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No fundo do corredor, no quarto 9, Matilde ainda
dorme. Sempre gostou de acordar tarde. As persianas estão corridas, mas
a escuridão não é total. Um raio de luz banha-lhe os cabelos nevados,
acaricia-lhe os sulcos que os anos -os oitenta, chegaram, sem avisar, na
semana passada, no último dia de Outubro - lhe lavraram no rosto.
Abre os olhos e contempla com uma serena tristeza a
cama vazia, na outra ponta. A morte roubara-lhe a companheira de quarto,
com quem não tinha qualquer afinidade: duas estranhas, num espaço
estranho. Ficara somente uma vaga pena, como uma sombra distante que se
esvai, diluída numa sensação de alívio. Esperava, agora, finalmente ter
“um quarto só para si” como diria Virgínia Woolf. Quando pensava na
tranquilidade da solidão, sentia um vago remorso pelo seu egoísmo. A
verdade é que sempre prezara a sua privacidade.
Só partilhara o quarto com o marido que havia
partido, depois de um longo sofrimento, corroído por um implacável
cancro. Também a ela a temida doença havia lançado os seus tenazes
assassinos, mas vencera-a. Agora era a doença de Parkinson que lhe
minava, lentamente, os músculos, parecendo, por vezes, as mãos ganharem
vida própria através dos tremores.
Em cima da mesa-de-cabeceira, uma moldura
fixou um momento longínquo de
felicidade: ela, na juventude madura dos trinta, o marido, ainda na
pujança da saúde e a filha, ainda despreocupada e feliz. Depois, o pano
de fundo: o solar antigo que haviam reconstruído e recuperado pedra a
pedra, alcandorado numa pacata vila, entre o mar e a serra. Mais tarde,
aquela casa fora vendida apressadamente para fazer face ao fantasma da
doença do marido. Sucederam-se os tratamentos nos Estados Unidos, todos
infrutíferos, pois ele piorava de dia para dia.
Antes tinham vivido alguns anos em Inglaterra, onde
José, engenheiro de profissão, exercera funções. Lá, Matilde havia
concluído o mestrado e o doutoramento e dera à luz a sua Camila, agora
“soror Joana” - Carmelita dedicada, filha distante, inexistente,
poderíamos mesmo dizer. Vira-a no mês passado quando a deixou ali, sem
mais explicações à excepção de: “A mãe está demasiado velha e doente
para viver sozinha”. Respondera-lhe secamente que sempre cuidara de si e
que não precisava da compaixão dela para nada, que regressasse ao seu
convento, à sua clausura, ao universo onde se refugiara por fé, ou quem
sabe, para fugir de algo que ela própria desconhecia.
Em mais de vinte anos de vida monástica, fora a
segunda saída de “soror Joana”. Isso representaria para ela a violência
de romper com as sete orações diárias em conjunto e com as restantes
horas de contemplação e oração solitária. O mundo real era sempre um
sacrifício quase desumano. Desde que ultrapassara a barreira etária dos
quarenta, parecia ainda mais amarga e fechada. Engordara alguns quilos,
embora mantivesse a discreta beleza que o hábito se esforçava por
ocultar.
Na noite anterior ao seu internamento compulsivo no
lar, Matilde havia caído na banheira, desmaiara e fora a empregada
doméstica quem a havia encontrado, inconsciente e gelada. Além da
hipotermia, fizera várias contusões num ombro e fracturara dois dedos.
É verdade que aquele Lar era o melhor da zona:
asséptico, com um número adequado de funcionários, médico e enfermeira
em serviço permanente, sala de informática, biblioteca e até um pequeno
jardim, onde o sol inundava, a certas horas,os bancos de madeira
vermelhos.
Camila-Soror-Joana deixara-a na sala e saíra
apressadamente, sem sequer se preocupar em ver o quarto onde a mãe iria
ficar, nem com o facto de o ter de partilhar, contrariada, com outra
pessoa. Nunca mais voltara, nem telefonara. Mas sempre fora assim. “O
seu reino não era deste mundo”.
Nos primeiros anos, Matilde e José chegaram a
percorrer o país de lés a lés para a tentarem visitar. Porém, havia
demasiadas grades entre eles e a proximidade geográfica era uma mera
ilusão.
Oriunda de uma família aristocrata e abastada do
Porto, Matilde completara o liceu num colégio interno de religiosas.
Desses tempos não guardava boas recordações. Era uma das alunas
privilegiadas, devido à condição económica e ao prestígio da família. No
entanto, era tudo muito frio, muito impessoal, demasiado regulamentado.
Ela era filha mais velha e a irmã, oito anos mais nova, tinha problemas
de saúde que exigiam atenção e vigilância constantes. Por isso,
desenvolvera um profundo ressentimento relativamente à irmã, que havia
permanecido sempre no seio familiar, enquanto ela se sentira “relegada”
para um outro espaço, para um segundo plano, onde cresceu a sua
tendência natural para a frieza e para ocultar os seus sentimentos
através de uma máscara de indiferença e distância.
Em contrapartida, iniciou um percurso académico
brilhante, que começou por ser o seu refúgio, a única muralha
inabalável, num mundo desprovido de carinho, de afecto. As suas relações
com a família haviam ficado marcadas por uma profunda distância. O
último contacto com a irmã acontecera havia muitos anos: os
ressentimentos e os ciúmes relativamente àquela que sempre fora a “filha
favorita”, rodeada do carinho e da atenção que lhe haviam sido
recusados, tinham ditado um corte definitivo de relações.
