01- Em seu entender, o que constitui um autor maldito?
Nicolau Saião – O desnível existente - da sociedade ou de parte dela
para o autor ou deste para aquela - entre os respectivos planos da vida
quotidiana ou qualitativa.
Concretizando: dum lado a incapacidade de quem rege a sociedade para
estar - por incúria ou por disfunção (egoísmo interesseiro, primarismo,
prepotência…) - à altura da aventura interior do sujeito, encarado como
mero objecto; do outro a impossibilidade deste se conciliar com essa
sociedade, tornada relapsa ou criminal quando não despejadamente
criminosa. Mas sempre vazada numa cegueira filha do desleixo ético e da
menoridade conceptual. Em suma, a impossibilidade de os dois coincidirem
num plano harmonioso e criativo e, nesta medida, gerador de mais
elevadas mútuas formulações vitais.
02 - De que forma a marginalidade e a transgressão são traços
necessários para uma definição moderna do sujeito artístico?
NS
– Numa sociedade capturada pela pequena ou grande infâmia a que os seus
próceres de topo recorrem para perpetuar o domínio sobre o homem comum
ou, melhor dizendo, sobre os cidadãos que muitas vezes se tornam peças
infelizes dessa protérvia habilmente mantida ou descaradamente
efectuada, o sujeito artístico – se for minimamente consciente ou
normalmente honrado – inevitavelmente terá de estar nesse campo que
aqueles aliás tentam minar.
Diria que é uma inevitabilidade. Doutra forma correrá o risco de fazer
parte da chamada “légion canaille” que é a que serve (através de ersatz
“artísticos”, idos ou não a Versalhes…) os que visam fazer do mundo uma
quintarola para os seus caprichos ou festejos galantes.
03 - Concorda com a ideia de que o Surrealismo é um
prolongamento da tradição romântica?
NS
– De forma alguma.
Vejamos: a inflexão surrealista existiu sempre, dos primórdios da vida
até aos nossos dias conforme a História nos mostra. Desde o tempo das
cavernas até aos dias de hoje (e continuará pelo futuro adiante).
O
que o romantismo fez foi levar até um dado ponto, dando-lhe foros de
cidadania, esse sentir pulsante duma parte do inconsciente pessoal ou
colectivo que até então estava ausente do imaginário artístico e mesmo
existencial quotidiano. Mas ainda se prendia a uma obrigatoriedade de
estilo ou de pensamento, posto que pelas melhores razões (mau grado os
tropeços nefelibatas). Afastava-se, devido a condições próprias e no
intuito de quebrar o pseudo-classicismo e o academismo, do realismo,
nomeadamente daquele que legitimamente podia aprofundar uma visão mais
adequada do mundo e da sociedade.
O
surrealismo, pelo contrário, exerce-se na totalidade da vida e da
concepção real ou metafórica do espírito, efectivando pois uma incursão
destemida nesses continentes.
Nessa medida, ultrapassa as fórmulas que certa gente ignorante ou
maldosa lhe tenta colar, normalmente visando esvaziá-lo do poder
transfigurador que lhe é próprio.
E
se o surrealismo reconhece nesse irmão mais velho ou primo próximo o
gesto de ter habitado os castelos da imaginação, viaja por seu turno
mais além nos mundos muito palpáveis que vão das florestas do
conhecimento aos caminhos entre os universos estelares que o romantismo
compreensivelmente desconhecia.
04 - Como definiria as características fundamentais de uma
poética de vanguarda?
NS
– Em primeiro lugar, ela reconhece-se pela capacidade de negar o
habitual, o convencional exarado e mantido pelos que vêem na arte uma
espécie de luxo para terratenientes mentais e não uma incursão no
mistério e no sagrado não fideísta que a Vida é.
Depois, pela ultrapassagem das fórmulas confortáveis – por pretensamente
modernas que elas se considerem.
Tem
sempre uma atitude crítica, mas não pedante nem cínica. Age de boa-fé
nessa tentativa de saber fazer. Visa vogar em pleno mistério, não para
se encandear por essa luz e deixar de ter um olhar claro mas sim para
conquistar um continente mais para o conhecimento, antecâmara eventual
da possível sabedoria.
05- Quais são, a seu ver, os mais relevantes precursores do
Surrealismo, em termos internacionais?
