REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 47 | agosto-setembro | 2014

 
 

 

 

RUTE MARTINHO

"O vestido envergonhado"
e outros contos

Rute Elisa de Matos Martinho (Portugal). Poeta e ficcionista.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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A minha mula teve uma cria  

A Gertrudes era uma menina do campo, muito pobre, como muitos outros meninos do princípio do século XX. De tempo a tempo ia, a mando da mãe, montada num burrinho ao monte da avó Umbelina, que vivia ainda a uma distância grande do monte onde vivia a nossa Gertrudes. A Avó era mais afortunada que a família dela, tinha colmeias e um rebanho com ovelhas e cabrinhas leiteiras, para além de uma boa horta e um forno onde cozia pão para muitos vizinhos.

Ia buscar mel, mas sobretudo cântaros de leite. Em casa da avó havia uma tia, muito brincalhona e bem-disposta, a tia Celina. Gostava muito de mangar com a ingénua da Gertrudes, que caía sempre nas brincadeiras da tia.

Sempre que dava à Gertrudes o cântaro com o leite, dizia “Diz à tua mãe que coma a rolha”. E neste caso, era mesmo verdade, porque aquela rolha era nem mais nem menos do que um queijo fresco embrulhado num pano branco.

Mas havia mais. Um dia a tia Celina lembrou-se de dizer à Gertrudes, sempre crédula: “Diz à tua mãe que a minha mula teve uma cria”. Pois é, todos sabemos que as mulas são animais híbridos, filhas de éguas e de burros ou de burras e cavalos e por isso não podem ter crias. Noutra altura o recado foi outro: “Diz à tua mãe que a Quinta feira da Ascensão este ano calha numa Sexta”. Depois de entregue o recado, a mãe da Gertrudes olhou para a filha com ar muito sério e disse-lhe: ”Então menina, não sabes que se chamam ao dia Quinta feira da Ascensão é porque é sempre celebrado numa Quinta-feira, já te deixaste apanhar pela tua tia outra vez”.

Agora pergunto eu, será que a nossa Gertrudes não se divertia ao fingir que caía nas brincadeiras da tia, que lhe contava sempre mais uma história para, também ela, se divertir com o que inventava?

 
 

E era só um copo de água 

Há muitos anos, nos casamentos, havia o costume de após a cerimónia de casamento na Igreja, se fazer uma recepção mais simples do que os actuais almoços e jantares. A comida estava espalhada por mesas e os convidados deslocavam-se de mesa para mesa para comer um rissol daqui, um croquete dali, uma fatia de bolo de outra mesa. No início, podia ser servida uma sopa quente, mas o resto da comida era sempre fria. Tratava-se sempre de uma refeição simples, ainda que recheada de doces, incluindo o Bolo da Noiva: a este tipo de recepção chama-se “o Copo de Água”, para marcar a distinção entre estas receções mais simples dos almoços ou jantares oferecidos noutros casamentos.

Mas passemos à nossa história.

No casamento de uns amigos dos meus pais, como os convidados eram muitos, os noivos optaram por oferecer apenas o tal copo de água em vez de uma recepção mais complexa, com jantar.

Ora, um dos irmãos do noivo, que tinha dois filhos de 8 e 4 anos, chamados Pedro e Mariana, pensou que seria melhor não levar as crianças ao casamento. Para justificar a decisão disse aos filhos “Aquilo é só um copo de água” e como os miúdos desconheciam o verdadeiro significado da expressão, levaram-na num sentido literal e assim aceitaram não ir ao casamento.

O problema foi quando viam as fotografias do casamento: aquilo era muito mais do que um copo de água, havia salgadinhos, com ar tão apetitoso. E os bolos e doces, esses eram ainda mais de fazer crescer a água na boca. Está-se mesmo a ver que o Pedro e a Mariana ficaram mesmo muito tristes, para não dizer zangados por terem perdido aquela comida com aspecto tão apetitoso. Como já era mais velho que a irmã e sabia muito bem o que queria dizer, o Pedro decidiu que ia mostrar aos pais quanto estava descontente de não ter ido aquele casamento: com uma cara muito triste, quase a fazer beicinho, disse aos pais: “Com que então era só um copo de água!!!”.

