação mais cerebral, seja buscando
a clareza do sentido, seja pelo caminho da
experimentação formalista.
Em
Ciclones,
a propósito de leituras de surrealistas, a
citação precisa de Aragon, algumas de René
Crevel, autor de sua predileção, e de Malcolm de
Chazal, mestre da analogia através dos epigramas
de imagens poéticas, inclusive aquela na qual
esclarece de onde veio o título do livro: “”A
volúpia está no centro do ciclone dos sentidos”,
retirada de
Sens-plastique.
Avancemos, através de outro
poema de Piva em
Ciclones,
intitulado “A oitava energia”, com dedicatória
“para Malcolm de Chazal & sua poesia
oscilatória; para Raymond Abellio, Câmara
Cascudo, Mircea Eliade, Julius Evola & a
tradição iniciática”:
Que você conheça
a estrela da loucura
Na sua verde boca animal
A paisagem mineral
rói o olho do peregrino
que procura seu Deus com chifres
Amo os garotos que cospem o sangue
das amoras
pelos lugares ermos, praias habitadas
por escamas de peixe, montanhas
& matas onde o anjo é um pau
duro no poente
Que você conheça o relâmpago
chamado mundo sombrio
Estremecendo na folha do seu
coração
Que você conheça este relógio sem nuvens
chamado morte
dependurado no planeta
como volúpia secreta
Que você conheça manguezais
& realidades não-humanas
que são a essência da Poesia
Que você
conheça o sussurro do Sol
Na água
ferruginosa dos seus olhos (Piva 2008, p. 68-69)
Não resisto à comparação do Piva de “Que você
conheça este relógio sem nuvens / chamado morte”
com o Breton de “A morte, cujo relógio feito de
flores campestres, relógio belo como a minha
pedra sepulcral erguida ao alto, voltará a
andar, na ponta dos pés, para cantar as horas
que não passam” em
O amor louco. Sincronias. Valho-me da minha condição não só de amigo
mas de interlocutor para afirmar que, sendo
leitor de
O amor louco de Breton (na década de 1970
ele me avisou que a edição portuguesa, na
tradução da poeta Luiza Neto Jorge, estava em
livrarias de São Paulo), nem por isso teve a
intenção de parafrasear, sintetizando-a, a bela
imagem de Breton.
Chamo a atenção para a epígrafe, com esse
arrolamento aparentemente arbitrário ou caótico
de autores: um surrealista, um etnógrafo, dois
ocultistas, um estudioso de mitos e história das
religiões. Comparo-a com outro trecho de Breton,
ao rejeitar o alinhamento em partidos políticos:
“Mas, se a minha própria linha, bastante
sinuosa, admito, mas quando menos minha, passa
por Heráclito, Abelardo, Eckhardt, Retz,
Rousseau, Swift, Sade, Lewis, Arnim,
Lautréamont, Engels, Jarry e alguns outros?”
(Breton 2001, p. 342 – também citado em Willer
2008-a) Assim Piva e Breton: produziram
antecedentes, forçosamente distribuídos, pela
diversidade, em “linhas sinuosas”, sempre
heterodoxas.
Mas do que trata o poema que li,
“A oitava energia” de Piva? De muita coisa,
certamente. Da ogdóada dos gnósticos e místicos,
da esfera superior que, em sua poesia e sua
poética, se confunde com o mundo. Da gnose, do
conhecimento total, equivalente à síntese do
sujeito com o objeto do conhecimento, como
indica o refrão “Que você conheça”.
Piva, um gnóstico? Fez questão de não deixar
dúvidas sobre sua simpatia por aquele monoteísmo
às avessas, aquele dualismo de adeptos que
aspiravam radicalmente à reconquista da unidade,
ao escolher como epígrafe do volume 1 de sua
Obra
reunida a observação de Alexandrian sobre
“gnósticos modernos”:
A
palavra Gnose é imortal e serve para designar,
ainda hoje, uma tentativa de vanguarda. [...] Os
gnósticos modernos são também aqueles que
procuram os pontos de concordância de todas as
religiões, que reivindicam uma moral
anticonformista, uma tomada de consciência das
instituições do pensamento mágico, enfim, todos
os que propõem um método de salvação aos seres
que se sentem “estrangeiros” neste mundo.