NS – Creio que é pacífico
dar relevo a certos nomes consensuais. Eu não os infirmaria: Gustave
Moreau, o Vítor Hugo da “boca de sombra”, Holderlin, Blake, Nerval,
Rimbaud, Petrus Borel, Aloysius Bertrand, Achim von Arnim, Lewis
Maturin, Carroll, Young, Novalis, Jensen, o douanier Rousseau,
Lautréamont…
Ou
seja, todos aqueles em que a presença do fantástico, do humor negro, do
maravilhoso e do real transfigurado pela suscitação da aventura de viver
permitiu observar para além dos olhos os factos essenciais da escrita e
da pintura sem fronteiras.
06- Que nomes salienta como fundamentais para o Surrealismo em
Portugal?
NS
– Refere-se a nomes que em Portugal representem o mais lídimo da prática
surrealista escrita e pintada? Se assim é e sem preocupações de ordem:
Cesariny, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas, João
Rodrigues, Manuel de Castro, Lud, Mário Henrique Leiria, Paula Rego,
António Areal, Henrique Risques Pereira, Carlos Eurico da Costa, Isabel
Meyreles, António Dacosta, Eurico Gonçalves, Mário Botas, António
Quadros…
E
por aqui me fico, sem ir mais longe.
07- A seu ver, qual a importância da tradição literária
portuguesa para uma especificidade nacional do Surrealismo?
NS
– Não quero ser corrosivo, mas com o devido respeito eu falaria de
importância negativa…
A
meu ver, essa tradição possui um certo pendor para o lirismo exacerbado,
a recusa ou pelo menos uma certa cegueira ante o mundo da Ciência, o
repisar de ideias feitas, o provincianismo de escola, a ligação ou o
domínio consentido duma mentalidade de sacristia… E, sem acinte o digo,
quando se fala em tradição literária portuguesa geralmente o que desta
expressão se solta é a tipicidade que pode existir num povo que parece
ter ficado exausto após os Descobrimentos… E essa característica de
nunca ter sido um povo realmente livre reflectiu-se necessariamente nas
letras e nas artes, capturadas por uma certa amargura, um certo
ressentimento que com frequência demasiada buscava amparo ora na
“religiosidade”, ora no desespero funesto, ora na sobranceria insensata.
08- Quais os autores portugueses que, a seu ver, mais
influenciaram os nossos autores surrealistas?
NS
– No meu caso pessoal, fui muito pouco tocado por autores portugueses
precursores. Só os li mais tarde, geralmente bastante tempo depois de
por volta dos 14 anos, numa revista brasileira que achei por acaso, ter
dado de chofre com autores estrangeiros nos quais reconheci a inflexão
que me suscitava sem saber que tal tinha nome. E que passei a seguir com
atenção, estendendo depois a minha leitura a autores contemporâneos.
Se
bem interpreto a sua pergunta e no que respeita a nomes que podem ter
dado antecedentes ao surrealismo em Portugal, tenho para mim que, lá de
fora, seriam todos aqueles que citei na anterior resposta.
Quanto aos lusos, não sou capaz de salientar outros que não sejam algum
Gomes Leal, Teixeira de Pascoaes e Raul Brandão, Camilo Pessanha, algum
Sá-Carneiro, algum Garrett, certo Antero de Quental, algum Eugénio de
Castro…(Pessoa, esse, está do outro lado do espelho).
09- A seu ver, quais as raízes da presença surrealista em
Portugal?
NS
– Como já referi, a inflexão do surrealismo existiu sempre. No que se
refere à sua concatenação (para assim me exprimir) ou exposição pública
em grupos organizados, após o seu surgimento em 1924 na França
difundiu-se pelo mundo (quando não surgia noutros lugares
paralelamente…) respondendo a uma necessidade vital de autores e de
pessoas por extenso. Em Portugal, devido ao reaccionarismo, atraso e
concomitante repressão existencial e mesmo política – o país era forçado
a viver isolado do mundo geográfico e espiritual – revelou-se tarde e
sempre entravado pelas razões ali atrás ditas.
A
presença surrealista, em grupo ou individualmente, continuará sempre a
existir, mau-grado as tentativas de ocultação ou extinção que sobre ela
façam pender e que começam sempre pela tirada cínica de que “o
surrealismo existiu em tal data e até dada altura e depois acabou”.
O
que visam os que assim falam é verem-se livres duma presença incómoda
que lhes relembra, ou mostra mesmo, a sua falta de caracter, a sua
desonestidade intelectual e com terrível frequência a sua mediocridade
artística. É, portanto, um gesto político de cariz
autoritário/totalitário o que essa gente encena e encarna. Tal tem-se
visto à saciedade!
10- A seu ver, quando podemos falar da presença do Surrealismo
em Portugal, enquanto acção colectiva?