E temos que dar-lhe razão. Aquela recepção era tudo menos um simples copo de água, literalmente falando, claro está.

 

15 de Maio  de 2012

 
 

O que é a Filosofia?  

A Joana tinha dez anos. Era uma menina muito curiosa, ainda que sempre muito calma. Queria saber sempre mais. Gostava de descobrir como eram as coisas, como funcionava tudo. Gostava muito de ler livros que explicassem o porquê de algo ser assim.

No local onde trabalhava a mãe dela, trabalhava, igualmente, uma senhora com quem a Joana gostava de estar. Explicava o que conseguia e indicava livros para leitura, quando não conseguia dar resposta. Ora essa senhora tinha feito um curso que muitos meninos como a Joana não percebiam, a maioria nem lhe conhecia o nome: Filosofia.

Um dia a Joana descobriu que a tal senhora tinha feito o tal curso, e curiosa como era, foi ter com ela e perguntou-lhe: “O que é a Filosofia?” Ao que a amiga respondeu “Sabes, Joana é muito difícil explicar a uma menina da tua idade o que é a filosofia, mas posso tentar explicar-te o que é um filósofo. Como sabes, todas as pessoas se perguntam porque é que isto é assim, porque é que não é de outra forma. Pois é, há dois tipos de perguntas. Umas são específicas e têm respostas fáceis, dadas pela ciência, como por exemplo porque é que a terra anda á volta do sol? Está é de resposta fácil, dada por uma ciência chamada física, e como já deves ter lido, a razão é a força da gravidade que o sol exerce sobre a terra. Mas há outras perguntas que são mais difíceis de responder, são mais gerais e até podem ter mais que uma resposta. Um exemplo é porque é que existe alguma coisa e não o nada. Ora, estas perguntas foram feitas pelos filósofos, que também tentam dar-lhes respostas, sempre o mais cientifico possível. A religião também lhes dá resposta, mas essa é sempre a mesma. Deus quis e assim ficou.”.

Nesse momento a senhora que tinha feito o curso de filosofia, apercebeu-se de que aquela resposta talvez tivesse sido muito complexa, até para a nossa joana sempre tão curiosa. Qual não foi o espanto que teve, ao ver a Joana com um grande sorriso, de grande felicidade que lhe disse: “Então eu sou filósofa.”

E estava certa, pois todos os meninos, naturalmente curiosos, têm um espirito filosófico. Mais tarde podem perdê-lo, mas há alguns que mantêm a sua curiosidade e a vontade de saber sempre mais, e são esses os filósofos.

 
 

A Mosca Moscatel 

A mosca Moscatel gostava muito de guloseimas. Era mesmo uma mosquinha bastante gulosa. Ninguém sabe a que ponto era gulosa, a mosca Moscatel desta história. No ninho das moscas tinham-lhe dado o nome de Moscatel por ser assim tão gulosa.

Um dia a Moscatel entrou num restaurante, ninguém a tinha convidado, mas ela entrou naquele restaurante sem convite nem nada. Olhem só que falta de educação! Nesse dia, havia uma festa de anos de um menino chamado Tomé no restaurante onde a nossa mosquinha entrara. Entrou sorrateiramente, como quem não quer nada, e foi poisar no bolo de anos do aniversariante desse dia. A mãe do Tomé, com mil cuidados, para não estragar o bolo, lá tentou desalojar a mosquinha Moscatel. Mas nada demovia a nossa heroína. Sim, era uma heroína! Não havia quem a removesse daquele bolo com aspecto tão apetitoso.

Até que … com o entusiasmo com que poisara no bolo, nem se deu conta de que aquele bolo era uma ratoeira para moscas: a cobertura era pegajosa e pouco sólida.