(Alexandrian s/d, p. 74)
Mas que relação teria essa doutrina arcaica, o
gnosticismo, com surrealismo? Com a palavra
Breton, que finaliza seu derradeiro manifesto
com o elogio à “intuição poética”: “Somente ela
nos fornece o fio que nos conduz ao caminho da
Gnose,enquanto conhecimento da realidade
supra-sensível, ‘invisivelmente visível num
eterno mistério’” (Breton 2001, p. 363)
Ou, de modo mais detalhado em “Flagrant délit”,
seu ensaio de 1947 que denunciou uma fraude de
Rimbaud:
[...] os gnósticos estão na origem da
tradição esotérica que consta como tendo sido
transmitida até nós, não sem se reduzir e
degradar parcialmente ao correr dos séculos.
[...] todos os críticos verdadeiramente
qualificados de nosso tempo foram levados a
estabelecer que os poetas cuja influência se
mostra hoje a mais vivaz, cuja ação sobre a
sensibilidade moderna mais se faz sentir (Hugo,
Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont,
Mallarmé, Jarry), foram mais ou menos marcados
por essa tradição. Não, é certo que se deva
tê-los por “iniciados” no sentido pleno do
termo, mas uns e outros pelo menos foram
submetidos fortemente à sua atração, e nunca
deixaram de testemunhar-lhe a maior deferência.
(Breton 1979, p. 211) (4)
Torna-se evidente, através do percurso já feito
pela história das antinomias e imagens poéticas
na poesia, que ambos, Breton e Piva,
vinculando-se a uma tradição, ao mesmo tempo a
inverteram, ou subverteram sua premissa
fundamental, o dualismo, e sua hierarquização do
cosmo. O elo com o gnosticismo – e ao mesmo
tempo entre ambos, Breton e Piva – pode ser
percebido com maior clareza através desta
citação de Hans Jonas, estudioso notável do
gnosticismo:
Os
expoentes gnósticos exibiam um pronunciado
individualismo intelectual, e a imaginação
mitológica do movimento como um todo era
incessantemente fértil. Não-conformismo era
quase um princípio da mente gnóstica,
intimamente ligado à doutrina do “espírito”
soberano como fonte de conhecimento direto e
iluminação. (Jonas 1963, p. 42)
É evidente – e isso também é atestado por suas
epígrafes, alusões e citações – que o universo
de leituras de Piva vai muito além dos autores
especificamente surrealistas. Fazem parte desse
“muito além” suas leituras de Dante Alighieri,
reiteradamente lembradas, inclusive no posfácio
de 20 poemas com brócoli, ao rememorar “os três anos de 1959 a 1961,
quando participei do curso sobre a Divina
Comédia dado pelo saudoso professor Edoardo
Bizzarri [...]”, e que teriam inspirado aquele
série de poemas:
Foi
repensando Dante Alighieri & relendo o Inferno &
o Paraíso [...] que surgiram, numa síntese
caligráfica & na eletricidade de uma manhã
paulista de 1979, estes 20 poemas com brócoli
[...] Foi freqüentando uma sauna de
subúrbio que inventei o molho propiciatório para
este casamento do Céu e do Inferno.
As
pequenas estufas de vapor para duas pessoas
nessa sauna me deram a imagem paradisíaca das
bòlgia onde os danados de Dante sonham eternamente. Mas os garotos
de subúrbio são anjos... (Piva 2006, p. 116)
Em outra ocasião já fiz a comparação entre os
vapores das saunas de Piva e as nuvens em
Breton: nos dois casos, proporcionando momentos
privilegiados de encontro de subjetividade e
objetividade. Em
O Amor
Louco, Breton e sua companheira sobem ao
Pico de Teide, nas Ilhas Canárias, e vêem o a
montanha ser encoberta por uma nuvem, levando-o
a argumentar que nuvens são um lugar do encontro
entre desejo e realidade: “levantar os olhos
daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, é a
melhor forma de interrogar nossos mais íntimos
desejos” (Breton 1971, p. 114). É perceber que
“toda a questão da passagem da subjetividade à
objetividade se encontra aqui implicitamente
solucionada”, através da “fusão do natural e do
sobrenatural no seio de um mesmo objeto”.