NS
– Nos anos consabidos, na época, que a História consagra - quando
Cesariny, Oom, A.M.Lisboa e todos os outros que com estes estavam altiva
e nobremente, ergueram a luz surreal nos seus escritos e nas suas obras
plásticas. Recusando empáfias de cultores empenachados ou equívocos. O
tempo que deixou lastro e que segue counting and counting…
11- O que pensa dos nomes associados ao Grupo Surrealista de
Lisboa, como António Pedro, Alexandre O’Neill e Fernando Lemos?
NS
– António Pedro foi uma espécie de equívoco, ora dele ora dos outros, no
que diz parte ao surrealismo. (Mas Breton não se equivocou: indo AP, em
Paris, assinar um manifesto do grupo surrealista, Breton cortou com um
firme traço a sua assinatura na folha constante).
Para ele o surrealismo devia ser uma espécie protegida, tal como todas
as outras correntes artísticas o deveriam ser num mundo em que vigorasse
uma respeitabilidade que ele julgava dever vestir as artes e os
artistas, que a seu tempo e portando-se bem seriam então provavelmente
academizados. Nunca percebeu que o surrealismo é uma aventura interior
que não se mede por boas-maneiras ou por falta delas, por
respeitabilidades sociais/artísticas ou por destrambelhamentos, mas que
está fora e para além desses figurinos sociais de pessoas de bem ou de
mal - uma vez que o seu cerne é sim a liberdade de criar sem
obrigatoriedade de apresentar cartões, diplomas ou quaisquer
certificados.
Fernando Lemos, por seu turno, foi um artista que por natural
sensibilidade deu por si durante algum tempo a efectuar coisas com
pendor surrealista. No entanto, como é referido por uma ensaísta que
sobre ele se debruçou, “desenvolveu na década de 60 e posteriormente, na
sua produção pictórica, princípios de composição plástica que conduzem à
afirmação de um abstracionismo concreto, definido pela presença e
sobreposição de formas negras [...], que muito se distinguiu das
referências visuais e das atmosferas surrealizantes que pautaram as suas
primeiras obras".
Quanto a O’Neil, praticou o surrealismo de forma empenhada e realizada
durante o tempo em que problemas pessoais e de ordem societária não o
feriram, levando-o a orientar-se nos meandros da publicidade e da
escrita mais controlada e cerzida por companheirismos pessoais e
literários ou necessidades de sobrevivência.
(Um
exemplo mais, que ilustra outra vertente do vector surrealizado desses
tempos: Vespeira, que produziu primeiramente obras dentro do chamado
neo-realismo (nome que em Portugal recebeu o movimento que exprimia as
concepções literárias/plásticas do comunismo soviético), atravessando
depois um período em que se vazou no surrealismo pictórico. Mas que
tempos depois abandonou, devido à sua formação ideológica tê-lo
transportado para outras paragens mais consentâneas com ela).
12- Com que autores surrealistas conviveu, ao longo dos anos?
NS
– Intensamente com Mário Cesariny, Ludgero Viegas Pinto (Lud), Carlos
Martins e João Garção. Frequentemente com Pedro Oom, Ernesto Sampaio e,
nos últimos tempos, Miguel de Carvalho. Algumas vezes só, ainda que com
cordialidade marcada, Cruzeiro Seixas, Eurico Gonçalves, António
Barahona da Fonseca e outros do surrealismo abrangente pós grupo do Gelo
como Mário Botas ou Luiza Neto Jorge. Também frequentemente, embora com
flutuações, com autores do surreal-abjeccionismo ou perto dele como
Virgílio Martinho, Ricarte-Dácio, Pacheco e, também, com figuras
próximas como Herberto Helder ou Hermínio Monteiro.
Actualmente, do Brasil, com dois autores fundamentais deste tempo,
Floriano Martins e C.Ronald. Do estrangeiro, variada e
intermitentemente, como Emílio Adolpho Westphalen, Gérard Calandre,
ultimamente e de forma epistolar Laurens Vancrevel…
13- Qual a importância de Pedro Oom no desenvolvimento do
movimento surrealista em Portugal?
NS
– Foi importante não só pela sua obra, não só pelos contactos
suscitadores que teve e que estabeleceu com António Maria Lisboa e
outros - os primeiros e alguns que lhes sucederam - mas também pela sua
postura: exigente mas aberta, corajosa nos embates com os zoilos e
fraternal com os companheiros, cumprindo assim a frase muito lúcida dum
confrade que disse “Chama-se UM HOMEM àquele que sabe o que está
fazendo”. Foi, para tudo dizer, não só o autor actuante de “Um Ontem
Cão” ou “O homem bisado” mas também o que soube referir que, numa dada
perspectiva de verticalidade, “Pode-se não escrever” e, ainda, o que
soube entender que em relação a um agregado societário infame filho duma
sociedade desqualificada e torpe é mais importante um olhar de
comiseração e até de fino desprezo do que a feitura de coisas picturais
e escritas alevantadas…
14- Em sua opinião, a que se deveu a intrínseca tendência para a
dissidência entre os surrealistas portugueses?
