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Heiner Müller escreve um poema com a minha mão -
POR
VEZES as mulheres
atravessam os espelhos
nocturnos
explodem de dor
abrem-se como gretas
estremecentes
tornam
se — Mães.
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Sarah Kane escreve um poema com a minha mão -
A
CERTAS horas os ratos
comem o meu rosto.
esta máscara que esconde
toda a minha miséria.
cheiro
mal e as moscas
varejeiras cheiram-me.
cobrem as minhas feridas.
quando
isso acontece,
escondo-me no canto mais
obscuro da minha casa.
e
escrevo. irada escrevo.
até que os ratos
e as varejeiras sintam nojo
de mim.
e fujam.
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Felice Bauer escreve um poema com
a minha mão -
- Kafka
e os cães -
TODOS
os dias, a seguir ao jantar, Kafka
tem por hábito dar um passeio
pelas ruas
mais obscuras dos subúrbios de
Praga.
por vezes, fala com os cães
rafeiros
que por ali vai encontrando
( é uma espécie de terapia
freudiana)
fala dos seus medos e obsessões,
do terrível pai, dos amores
frustrados,
da solidão, da grande e terrível
solidão... ah...
fala e fala, fala e fala.
e os cães olham-no atenciosamente
com os seus olhos cansados e
tristes
de cães que nasceram para a
miséria da vida.
como se o compreendessem, assim o
olham.
depois, erguem a perna
e mijam nos sapatos de Kafka.
ao que Kafka sorri, e diz: só
vós me compreendeis.
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Louis Ferdinand Céline escreve um
poema com a minha mão -
-Voyage au bout de la nuit -
Tout ce qui est intéressant se passe
dans l'ombre, décidément.
A NOITE
entra
pela porta das traseiras.
acordam. escarram.
carregam as armas.
ardem.
são os
deuses em cabedal.
monstruosamente belos.
os deuses das ruas.
sujas. das periferias.
( o
underground ).
todo o
nojo possível.
nos alvéolos.
por
cima:
paisagens sublimes.
fatos honestamente
engravatados.
torres!
torres!
a
grande cegueira.
ah a tremenda cegueira!
engomadamente
contagiante.
a
grande cegueira!
só a
destruição e a morte
ainda contam — o solo das fissuras.
infecháveis .
a
monstruosidade.
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Maiakowski escreve um poema com a
minha mão -
MORREU
um poeta – e depois?
morreu como todos
nós havemos de morrer
só por que era
poeta
deveria ficar
para semente?
morreu
um poeta – e depois?
outros e outros e tantos
outros hão - de morrer, e nascer.
só
porque morreu um poeta
a poesia não vai desaparecer
outros e tantos outros poetas
hão - de continuar a escrever.
pois a
poesia não é só um poeta,
nem nunca dependeu de um só poeta
a poesia é uma voz múltipla
de tantos e tantos poetas
que fazem movimentar
a pata poética.
morreu
um poeta – e depois?
morreu e assim é que deve ser
pois dia menos dia
todos nós havemos de morrer
cumpriu
a sua missão: nasceu,
comeu , cagou, fodeu, chorou
escreveu, cantou... e, por fim: bateu
a bota. que deus o tenha!
a
poesia essa, porém,
p- p-
p- ... prevalece.
- Um suicida escreve um poema com
a minha mão -
MORRER
com um poema
cravado na garganta
(como
uma estaca)
um
poema que morre
no silêncio.
no nada.
o nada.
porque
esse é de facto
o poema dos poemas.
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Vladimir Maiakovski escreve outro
poema com a minha mão -
Se as estrelas se acendem será por que
alguém precisa delas?
AS ESTRELAS acendem-se
por que se acendem
para lá de todas as politiquices
ou vaidades humanas
estão altas e na sua altura
não há qualquer sublimação
ou humanização
e se um dia se apagarem
apagaram-se porque...
porque sim ou porque não
a verdade é que
pouco lhes interessa
se gostas ou não delas
ou por exemplo
se lhe escreves poemas
ou dizes que deus está morto
ou tens medo no escuro
ah, medo no escuro...
etc. etc. etc.
e se morreres hoje
amanhã, ou depois de amanhã
de morte natural ou com um tiro
(pela própria mão) na cabeça
ou até enforcado
elas continuarão a brilhar
se ainda lá estiverem
( claramente claro )
como sempre o fazem
como sempre o fizeram
pois a tua morte ou a minha
pouco interessa às estelas
como dizia o meu avô
maneta
que andou na 1 grande guerra:
as estrelas são cruelmente belas
sem metafísica, nem querelas.
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Antonin Artaud escreve um poema com a minha mão -
- Rosas
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São rosas, meu senhor!
ENTRO
pelo orvalho desta
manhã com um molho
de flores nos braços
entro
sou um
animal orvalhante
caminhando pelo orvalho
desta manhã
orvalhante
com um molho de flores
nos braços
são
rosas, meu amor
rosas brancamente negras
as
lúcidas rosas da loucura.
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James Douglas Morrison escreve um poema com a minha
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DESCEU
ao jardim escuro
onde os fantasmas despedaçam a lua
e imerso na mais completa
obscuridade
desesperado, berrou:
degolei o meu pai, fodi a minha mãe
sou um arquétipo freudiano.
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