Quando começaram a partir o bolo, a Moscatel, já de barriga cheia daquela cobertura feita de mousse de chocolate, bem que se tentou libertar, mas agora  o bolo estava quase a engoli-la. Só conseguiu escapar daquela morte tão má, porque uma amiga do Tomé, a Sofia, recebeu a fatia onde estava a nossa mosquinha, por essa altura quase morta.A Sofia, deve dizer-se, era ecologista, e não gostava de ver nenhum bicho morrer.  Pegou na Moscatel, com muito cuidado, tirou-a do bolo e limpou-a com um guardanapo. Depois colocou-a numa cadeira para que pudesse secar as asas e disse aos outros meninos: “Esta mosca também tem o direito de comer um pedacinho do bolo.”

A Moscatel, ao ouvir isto, pensou consigo: “Olha que menina tão simpática”. Pousou no rosto da Sofia e segredou-lhe ao ouvido: “Obrigado, Sofia, salvaste-me.”

 
 

Dona Aranha e Dona Centopeia  

Todos sabemos como as aranhas e as centopeias não se dão bem, não é?

Mas a aranha e a centopeia desta história eram muito amigas. Eram vizinhas há muito tempo; e como Dona Aranha só comia outros insectos mais pequenos, Dona Centopeia não só não a considerava má vizinha, como gostava de conviver com Dona Aranha.

Num frio de inverno Dona Centopeia queixou-se á Vizinha de como sofria com aquele frio, disse-lhe, enquanto ambas bebiam uma chávena de chá que fizera e oferecera à amiga: “Sabe, o pior de tudo são as constantes frieiras que tenho nos pés, não consigo aquecê-los, e há sempre uns tantos que ficam gelados.”

Nessa noite Dona Aranha pensou num modo de resolver o problema da vizinha: Afinal ela até sabia tecer, e muito bem. Resolveu fazer, todos os dias, quatro pares de meias para os pés de Dona Centopeia. Ia colocando as meias à porta da vizinha, sempre pela manhã, muito cedinho, para manter a prenda secreta. Preferia assim: não queria agradecimentos nem retribuições. Estava a fazer as meias simplesmente porque queria.

No dia em que ia depositar os quatro últimos pares de meias, é que o caldo ficou entornado. Não é que Dona Centopeia se tinha levantado mais cedo e estava a sair de casa logo quando a vizinha se preparava para colocar as meias à sua porta.

Dona Centopeia, muito surpreendida, olhou a vizinha, Dona Aranha, com grande espanto e não conseguiu senão dizer: “Então tem sido a senhora quem me tem colocado quatro pares de meias à porta de casa, como poderei retribuir tal gentileza, enfim não sei que mais diga senão obrigado”.  Dona Aranha respondeu” Não agradeça, para mim basta vê-la com as meias calçadas, isso já e grande agradecimento.”

Claro que Dona Centopeia, sabendo que não tinha como retribuir aquela prenda tão bonita, não fez senão continuar a oferecer chás á vizinha.

No fim da história, continuaram amigas, e pelo que ouvi há dias, continuam a beber chá em casa de Dona Centopeia, que até hoje considera ainda não ter retribuído as meias feitas por Dona Aranha.

Por nós, sabemos que sim, que só o usar as meias é retribuição mais que suficiente.

 
 

Este ano até nem há muitas  

            Eu e a minha mãe costumávamos ir muito a casa daquela nossa tia. Gostávamos muito de estar com ela, não só pela grande simpatia que tinha, como pela forma como acolhia quem ia a casa dela, como sobretudo pela bonomia com que sempre encarou a vida, com um sorriso sempre franco, mesmo quando as coisas lhe corriam mal. Nunca se queixava de doenças nem de estar menos bem-disposta, mesmo que o estivesse.

            Naquele fim de tarde estava muito calor, era um dia de Verão daqueles em que nem á sombra se estava bem. Quando o calor já apertava um pouco menos, lá fomos nós visitar a Tia Marcelina ao monte onde ela morava para estar algum tempo na companhia dela, no fundo pelo prazer de disfrutar de estar com ela. Quando a noite começou a cair, mas ainda o céu tinha uma cor azulada, vimos o que parecia ser uma nuvem preta que cobria o céu. Eram mosquitos, muitos mosquitos. A minha mãe, meio com receio dos mosquitos, meio porque já era tarde decidiu que já eram horas de voltarmos a casa e disse à tia: “sabe, tenho que ir fazer o jantar e também não quero chegar à Maia de noite, para além disso estes mosquitos amedrontam-nos”

            Ao que a Tia Marcelina respondeu, com a bonomia que sempre mantinha: “Então Jana, este ano até nem há muitas.”