NS
– A informação que do estrangeiro chegava aos primeiros (e se calhar até
aos segundos…) surrealistas era muito parcelar e frequentemente confusa
devido à situação de ausência de liberdade política em que o país vivia.
Acresce que no terreno europeu e local se digladiavam por essa época
pelo menos duas tendências de sinal contrário mas ambas – como hoje já
não cabe duvidar – igualmente nefastas: o conservadorismo, colorido de
catolicismo reaccionário e o fascismo vermelho de cariz estalinista,
autoritário mas cobrindo-se com a falsa capa de progressista de
esquerda. Os surrealistas tiveram de sofrer as acções imperativas, muito
impetuosas e claramente prepotentes, dessas duas formulações
ideológicas. E, por razões que hoje bem se conhecem, muitos dos que
agiam dentro do reduto surreal foram seduzidos ou sitiados algumas vezes
por essas feitiçarias sociais, o que dava azo a que os menos permeáveis
tivessem de se afastar ou afastar os que os queriam jungir a
obrigatoriedades que eles achavam espúrias.
Mas
o mesmo sucedeu em França, por exemplo, onde o sentir soviético foi bem
acolhido por Aragon, Unik, Éluard e outros com os resultados tristes que
se sabem. Não devemos esquecer que para os próceres de Leste (e os seus
avatares) o que contava e conta é não a liberdade interior com todo o
seu acervo fulgurante de criatividade solar ou mesmo lunar – digamos
assim com a suficiente dose de ironia – mas o que um determinado hacer
pode dar à potência política do partidão.
Daí
a necessidade de, contra essas gentes, dissidir, romper amarras, de não
estar na quadra.
15- O que entende por Abjeccionismo?
NS
- A atitude galharda, deliberada e na verdade muito adequada de
responder ponto por ponto e sem delicadezas mais próprias “de damas
putas” (sic) à protérvia social, repelente e abjecta ela sim, que
tentava enroupar-se de lirismos delicodoces e nos palavrórios burlões
filhos da pedantice e da hipocrisia de certos barões assinalados das
artes, das letras e, por extensão, da praça que punha e dispunha nos
jogos malabares da desgraçada nação.
Ela
tinha consciência do seu pouco poder, mas mesmo assim não desistiu de
falar alto e claro tanto quanto podia, despertando embora as mais
diversas cóleras e até perfídias.
16- Considera que nomes como Antonin Artaud, Georges Bataille,
Henry Miller, Dubuffet, Henri Michaux ou Jean Genet foram importantes
para a definição do Abjeccionismo?
NS
– Que são autores de qualidade, de grandeza específica, não cabe dúvida.
E que inquestionavelmente têm neles a inflexão abjeccionista expressa em
obras e em vivências é facto assente.
Agora: não sei é a influência que terão tido no caso português. Não a
consigo, confesso, definir com exactidão.
No
que me diz respeito não a tiveram especialmente, li-os, apreciando-os,
como li outros autores: Leiris, Camus, Jean Ray, Hans Carossa, Bruno
Schulz, Samuel Beckett, Ionesco, Oscar Panizza…
17- Como poderia descrever a acção do grupo ligado ao Café
Gelo?
NS
– Tanto quanto sei e é dos livros, mas também do que aqui e ali pude
saber pessoalmente, foi um grupo que, vindo do antigo Café Hermínius a
que se juntaram outros confrades, tentou levar a efeito uma actividade
surrealista e abjeccionista que, na verdade, não podia existir com foros
de eficácia no país cimentado pelo salazarismo e onde havia duas
espécies de censuras: a oficial e a do partidão que tentava herdar-lhe,
a seu tempo, as quintas e os bragais...
18- Que figuras salienta de entre aquelas que se costumam
associar a esse contexto?
NS
– Além de Cesariny e Pacheco - Manuel de Lima, José Escada, Herberto
Helder, José Sebag, Manuel de Castro, António José Forte, Mário-Henrique
Leiria, Ernesto Sampaio. Outros ainda, como António Barahona da Fonseca,
Gonçalo Duarte, René Bertholo…
19- Existia uma dimensão performativa na actuação de grupo,
intrinsecamente marginal, dos abjeccionistas?