Leonardo da Vinci, lembra Breton, pedia a seus
alunos que olhassem as manchas em uma parede e
copiassem as formas que viam desenhar-se nelas.
As nuvens de Teide ou manchas na parede são as
telas em que se projetam imagens do desejo; a
projeção do desejo molda a realidade. Ainda
Breton: “Onde poderei eu estar melhor que no
seio de uma nuvem, para adorar o desejo, único
impulsionador do mundo, o desejo, único rigor
que o homem deve se impor?”
Como já observei em outras ocasiões, indagando
sobre a possibilidade de uma crítica surrealista
(Willer 2008-a, p. 318; Willer 2006), o
surrealismo é um instrumento de leitura; um meio
para enxergar mais em outros autores,
independentemente desses serem expressamente
vinculados ou não àquele movimento. Inclusive
para enxergar mais em Dante, como já o sugerira
Breton no
Manifesto do Surrealismo, ao abrir a série
de atributos surrealistas em predecessores:
(“Mallarmé é surrealista na confidêmcia. Jarry é
surrealista no absinto. Nouveau é surrealista no
beijo.”
etc): “Numerosos poetas poderiam passar por
surrealistas, a começar por Dante e, em seus
melhores momentos, Shakespeare” (Breton 2001, p.
41) É o procedimento de Piva com relação a
Dante, invertendo-o, transformando o Inferno em
Paraíso.
Para completar, apresentarei mais um poema de
Piva, de sua derradeira série de poesias,
Estranhos
sinais de Saturno, intitulado”Mostra teu
sangue, mãe dos espelhos”:
o
mistério lunar da menina
lésbica
linda
como um nenúfar
com seu
nome de pássaro
levando
na mochila
AS
CANÇÕES DE BILITIS
uma
coruja no ombro
& no
sangue os gritos
dos
náufragos de outrora (Piva 2008, p. 127)
Piva relatou-me a gênese desse poema. Viu no
metrô as duas moças abraçadas, uma delas com a
coruja tatuada no ombro e o livro de Pierre
Louïs na mochila. Imediatamente, escreveu o
poema. Ficou muito satisfeito por sua inclusão
em uma antologia de poesia brasileira dos
primeiros anos deste século (Pinto, 2006).
É a “iluminação profana” do Piva “flâneur”, que
sabia muito bem que “nenhum rosto é tão
surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma
cidade”, como havia dito Benjamin (citado, entre
outros lugares, em Breton 2007, p. 159). Como
tal, sincrônico com o Breton de
Les pas
perdus: “A rua, que eu acreditava capaz de
entregar a minha vida seus surpreendentes
desvios, a rua, com suas inquietações e seus
olhares, era meu verdadeiro elemento: lá eu
recebia, como em nenhum outro lugar, o vento do
eventual.” (Breton 1974, p. ) E com o Aragon de
O Camponês
de Paris, epigrafado com precisão em
Ciclones.
Tanto Piva quanto Breton, Aragon e demais
surrealistas nisso integraram uma tradição,
aquela de Baudelaire, o primeiro, no dizer de
Benjamin, a transformar Paris em tema de poesia
lírica – contudo, como já bem mostrou Flávia
Nascimento, a tradição da deambulação urbana
precede Baudelaire (Nascimento 2002 e 2006).
Talvez a presente argumentação apenas esteja
detalhando o que o próprio Piva – que nunca se
animou a escrever ensaios, textos de crítica
literária, mas se mostrou pródigo em matéria de
entrevistas –observou, inclusive em suas
derradeiras entrevistas:
O surrealismo está presente em toda a minha
obra. A linha mestra da minha poesia passa pelo
surrealismo, contudo não podemos esquecer do
futurismo italiano e do futurismo português,
sobretudo Fernando Pessoa, Sá-Carneiro e Almada
Negreiros.