Embora Matilde continuasse católica –mas
de um catolicismo, por vezes
pejado de dúvidas ou mesmo de cepticismo –custava-lhe a
entender a filha. Nunca percebera
a dimensão da sua fé ou da sua revolta, nunca a conhecera minimamente –
e, se calhar, também porque não se esforçara o suficiente para fazê-lo.
Numa altura em que ela lhe solicitara uma maior atenção, Matilde estava
demasiado ocupada com a sua carreira académica. Era o marido quem
estabelecia, por vezes, a “ponte” entre elas. Isto porque, no fundo, ela
considerava-a como um “dado adquirido”: fora uma criança desejada,
amada, tinha um bom nível de vida, podia comprar tudo o que quisesse,
nunca nada lhe fora recusado, ou seja a sua obrigação maternal
considerava-se cumprida.
Quando enviuvara, a solidão pesou-lhe de tal modo,
que chegou a pensar em professar e entrar também para um convento.
Depois, lucidamente percebeu que lhe seria impossível. Sempre fora uma
mulher livre, independente e com um mau feitio que lhe dificultava o
relacionamento com os outros. Não fora talhada para viver numa
comunidade. Até ali, no lar só
saia do quarto para as refeições, o convívio não a atraía minimamente.
Além do mais, considerava-se superior aos outros pelo nível cultural e
também devido a uma complexa personalidade algo narcisista e
egocêntrica.
Ainda em cima da mesa-de-cabeceira e debaixo do
retrato encontrava-se o “postal”. O único que recebera no dia do seu
aniversário, como costumava suceder, desde há uns oito anos, altura em
que as pessoas mais próximas haviam partido, levadas pela morte ou pela
própria vida. Sim, porque para além dos amigos e familiares que perdera,
havia outros com os quais se incompatibilizara e que lhe haviam sido
roubados pela vida. Embora não tivesse mau carácter sempre fora uma
pessoa de temperamento complexo e difícil. A própria relação com o
marido, o “homem da sua vida”, fora marcada por diversas turbulências e
convulsões, só ultrapassadas pela profundeza do amor que os unia e pela
infinita paciência que o habitava.
Tinha uma natureza algo violenta, que a tornava
rancorosa, desconfiada, de um perfeccionismo exacerbado que desembocava
frequentemente na mesquinhez. Existia nela uma confluência exagerada da
busca da perfeição e de uma exigência fria, muitas vezes irracional
perante si própria e os outros. Depois, havia a outra face da moeda: a
solidariedade, os rasgos de humanidade, de generosidade, por vezes,
surpreendentes, uma espécie de protecção tirânica perante os seres
amados.
Ao longo da sua brilhante carreira académica,
deixara também um rasto de incompreensões, invejas, incompatibilidades,
que lhe ditaram um isolamento e uma solidão cada vez mais profundas.
Constatava agora a dimensão que haviam adquirido
todas as suas lutas vãs. Já de nada lhe servia o prestígio, muito menos
o poder. Naquele local, configurado como uma espécie de ante-câmara da
morte, todos eram iguais. Mais tarde, quando fossem “pó, cinza e nada”
ainda mais idênticos seriam, visto que, no fundo a condição humana
irmanava todos os seres humanos, independentemente do estatuto social ou
das ambições concretizadas ou vencidas.
Abriu o envelope e releu o
postal pela vigésima vez.
Há muitos anos que o hábito de enviar postais em papel se havia perdido.
Por isso, parecia ter ainda mais valor e podia tê-lo sempre junto de si,
ao contrário do que sucedia com os e-mails ou sms. Aquele fora enviado
por uma ex-aluna, a Cristina, uma das poucas que se tornara sua amiga,
de uma lealdade desmedida. Inicialmente, durante as aulas, quase não
reparara nela, era apenas mais um rosto, no meio de uma plateia amorfa e
indistinta. Certo dia, surpreendeu-a pelas notas brilhantes, o ar
sincero, de uma alegria pura e expansiva. Viera dos Estados Unidos, num
intercâmbio, após o divórcio dos pais, e estava sozinha em Portugal.
Orientara-lhe o mestrado e a amizade cresceu, sedimentou, com altos e
baixos, como é costume nas relações humanas, principalmente nas mais
profundas e duradouras. Apesar de todos os espinhos, aquela amizade
florira, desabrochara e permanecera, embora ancorada, desde há algum
tempo, na distância: Cristina havia regressado aos Estados Unidos,
casara e tinha três filhos. Prometera ir visitá-la à nova morada quando
viesse de férias.
“Querida
Professora (sempre a tratara assim) espero que este aniversário se
renove por muitos e bons anos, repletos de saúde e de felicidade…”muitos
beijos da Cristina. Aquelas palavras ternas haviam-lhe trazido a
única alegria, uma réstia de esperança, num dia cinzento e frio.
Iluminaram-lhe a alma, acendendo-lhe a certeza de que afinal ainda valia
a pena, apesar de tudo, estar viva. Enquanto houvesse alguém
a pensar nela, a enviar-lhe
ternura e carinho. Às vezes bastava tão pouco para dar sentido ao verbo
“existir”. Na verdade, como escreveu O’Neil, “Há palavras que nos
beijam/ como se tivessem boca…”
Dora Nunes Gago
In A Oeste do
Paraíso (adaptado), 2012
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