REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 52 | junho-julho | 2015

 
 

 

 

LUÍS COSTA

Novas exumações

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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- Heiner Müller escreve um poema com a minha mão -

 

 

POR VEZES as mulheres 
atravessam os espelhos
nocturnos

 

explodem de dor

abrem-se como gretas

 

estremecentes

tornam  se  — Mães.

 

 

- Sarah Kane escreve um poema com a minha mão -

 

 

A CERTAS horas os ratos 
comem o meu rosto.
esta máscara que esconde
 

toda a minha miséria.

 

cheiro mal e as moscas 
varejeiras cheiram-me.
cobrem as minhas feridas.

 

quando isso acontece,
escondo-me no canto mais
obscuro da minha casa.

 

e escrevo. irada escrevo.
até que os ratos
 
e as varejeiras sintam nojo
 
de mim.
 
e fujam.

 

 

-  Felice Bauer escreve um poema com a minha mão -

 

 

- Kafka e os cães -

 

TODOS os dias, a seguir ao jantar, Kafka 
tem por hábito dar um passeio pelas ruas 
mais obscuras dos subúrbios de Praga. 
por vezes, fala com os cães rafeiros 
que por ali vai encontrando
( é uma espécie de terapia freudiana)
fala dos seus medos e obsessões, 
do terrível pai, dos amores frustrados,
da solidão, da grande e terrível solidão... ah...
fala e fala, fala e fala.
e os cães olham-no atenciosamente
com os seus olhos cansados e tristes
de cães que nasceram para a miséria da vida. 
como se o compreendessem, assim o olham. 
depois, erguem a perna 
e mijam nos sapatos de Kafka.
ao que Kafka sorri, e diz: só vós me compreendeis.

 

 

-  Louis Ferdinand Céline escreve um poema com a minha mão -

 


-Voyage au bout de la nuit -

 

                     Tout ce qui est intéressant se passe 
                                     dans l'ombre, décidément.

 

 

A NOITE entra 
pela porta das traseiras.

acordam. escarram. 
carregam as armas.
ardem.

 

são os deuses em cabedal. 
monstruosamente belos.
os deuses das ruas.
 
sujas. das periferias.

 

( o underground ).

 

todo o nojo possível.
nos alvéolos.

 

por cima: 
 paisagens sublimes.
 
fatos honestamente
 
engravatados.

 

torres! torres!

 

a grande cegueira. 
ah a tremenda cegueira!
engomadamente
contagiante.

 

a grande cegueira!

 

só a destruição e a morte 
ainda contam — o solo das fissuras.

infecháveis .

 

a monstruosidade.

 

 

- Maiakowski  escreve um poema com a minha mão -

 

 

MORREU um poeta – e depois? 
morreu como todos 
nós havemos de morrer 
só por que era poeta 
deveria ficar para semente?

 

morreu um poeta – e depois? 
outros e outros e tantos 
outros hão - de morrer, e nascer.

 

só porque morreu um poeta 
a poesia não vai desaparecer 
outros e tantos outros poetas 
hão - de continuar a escrever.

 

pois a poesia não é só um poeta, 
nem nunca dependeu de um só poeta 
a poesia é uma voz múltipla 
de tantos e tantos poetas 
que fazem movimentar 
a pata poética.

 

morreu um poeta – e depois? 
morreu e assim é que deve ser 
pois dia menos dia 
todos nós havemos de morrer

 

cumpriu a sua missão: nasceu, 
comeu , cagou, fodeu, chorou 
escreveu, cantou... e, por fim: bateu
a bota. que deus o tenha!

 

a poesia essa, porém,

p- p- p- ... prevalece.

 

 

 - Um suicida escreve um poema com a minha mão -

 

 

MORRER com um poema 
cravado na garganta

 

(como uma estaca)

 

um poema que morre 
no silêncio.
 
no nada.

 

o nada.

 

porque esse é de facto 
o poema dos poemas.

 

 

-  Vladimir Maiakovski escreve outro poema  com a minha mão -

 

                                       Se as estrelas se acendem será por que 
                                                                      alguém precisa delas?

 

AS ESTRELAS acendem-se 
por que se acendem 
para lá de todas as politiquices 
ou vaidades humanas 
estão altas e na sua altura 
não há qualquer sublimação 
ou humanização 
e se um dia se apagarem 
apagaram-se porque... 
porque sim ou porque não 
a verdade é que 
pouco lhes interessa 
se gostas ou não delas 
ou por exemplo 
se lhe escreves poemas 
ou dizes que deus está morto 
ou tens medo no escuro 
ah, medo no escuro...

etc. etc. etc. 
e se morreres hoje 
amanhã, ou depois de amanhã 
de morte natural ou com um tiro 
(pela própria mão) na cabeça 
ou até enforcado
elas continuarão a brilhar 
se ainda lá estiverem 
( claramente claro ) 
como sempre o fazem 
como sempre o fizeram 
pois a tua morte ou a minha 
pouco interessa às estelas

 

como dizia o meu avô maneta 
que andou na 1 grande guerra: 
as estrelas são cruelmente belas 
sem metafísica, nem querelas.

 

- Antonin Artaud escreve um poema com a minha mão -

 

- Rosas -

 

                                        São rosas, meu senhor!

 

 

ENTRO pelo orvalho desta
manhã com um molho
 
de flores nos braços

 

entro

 

sou um animal orvalhante
caminhando pelo orvalho
 
desta manhã

 

orvalhante 
com um molho de flores
nos braços

 

são rosas, meu amor 
rosas brancamente negras

 

as lúcidas rosas da loucura.

 

- James Douglas Morrison escreve um poema com a minha  -

 

 

DESCEU ao jardim escuro
onde os fantasmas despedaçam a lua
e imerso na mais completa obscuridade
desesperado, berrou:

 

degolei o meu pai, fodi a minha mãe
sou um arquétipo freudiano.

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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