(Vasques 2009)
Por isso, nunca pôs restrições a ser incluído em
antologias e outras publicações especificamente
surrealistas, como aquelas organizadas por
Floriano Martins (Martins 2001 e 2008); e
inúmeras vezes lembrou que a primeira resenha de
Paranóia
havia saído em uma publicação surrealista,
La Brèche
(em fevereiro de 2005), então dirigida por
Breton.
Isso não impede observar limites ou apontar
aspectos em que Piva e surrealismo se distanciam
ou divergem, como o faz Eliane Robert Moraes no
posfácio do volume 2 da
Obra
Reunida de Piva:
[...]
ainda que haja uma forte inspiração
surrealista na escrita de Piva, sua voz poética
sempre se particulariza quando comparada à
matriz francesa, a começar pelo efetivo
abrasileiramento do imaginário surreal que ele
deixa transparecer. Não bastasse isso, seria
preciso aludir à vocação “anarco-monarquista”
declarada pelo poeta, em franca oposição às
simpatias de Breton e seus companheiros pelo
marxismo, sem esquecer ainda o diferencial do
homoerotismo, rejeitado de forma categórica
pelos idealizadores do movimento. (em Piva
2006, p. 159)
Sim – mas nem tanto. Todos os poetas
surrealistas importantes tiveram uma voz poética
particularizada. Aqueles não-franceses
incorporaram sua formação à “voz poética” –
basta lembrar o quanto Aimé Césaire, outro poeta
da predileção de Piva, era surrealista e negro
antilhano. E, embora seja fato a homofobia
bretoniana (mas não dos “idealizadores” do
movimento – certamente não de Aragon), fizeram
parte do surrealismo René Crevel e Cesar Moro,
entre outros. E Piva, por décadas, declarou-se
marxista. Observei, em outras ocasiões que o
Piva a escrever crônicas na imprensa alternativa
na década de 1970 chamando os militares então no
poder de “fascistas” e apresentando-se
publicamente como “comunista” e aquele que
resolveu lembrar-se que freqüentara monarquistas
em 1958 e passou a investir contra a esquerda,
denunciando estalinistas (como no poema “A
bengala alienígena de Artaud”, em Piva 2008, p.
138) é o mesmo rebelde: mudou o restante. Com
acerto, a essa labilidade de Piva já foi
aplicada a categoria do “nomadismo” de Deleuze e
Guattari. Reciprocamente, a partir de 1940,
Breton abandonaria de modo evidente o marxismo
(mais a respeito em Luis, 1957)
Onde se pode marcar alguma distância de Piva com
relação ao surrealismo seria em nunca haver
integrado um grupo surrealista como tal, a não
ser muito tangencialmente; de não haver-se
filiado. Isso, por seu individualismo e
nomadismo; e pelas vicissitudes da constituição
de tais grupos ou movimentos no Brasil. Contudo,
grupos surrealistas são manifestação de algo
mais essencial, bem assinalado por Floriano
Martins: “[..] o Surrealismo introduziu, no
âmbito da poesia moderna, a idéia da criação
poética como um bem comum” (Martins 2008,p. 17).
Grupos foram a manifestação do que Lautréamont
havia proclamado: “A poesia deve ser feita por
todos, não por um”. E, em matéria de
coletivização da poesia através de procedimentos
surrealistas, Piva nos deixou suficientes poemas
coletivos, “cadáveres delicados” e escritas
automáticas (publiquei algo daquilo de que
participei, cf. Willer 2004, p. 98).
Mas associar Piva tão fortemente ao surrealismo
não seria ao mesmo tempo indigitá-lo como
anacrônico? Afinal, esse movimento é
classificado nos manuais como uma das
“vanguardas”, dos movimentos modernistas das
primeiras décadas do século XX. E mais, como
“última das vanguardas” (5).
