REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 49 | dezembro-janeiro | 2014-15

 
 

 




JOÃO RASTEIRO

O amor a fazer de Deus

João Rasteiro (Coimbra, 1965). Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela FLUC/U.C. Poeta e ensaísta, traduziu para o português poemas de Harold Alvarado Tenorio, Miro Villar, Juan Carlos Garcia Hoyuelos, Enrique Villagrasa e Juan Armando Rojas Joo. Publicou poemas em Portugal, Brasil, Itália, Espanha, Finlândia, República Checa, Colômbia, Moçambique, México e Chile e possui poemas traduzidos para o Espanhol, Italiano, Inglês, Francês, Finlandês, Checo, Catalão e Japonês. Obteve vários prémios, nomeadamente a “Segnalazione di Merito do Concurso Internacional Publio Virgilio Marone”, Itália, 2003 e o “Prémio Literário Manuel António Pina”, 2010. Foi um dos 20 finalistas (Poesia) do Prémio Literário Portugal Telecom de Literatura, 2011. Publicou 11 livros, e em Janeiro de 2014 apresentou em Madrid (Lastura) uma antologia bilingue da sua poesia, intitulada “Pequena Retrospectiva del Puesta en Escena”.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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1

É o mundo

o meu corpo como efígie

é um tigre de pueril condição

a minha invisível fé no amor

ficou na grande migração do templo

no esquife que se cerrou

ocultando o teu rosto

disponho

a tua involuntária imagem 

de braços abertos à lava da crença

a paixão e o desejo

em encetadas mãos iludidas

ó dilecção da dissidência do desejo

na antologia Dobra

o sagrado e o profano sem igual

saber de Adília Lopes

abro a arca das vozes e dos milagres

na fíbula do lipídio corpo

enxuto e ávido

bebo a água 

 

 

 

2

Acometer a azagaia esverdeada

que se acalenta entre o meu corpo e o seu

sustentada na votiva blasfémia

apenas me concebe a compaixão

e não é por compaixão

a cada um o logro

o eleito fascínio dos sálios 

 

 

 

 

3

Apareces como um discípulo

eu que nunca venerei os anais do discípulo

amei-te e contigo todos os discípulos

na ansiedade do mosto

e amando a deferência

o denodo do divino como a si mesmo

caem girassóis do teu corpo

galgam mundos como alucinados meteoritos

substituindo a primitiva utopia da magnólia

e penso em Deus (como seria ele?)

para a lídima incerteza

o amor nem basta a uma aurora 

 

 

 

4

 

Outros são os devaneios que granjeamos

no reverso das alvuras

em prematura ignomínia do esplendor

e enunciaremos amor o céu a terra o fogo

a cruz a restrita índole do gáudio

a procedência inefável do miso

e o misterioso sopitar e apatia de Deus

(a densidade do seu imaginário expeliu)

cobriu-se de igual modo copioso

e jamais se pode ser fecundo e arrogante:

um desejo não é uma oração 

 

 

 

5

 

(não te satisfaças com o perianto

de um poema: conspira melhor a virgindade

da rosa e no orifício do Incriado a pétala

creio que ela apenas pétala

um corpo puro cúspide de oiro)   

 

 

 

6

Ainda acredito

que tenhas existido pois

concebo voltar ao pesar das arestas

nesse lugar ainda é “possível

encontrar Deus pelos baldios”

e Adília sob a “árvore cortada”

onde está suspenso o fruto da carniça

olhar o amor no seu devido lugar

e colher do musgo uma flor

 

 

 

7

Deixa que as palavras tumulem

as palavras com as estirpes arreigadas: o veio

alimentando todos os movimentos

o tríduo do canto das folhas

expiando a pureza do amor em que te aceitas

antes da eclosão dos temores

antes dos ciprestes e das oliveiras

antes de Deus

o lenho extraído desse corpo

para onde adejarão os corvos

após o último azul

a maculada cabeça e a sua representação

a extrema beleza que nos desfaz

 

 

 

8

Algumas criaturas já só estão estendidas

e de olhos incindidos na sufumigação dos céus

outras cerceiem os espasmos de Deus

que geram recreações de bem-querer

apenas a estria da cegueira

nas púberes percepções relativas à arquitectura

que nunca se repete

o riso do decesso é sempre em função do sol

e dos lícitos “versos verdes” da aurora

 

 

 

9

No concipio das constelações

sob o espanto que fica depois de passar a flor

faça-se com que os crentes

alimentem os seus crentes na escuridão

negar a extrema beleza da impiedade

é da ordem da abominação e da degeneração

do amor (este conceito começa aqui

e aí em oração na boca do poço da Babilónia)

como fonte de tudo o que Deus não

assumiu como próprio: genderqueer

amor e Deus Verbo e sílaba

a morte enquanto poema

impelido pela expurga do exterior.

 

 

10

Eu espiarei como aporia

esta é uma dobra sui generis

um poema tíbio um 

um sóbrio soco para as delicadezas do mundo

um amor urdido um

Deus para a polimorfia da sílaba

acredito que floriremos numa blasfémia

de crueldade sem precedentes

e só assim seremos felizes: na invenção

impessoal do revérbero

l'art et la polymère

que irá iluminar a apropriação do mundo

(shit shit shit o amor a fazer de Deus)

 

 

11

O instante das linhagens e das porções

a estesiologia do jogo

por fim L'Amour et l'Occident

é aquele ou aquela

que jamais logra deixar de mover-se na fraude

um amor na cércea de Deus

que se mestiça sob o oestrus

a copiosa época do cio

e por conseguinte um modo de pegar

a sacrílega língua  

 

 

 

12

E desobrigo-me do sobejo

e da impura egolatria dos poemas

no continuo olfacto dos miosótis

e é de uma premente revelação que

o verso no fundo da solidão das procelas

narceja pelos campos

o tempo de novos baldios

o amor cambiando Deus

na devoluta excisão por outra devoluta

que não exortará a alegria: a dobrez

é única na intimação

dessa condição de utopia venosa

uma por uma a desdobra  

 

 

 

 

13

O primeiro requisito para um poema

é que este deve iludir

o seu sensível e estimável autor

a libidinal fidelidade da visão

(“Deus aborrece as tíbias

Deus vomita as tíbias”) Adília

canta: a arte da farsa e do jogo sob os céus.

 

 

 

João Rasteiro . 2014

 

O homem se fez Deus

(o sagrado furúnculo do verme)

 

Livro das Maldições

   
  Participação nas "Raias Poéticas", 24-25 de Outubro de 2014, Vila Nova de Famalicão
 
 

 

© Maria Estela Guedes
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