            Ai não que não havia, aquele enxame parecia uma nuvem enorme que enchia o céu de lés a lés. Nem quero pensar se fossem mesmo muitas.

 

            11 de Maio de 2012

 
 

Roger 

O Roger é um grande amigo nosso. Foi aluno do meu pai em Bristol, Inglaterra. Sempre o conheci como uma pessoa com um sentido de humor muito particular. Desde os primeiros dias em que me cruzei com ele, o Roger mostrou-se sempre como alguém com um gosto peculiar em divertir-se com os jogos de palavras e chegava a jogar com a língua recentemente aprendida.

Uma vez, na década de 70, em que se deslocou com a família a Portugal, esteve em Estremoz, hospedado na Pousada local, foi a casa de meus pais jantar e, noutro dia, visitar uns tios nossos que viviam no campo.

Em qualquer das ocasiões, aconteceram dois episódios que recordo como só podendo acontecer com este amigo.

O primeiro dos episódios deu-se lá em casa, ao jantar. Uma amiga nossa ofereceu à minha mãe umas trouxas-de-ovos, típicas da zona de Estremoz. Fizeram tanto sucesso que todos repetiram, ficando apenas uma, pelo que perece muito cobiçada por todos, incluindo o meu pai e o Roger. Ora, o Roger, percebendo quanto o meu pai queria aquela honra de veiros disse sem a mais pequena hesitação: “Eu sou visita.” E pegou na trouxinha e comeu-a.

O segundo episódio aconteceu no dia em que fomos ao campo á casa da tia da minha mãe. Nesse dia a minha mãe contou a todos que tinha nascido naquela casa, no espaço onde agora está instalada a dispensa da casa, que quando a minha mãe nasceu era um quarto de dormir. Depois também disse que a escola onde tinha estudado era o palácio onde agora está instalada a Pousada onde os nossos amigos estavam principescamente instalados. Em vista daquelas revelações, o nosso amigo Roger disse, de novo sem hesitar: “Joana, tu nasceste numa dispensa, mas foste educada num castelo!” E, concluo eu, deve ter pensado que não era de espantar que a minha mãe fosse alguém de tão especial, com uma personalidade e uma educação tão esmerada. Em bom inglês, a true lady.

 

14 de Junho de 2012

 
 

O Esquilo João 

O Esquilo João era muito esquivo. Nunca tinha conhecido o sabor da liberdade, mas vivia ansioso pelo dia em que se visse no meio de um bosque, a movimentar-se, a seu belo prazer, de árvore para árvore, tal como ouvira a mãe a contar-lhe desde pequenino, da sua vida dos tempos em que ela fora livre.

Naquele dia a oportunidade veio ter com o João. À loja onde tinha nascido o nosso esquivo esquilo foi, na manhã dessa Segunda Feira, uma senhora que queria comprar um esquilo. Queria ter lá em casa mais um bichinho. Já tinha um gato, um cão e um periquito, enfim gostava muito de se sentir acompanhada por animais; mas fazia questão de comprar um esquilo. Falou com o dono da loja, que se apressou a mostrar-lhe a gaiola com o João. Fez-se o negócio. Tudo corria de feição, para os humanos claro está, porque o esquilo não gostou nada do que estava a ouvir.

Então decidiu: “Vou fugir” E assim fez: logo que o dono da loja abriu a porta da gaiola para tirar o João, este esquivou-se e foi instalar-se num buraquinho ao lado da porta de saída para não ser visto. Fecharam a porta, procuraram-no por toda a parte, mas ninguém via este nosso pequeno esquilo castanho com riscas brancas. Esperou pela noite e pela manhã seguinte. Nessa altura o dono da loja não teve alternativa senão abrir a loja. Foi aí que o esquivo do Esquilo João se escapou de vez. Correu muito depressa e saiu do centro comercial onde estava a loja de onde se escapara; correu até um pequeno bosque ali ao pé e subiu a uma árvore grande de que gostou muito.