Contudo, por sua persistência (da qual a poesia
de Piva é apenas um de inumeráveis exemplos), o
surrealismo resiste a ser classificado como um
dos “ismos” que antecederam ou sucederam
imediatamente a Primeira Guerra Mundial, a
exemplo do futurismo e seus correlatos em tantos
países, inclusive aquele que se apresentou no
Brasil através da Semana de Arte Moderna de
1922. Lembro que, através da sua produção e suas
manifestações, o surrealismo desempenhou um
papel importante na década de 1930, período de
internacionalização e crescimento da sua
atuação, e de participação ativa nos debates que
antecederam a Segunda Guerra Mundial. No
pós-guerra, nas décadas de 1940 e 50, foi
cultura de resistência ao questionar e
ultrapassar a dicotomia imposta pela Guerra
Fria, a opção entre stalinismo e macarthismo,
regime soviético ou sociedade capitalista. Nesse
período, associou-se a um novo ciclo
vanguardista, estimulando-o; passou a
representar o que, em outras ocasiões,
classifiquei como “segunda vanguarda” (Willer
2006 e 2009); utilizando um termo aplicado,
especialmente, ao surrealismo de Portugal, e
que, por extensão, vale para surrealismos nos
Estados Unidos, em outros países dos continentes
americanos e outras partes do mundo. Identificar
dois ciclos vanguardistas, um deles entre 1907 e
1924, outro entre 1945 e alguma data na década
de 1960, corrige um vezo disseminado, de rotular
movimentos – surrealismos mais recentes, geração
beat –
como vanguarda tardia, e assim descartá-los como
anacronismo, continuação de algo datado. Têm o
mesmo sentido rótulos como tardo-surrealismo
etc, através dos quais a rebeldia é
desqualificada.
É certo que a formação do surrealismo faz parte
do ambiente vanguardista do começo do século XX:
partilha com outros movimentos o espírito
antiburguês, a descoberta de novos modos de
expressão e a assimilação do que havia de mais
inovador e subversivo no simbolismo. Reflete um
espírito de época marcado pelas mudanças na
representação de mundo trazidas por avanços
científicos, ao mesmo tempo em que recebia a
influência de doutrinas esotéricas; e,
especialmente, por crises e pela guerra, pela
constante iminência da catástrofe.
Mas, sob a ótica surrealista, as demais
vanguardas teriam discutido questões formais,
ligadas à expressão artística e literária. Já o
surrealismo estaria voltado para a vida, o homem
em sua totalidade e a transformação do mundo.
Piva chegou a comentar comigo a passagem do
André
Breton, par lui même de Alexandrian na qual
esse argumentava que, enquanto o futurismo e
demais vanguardas haviam buscado a libertação
das palavras, o surrealismo havia buscado a
libertação da voz interior. Como bem sintetizou
Octavio Paz, em seu “André Breton ou a busca do
início”: “o surrealismo é um movimento de
liberação total, não uma escola poética” (Paz,
1972). Algo que, algumas décadas antes, Julio
Cortázar já havia observado:
Higiene prévia a toda redução classificatória: o
surrealismo não é um novo movimento que sucede a
tantos outros. Assimilá-lo a uma atitude e uma
filiação literárias (melhor ainda, poéticas)
seria cair na armadilha em que malogra boa parte
da crítica contemporânea do surrealismo. Pela
primeira vez na linha dos movimentos espirituais
com expressão verbal, uma atitude resolutamente
extraliterária prova que a profecia solitária do
Conde e do vagabundo se cumpre cinqüenta anos
após sua formulação.
“Liberdade cor de homem”, trecho de um poema de
Breton, serve como epígrafe geral do
surrealismo. A produção artística e literária
foi o modo de expressar o ímpeto transformador.
É um paradoxo estimulante o surrealismo ter
sido, no panorama de movimentos, grupos e
manifestações do século XX, o que mais recusou o
confinamento nas artes e literatura, e haver-se
mostrado tão produtivo nesses campos, provocando
o que Cortázar (no texto citado) designou como
“dilúvio lírico que só as fichas bibliográficas
continuam chamando de poemas ou romances.”
Por isso, é incorreto referir-se a uma “forma”
ou “estética” do surrealismo. Além de seus
propósitos irem além das questões formais e do
campo da estética, quando examinado de perto o
surrealismo é o reino da diversidade. O que Piva
partilhou com o surrealismo foi, em primeira
instância, o “inconformismo absoluto” proclamado
por Breton no final do primeiro
Manifesto do Surrealismo (Breton 2001, p. 63), em um parágrafo que
termina com a paráfrase de Rimbaud, inspirador
de ambos, Breton e Piva, de que “a verdadeira
vida não está aqui”.
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