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Urbano Tavares Rodrigues foi um amigo que veio dos
velhos tempos. Não foi por acaso que lhe dediquei o meu primeiro livro
de poesia (“Breviário de João Crisóstomo”), era eu ainda menino e moço,
chegado há pouco a Lisboa, vindo de Moçambique. Apesar de não vogar
nessas águas – Urbano sempre foi eclético – era o sopro surrealista que
então me inspirava, quando começavam a transparecer as minhas veleidades
desintegracionistas: muito abancava por essa época na leitaria Passo,
ali para as bandas do lisboeta Rossio, sempre de braço dado com o
Armando Ventura Ferreira (“la renard argentée”), com o Hugo Beja e com o
Carreira Bom. Velhos tempos…
Foi então que esbarrei com o Urbano, acicatado por
uma boa amiga dessa época e pela eternamente jovem Maria Almira Medina.
Gatinhava eu pelas lides literárias e o Carreira Bom caíra no goto do
Urbano, sempre apostado em desafiar o regime salazarista (o que nos
encantava): o Carreira, despejado do Alentejo (da Aldeia Nova de S.
Bento), acabara de publicar o seu “Subgente” e obtivera o apoio do
escritor que lhe dera um cartão com o qual se apresentava em casa de
algumas senhoras como sendo seu filho.
Por essa época, eu desandava por boémias e
aventuras diversas, saltitando de tertúlia em tertúlia e de “república”
em “república”, até que Mário Castrim me deitou mão. Por então namorei,
com quem estive quase estive quase a casar: todavia, as minhas relações
nessa época com o Joaquim Benite levaram a afastar-me da Antónia, que
partir para Inglaterra.
Foi uma quadra de encontros e desencontros que me
levaram às órbitas do movimento Pânico (com o Karlos Faria) – um pouco
agitada, diga-se. Conheci meio mundo e não cultivei qualquer laço
perene. Houve assomos e desaforos, andanças diversas que traduziram
seduções e me atiraram para a clandestinidade e para a Cadeia do Forte
de Peniche, onde passei longos cinco anos. Quando dali saí, reencontrei
o Urbano (que fora dos poucos que me apoiou quando me confrontei com o
fascismo português): para sobreviver nesse período, o Urbano custeou-me
uma fotonovela, que nunca cheguei a publicar, porque fui entretanto
preso pela PIDE.
Foi ele quem me chamou à luta contra os esbirros do
regime, levantando-me contra o encerramento da Associação dos Escritores
Portugueses, devido à vingança de Salazar por ter sido premiado o
Luandino Vieira. Foi o Urbano Tavares Rodrigues – com o Jacinto do Prado
Coelho – quem me encorajou a essas aventuras, nas quais tive a
colaboração do João Carreira Bom e o incentivo do Alves Redol e do
Manuel Ferreira. Nunca esquecerei a coragem demonstrada nessa altura
pela Natália Correia e o Dórdio Guimarães, a quem fiquei muito a dever
anos mais tarde.
É preciso reconhecer que o Urbano, apesar de muito
apoiado por seu irmão Mário, exilado no Brasil, merecia na altura das
desconfianças dos neo-realistas, o que justificou (a par das distâncias
que eles então tinham para com Redol) as reservas que contra eles tive:
foram desinteligências antigas, pouco conhecidas, que encontraram
esconsos motivos políticos como razão de ser. Prefiro esquecê-las, mas
nunca apagá-las.
Urbano Tavares Rodrigues por certo não estaria de
acordo com tais silêncios. E a essa vénia que lhe devo, escrevo esta
memória.
Nuno Rebocho
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