REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 52 | junho-julho | 2015

 
 
JOÃO PEREIRA DE MATOS


A Dádiva

João Pereira de Matos (Lisboa, 1973). Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração), Requiem par'Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d'Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Ansiedade, angústia, velhas companheiras, irei despedir-me de vós. Sempre senti demais. Alma gentil, talvez, a mínima brisa, um sobressalto. E, depois, na vida quer-se tantas coisas e são tantas as dificuldades. Andam todos ao mesmo e cada um tem direito a lutar por si e para os seus. Nem adianta não querer. Há mil responsabilidades que decorrem da obrigação para com os outros. Desejar a inércia é um sonho tão impossível como ser imperador do mundo e comandar a humanidade a um destino de paz. O desassossego é, amigos, condição precípua de viver em comunidade.

Sempre a paixão d'imobilismo, indolência vital nas coisas da vida. Sempre. Como é boa a manhã florida. Afastar toda a preocupação com o que quer que seja. Não pensar. Experimentar a quase imponderabilidade que provoca a aragem suave e cálida no esplendor da luz em seu zénite e a clareira, um idílio campestre onde nada nos poderá ameaçar. Não naquele momento porque um sortilégio telúrico nos diz: «és eterno, incorruptível e o cosmo mesmo contém uma alegria quieta que tocará todas as fibras do teu ser, lhe insuflará vida e sorri em formosa conjugação com as inumeráveis criaturas do orbe». Porém, tal só dura aquele exacto instante e quando as forças da corrupção retomam o controlo, as exigências mesquinhas de todas aquelas quotidianas coisas que, constantemente, urgem, saberás que o sonho, a beatífica ilusão não perdura, que está mais distante que a mais distante estrela de uma galáxia esquecida no primeiro tempo de tudo. Volta a imersão no turbilhão dos afazeres, aquele aperto que te intima «faz!», quando a última vontade que se tem é fazer. O que quer que seja.

Foi assim que vivi. Contrariado e amargo na acção porque ninguém me deixou em paz nem eu a podia procurar como devia. Também queria conseguir isto ou aquilo. Cheguei a ter variada ambição. Às vezes intensa como febre malsã. Obsessão que preenchia de falso valor ou importância mas se o espaço intrapsíquico era pleno de uma necessidade o tempo passava pautado pelo sucesso ou malogro de tais empreendimentos. No meu íntimo sabia que toda a vanglória de nada importava. Contudo, quem liga aos recessos mais fundos de seu inconsciente? Devia ter largado tudo cortado os laços com o século para empreender a busca pela inércia total e boa de quem contempla a sempiterna vacuidade? Hoje, nos derradeiros momentos antes do final estertor sei que sim. Quando era novo ainda poderia ter professado o ditoso caminho rumo à iluminação pura, envelheceria sábio. Talvez emulando a planta que se contenta no seu vigor de seiva. Agora, neste fim em que só acumulei desperdício contento-me com um breve lapso de indigência radical que só está ao alcance do moribundo. Em um instante sou imortal, não o próximo que é o último, aquele outrossim que o antecede. Sim, quando se antevê o fim, aquilo que restar antes significa a imunidade total da presciência. Será esse o atributo dos deuses? Não que fossem para sempre, apenas que fossem na exacta circunscrição de um transparente destino? Sabendo quando iam, puderam ficar plenamente ao ponto de granjearem a funda admiração dos homens. Eis, outro modo de eternidade, aliás, prosaico: permanecer na memória de tão vívida imagem, retiniana obsessão, aquela que anule a potência d'olvido que, a bem dizer, é gerada pelo medo. Pois, transcendi-o. Soube ultrapassá-lo pela via da penúria, essa de nada querer. A dor atroz anula a distância porque tudo me é inacessível, a falência dos órgãos dispensa-me do seu cuidado coisa que até aqui, como todos, também fiz. A quase cegueira poupa-me às distracções das populosas imagens, até a memória com grandes pedaços d'ausência retém o que me é essencial, resume-me, a biografia é de novo leve, sem tantos pormenores que, por circunstância, de tão embaraçosos não interessam reter. Simplificação tão benévola que apague os momentos da falsa euforia, da esperança frustre, da breve alegria que antecedeu cada fracasso. E se a soma deles for, afinal, o produto desta biografia esquecê-los é derrotá-los, combater o medo e lográ-lo é uma última vitória. Não que vindique a vida pois para isso há que tornar a vivê-la mas naqueles instantes de decisão optar por outra senda, porventura aquela que levará a melhores horizontes. É pena que se não possa experimentar, voltar atrás, repetir. Um tempo-catraca que, constante, t'empurra não permite a tentativa provisória, uma possibilidade anulável assim que se percebe que essa direcção só te levará ao adensar da errância, da confusão e perda. Contra esse carácter definitivo só há o antídoto de uma superior irreversibilidade. E essa suprema, como calculais, só pode ser a morte. Assim, é tão total e abrangente que a sua mera proximidade altera o equilíbrio da luz e da sombra comum à vida. Há um recorte mais definido, uma distinção hipernítida entre o que importa e o que é acessório. Inverte mesmo a ordem anterior. Se no firme tempo da tua existência quotidiana os assuntos mais importantes porquanto continham um gérmen maior de felicidade possível eram os mais leves, agora, olhando o meu fim, é a gravidade do momento que exige uma peculiar pedagogia e contém uma singular exaltação.