Por esta altura a fome já apertava; mas olhem só que sorte! Tinha subido para uma nogueira, e esta estava cheiinha de nozes. O nosso herói pensou consigo: Sou o esquilo com mais sorte do mundo, estou livre e ainda por cima tenho que comer por muito tempo: ”

E é verdade, quantos esquilos haverá no mundo que encontrem uma nogueira logo ao pé da loja de onde fogem?

 
 

Pica-me aqui  

O Antoninho esteve, ainda quase bebé, muito doente, ia morrendo. A mãe ficou, como seria natural, muito preocupada com aquela doença. Naqueles tempos longínquos havia o hábito de se fazerem promessas para ajudar a curar as doenças. A mãe do Antoninho, como mulher religiosa que era, prometeu que se o seu menino melhorasse, ele entraria numa procissão vestido de anjinho.

O Antoninho lá se curou, ficou cheio de saúde, e a família decidiu que na procissão seguinte o menino entraria nela vestido de anjinho. Então vestiram o menino com um lindo fato branco, que nesses dias era de tamanho único e ficava muito grande ao Antoninho, ainda tão pequeno que mal podia andar sozinho. Para ajustar o fato e prender as asas puseram no fato muitos alfinetes.

Como disse antes, o nosso Antoninho era ainda um menino muito pequenino, por isso a mãe decidiu que seria acompanhado na procissão pela irmã mais velha, chamada Maria. 

No início da procissão o nosso menino ia mesmo muito bonito, todo composto, quase parecia um anjinho verdadeiro, como os imaginamos, claro. Só que, ao longo do percurso, de tempos a tempos, dizia à Maria apontando para um sítio onde estava colocado um alfinete “Maria, pica-me aqui” e a Maria lá tirava o alfinete que estava a magoar o irmão. E assim foram sendo tirados quase todos os alfinetes que mantinham o fato composto, incluindo muitos dos que prendiam as asas e as mantinham no seu devido lugar.

Já todos estamos a ver o nosso Antoninho a chegar ao fim da procissão com o fato com aspecto de demasiado grande para ele, mas pior, com as asas quase caídas, com uma das asas cair e a outra demasiado levantada.

Todos percebemos que a Maria, com tantos “Maria pica-me aqui”, “Maria pica-me ali”, “Maria pica-me acoli” não teve outro remédio senão ir tirando os alfinetes que mantinham o nosso anjinho com aspecto de anjinho com o fato justo ao seu corpo e as asas de anjinho direitinhas.

Mas será que por deixar de parecer um anjinho de verdade, com tudo no lugar certo, incluindo as asas, o nosso Antoninho tinha deixado de ser um anjinho?

 
 

Quem viu uma senhora muito alta com um turbante muito bonito  

A Matilde era muito pequena. Tinha 3 anos ou pouco mais. Estava com os pais de férias numa praia perto de uma cidade com muitas pessoas e com ruas daquelas onde é muito fácil a uma menina pequena perder-se.

Num dos dias dessas férias, a Tila, como era conhecida pela família e os amigos, perdeu-se mesmo numa das ruas de Portimão, a tal cidade cheia de gente e com ruas de difícil orientação para ela. Nessa altura muitas senhoras costumavam usar uns turbantes na cabeça. O da mãe da Tila era laranja e aos olhos da nossa heroína era não só vistoso, como muito bonito.

Quando se viu perdida, a Tila sentiu-se aflita durante algum tempo, o que é natural para uma menina tão pequena no meio de uma cidade estranha com tantas pessoas, mas, depois, ao lembrar-se do aspecto da mãe, decidiu perguntar às pessoas que passavam ao pé dela: “Quem viu por aí uma senhora muito alta com um turbante muito bonito?