NS
– É de crer que sim, mas sempre entravada pelas circunstâncias que se
conhecem historicamente e a que já aludi. Em campos onde existe a
obrigatoriedade de agir conforme o Estado determina, ou sujeita a
controle, as acções têm muito pequenas possibilidades de se promoverem e
de permanecerem no terreno das realidades efectivas.
20- Luiz Pacheco é uma personagem singular no quadro do
Surrealismo-Abjeccionismo em Portugal. Qual a sua opinião acerca das
diferentes vertentes da sua acção?
NS
– Singular, sim. Tanto pelo que fez de muito positivo – editando obras
de grande qualidade; definindo como burlescas ou simplesmente irrisórias
muitas figuras armadas em arco da patusca ou aflautada circunstância
nacional e, ainda, escrevendo textos excelentes entre a crónica e a
ficção – como pelas encenações em que se verteu, de forma quase
clownesca, dando aos inimigos da liberdade inteira excelentes armas de
arremesso que eles utilizavam com veloz contentamento…
21- Considera que existem ligações entre o Surrealismo e
movimentos marginais contemporâneos como a Geração Beat norte-americana
ou os Angry Young Man ingleses?
NS
– Eu não diria tanto ligações como pontos de contacto. Pontos de
contacto, principalmente, de concepção. Não esquecendo que houve actores
do movimento beat que se reconheceram como surrealistas, na escrita e na
actuação por extenso.
Os
segundos tocariam o mundo surreal pela sua recusa de um conformismo
muito british, pela sua negação dum mundo literário que se enquadrara
pelo uso de fórmulas que já estavam velhas e relhas ou, pelo menos,
desajustadas das realidades sociais que importava certificar.
22- Que outros herdeiros o Surrealismo deixou em Portugal,
colectiva e individualmente?
NS
– Assumidamente ou não, todos os grupos de poetas e pintores que
souberam efectuar neles e no grupo a que se devotaram, com
originalidade, o gesto surreal de recusa do já percorrido ou visto, a
independência de espírito e a procura incessante de um universo onde não
tenha lugar a prepotência de sectores ou a submissão à retórica de
falsos amigos do Homem.
23- Qual a importância do Surrealismo no contexto português?
NS
– Como já afirmei algures, nas últimas três décadas, pelo menos, os que
fazem a chuva e o bom tempo nos lugares expressos da nação intelectual
têm-se esforçado por afastar e exterminar a inflexão surrealista. À
partida, querendo fazer crer que já não é tempo dela, como se fosse uma
fruta ou um legume de específico mercado…
Por
ela ser a prova provada do seu deles falhanço enquanto manajeiros da
sociedade nacional? Por o surrealismo conter nele algo que lhes é muito
hostil, que eles sentem como muito hostil por ser o contrário luminoso e
iluminante das suas pessoínhas abancadas à manjedoura do Poder ou da
notoriedade? Penso que sim. Mas também pelo seu primarismo cultural
disfarçado, pela sua clara incultura – encarando-se cultura viva como
aquela força que permite que se perceba, simbolicamente falando, que o
ser humano está muitos passos além do símio – pelo seu cinismo que
encara a arte e a liberdade inteligente como meros resíduos que não
concorrem para o bem-estar que eles apenas e incessantemente procuram
haver, mesmo que para isso tenham que exterminar a elementar decência.
Nesta medida, se por um lado o surrealismo lateja claramente no
imaginário social (basta falar-se com as pessoas do povo orientadamente
para se perceber isso) devido à defenestração que sobre ele tem caído
conta muito pouco, muitíssimo pouco porque quase não pode exprimir-se de
forma digna ou pelo menos aceitável. Ainda recentemente houve uma acção
referente ao surrealismo e, note-se, levada a efeito por gente
universitária de bom quilate. Pois a denominada “comunicação social”,
tanto quanto soube, irrelevou o mais que pôde tal acontecimento, ela que
dá normal relevo a patacoadas ou actividades roçando o pornográfico e/ou
a imbecilidade satisfeita.
E
creio que não é preciso dizer mais, nomeadamente o facto de que acções,
no país e no estrangeiro, protagonizadas por surrealistas daqui ou
vizinhos deles são normalmente abafadas, desprezadas ou postas do lado
da sombra.
Ou
seja, dantes eram atacados publicamente. Agora, muito pior, tenta-se
fazer crer que nem existem. É, claro, o cripto-fascismo de fachada
democrática no seu melhor…!
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