Quisera um momento onde não houvesse nem terror nem tortura, maldição de estar vivo. E esses encontrei-os agora.

Quisera aquele instante mneumogénico de onde s'exudisse um sentido.

E esse encontrei-o agora.

Quisera aquela exalação que contivesse todas as outras. Mas livre do pânico d'agitar uma vez mais; e outra; o pulmão.

E essa encontrei-a agora.

Quisera o êxtase sem tumulto. A euforia sem a demora da queda. A unidade sem a desventura do múltiplo e a multiplicidade sem o desejo dilacerante do uno.

E esses, todos, encontrei-os agora.

Tudo isto concentrado é epifania porém com um único lamento, aquele resto que é inelutável questionação: porquê? Porque o motivo mais alto se alcança só no fim? A superior certeza, ao invés de princípio orientador de um nóvel porvir, é derramada na vida quando esta s'esvai. Centelha d'indescritível fulgor é conatural condição ao estertor. E como nada restará nem sequer o olvido – que este esplendor deixando-se enunciar não se deixa dizer – tem de ser experiência vivida. Talvez por isso até postule um deus. Há que guardar arquivo disto e como esta superlativa ventura só pode ser partilhada com a potesta da divindade, ela tem, a fortiori, de ser; para que algo fique e para s'escapar ao tormento de que quando se chegou ao cume, sem horizonte à excepção do fim, nada poder ver.

Um ínfimo instante mais e serei a contemplar a aura de luz que a coorte angélica espalha até à fímbria da mais baixa esfera terrena.

Será que não é a concentração máxima das potências da vida o que mata? E, assim, só se chega ao apogeu por decesso? Definha-se por excesso de força. Rebenta-se de incontido esplendor.

Bem entendido que esta plenitude é muito diferente dos verdores de juventude. Essa é alegria por vir, esta é serenitude já decessa.

É uma última batalha esta a de vencer o medo, é a derradeira expressão de uma individualidade, é o máximo apogeu das potências vitais quando se deparam com a radical anulação delas. Um fulgor único, irrepetível, só possível pela necessidade do seu término e, por isso, já sem a necessidade de poupar as forças. Qualquer chama antes do decesso brilha com mais intensidade em especial se se decidiu a uma final incandescência. E a consciência como labareda ciente de si, ainda pode escolher se se apega à sobrevivência e se esvai num lento e triste estertor ou se opta por queimar, em hecatombe de si, os resquícios combustíveis para uma final exalação. Dir-vos-ei que é esta a única escolha e que portanto nem é real opção mas uma exigência intrínseca de toda a sentiência. É esta quando se abdica do futuro. Quando toda a expectativa é pregressa, quando as forças da corrupção ainda em vida tornam demasiado evidente que se está perante o fim o que resta senão a ventura de um desafio às trevas negríssimas que se avizinham? E esse pode ser um texto como este, pode ser um salto naqueles abismos que sempre cobiçámos mas que por serem abismos e mortais não ousámos adentrar, pode, enfim, ser uma libertação prazentosa de todas as preocupações, uma antevisão da mais pura alegria serena da nulação da vacuidade. Não mais a angústia do tempo. Não mais as necessidades da vida. Nunca mais o medo e a determinação, tantas vezes humilhante, da sobrevivência do corpo, ou do seu conforto ou, mesmo, das exigências do espírito, dos seus tédios, do desassossego de ser.

É extrema esta felicidade: que assunto interessa, ainda, perante a anulação da morte?

 

 

© Maria Estela Guedes
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