Depois de muitas pessoas terem passado por ela, sem nada responder, mesmo sem saber o que fazer, houve uma senhora, já com idade avançada, que tentou ajudar aquela menina, nitidamente aflita. Pegou na mão da Tila e lá foram ambas à procura da tal senhora muito alta com um turbante muito bonito de que a menina falava. Procuraram, procuraram e procuraram ainda mais. A certa altura a tal senhora mais idosa viu uma jovem senhora muito bonita e com um turbante laranja na cabeça, com um aspecto muito preocupado. Deixou a menina debaixo de uma arcada, lembrando-lhe que não saísse de lá, ordem a que a Tila obedeceu cheia de medo de voltar a perder-se. Resolveu então perguntar-lhe porque é que estava tão preocupada. A senhora que tinha o turbante laranja, confessou que andava à procura de uma menina pequena, com pouco mais de 3 anos que se tinha perdido no labirinto que era aquela cidade. Perante esta afirmação a senhora idosa que encontrara a Tila, disse que tinha encontrado uma menina que correspondia à descrição que a senhora do turbante lhe dera e perceberam ambas tratar-se da mesma menina. Levou a mãe da Tila para junto da menina, que ficou muito feliz por ter reencontrado a mamã. Esta por sua vez também ficou muito feliz por ter encontrado a sua querida filhinha.

Deve dizer-se que os pais da nossa Tila ficaram muito espantados quando a senhora idosa que encontrara a Tila lhes contou como tinha conseguido saber quem era a mãe da menina, e de como a menina, ainda tão pequena, tinha conseguido ajudar um adulto a ajudá-la a encontrar os pais com aquela frase que ficou na memória deles para sempre: “Quem viu por aí uma senhora muito alta com um turbante muito bonito?

 
 

Os caprichos do Carlinhos 

O Carlinhos era um menino muito traquinas. Vivia numa cidade pequena, numa zona com muitas pedras e com o terreno aos altos e baixos. Gostava muito de correr de um lado para o outro.

Um dia, escorregou e caiu com os joelhos no chão. O arranhão nem era grande, mas ao Carlinhos doía-lhe muito. Ficou logo a choramingar, talvez com a dor no joelho, talvez porque ficou furioso por ter caído e a mãe o ter repreendido. Chorou, chorou e chorou ainda mais.

Depois parou. A mãe pôs-lhe água oxigenada e um penso e disse: “Cuidado, se voltas a cair, a ferida abre-se e depois dói mais”.

Uns dois, três minutos depois, o Carlinhos recomeçou a choramingar; então, o irmão dele, dois anos mais velho, o Tiago, achando estranho este segundo choro, disse: “Estavas tão bem, já tinhas parado e agora começaste a chorar outra vez !”

O Carlinhos fez uma grande cara de beicinho, choramingou mais um pouco e respondeu sem hesitar: “Então não vês que estava a descansar. “

 
 

O vestido envergonhado 

Nesse dia o vestido azul voltou a sair à rua.

Que feliz se sentia de novo a ser usado pela menina a quem agora voltara a servir.

Lá se foi para o trabalho, todo cheio de contentamento, a sentir-se como um vestido novinho, acabado de estrear.  

Só que, a certa altura, que balde de água fria, alguém reparou que a sua bainha estava toda descosida. Vá que não vá, pelo menos era em toda a roda e não apenas uma parte:

“Olha que vergonha, que desmazelada que esta menina é!” – pensou o vestido consigo próprio.

Será que há alguém que salve esta vergonha

E houve: uma colega da menina desmazelada lá se lembrou que podia coser a bainha ao vestido, agora quase rubro de vergonha, pediu à amiga que lhe passasse linha e agulha, e pôs as mãos a trabalhar. Devagarinho, devagarinho, coseu a bainha ao vestido, cada vez mais feliz por voltar a ficar com aspecto normal.

No fim, ficaram os dois felizes, a menina disparatada e o vestido azul que voltara a servir à menina.

A menina porque o vestido agora já estava belo.

O Vestido porque se sentia com aspecto de vestido decente. 

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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