REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 46 | junho-julho | 2014

 
 

 

 

Poemas de

MILTOS SAKTURIS

em versão de Luís Costa

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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A CABEÇA DO POETA 
 
Cortei a minha cabeça
coloquei-a num tabuleiro
e levei-a ao médico
 
- Está tudo bem, disse-me ele,
só está um pouco em brasa
atire-a ao rio, depois veremos
 
Atirei-a ao rio juntamente com as rãs
então ela começou a enlouquecer toda a gente
ensaiava canções estranhas
chiava terrivelmente e gritava
 
Agarrei-a e coloquei-a de novo no meu pescoço
 
corri indignado pelas ruas
 
com a cabeça verde e hexagonal de um poeta. 
 
( trad. de Luís Costa )
 
Miltos Sakturis ( Μίλτος Σαχτούρης)
   
   
 
VIVI PRÓXIMO DAQUELES....   
 
In memoriam Jorgos Makris
 
 
vivi próximo daqueles que estavam vivos
e amei as pessoas vivas
mas o meu coração andava mais próximo
dos doentes selvagens com asas
dos grandes loucos sem limites
e também dos mortos grandiosos
 
 
O ESPELHO
 
Para Nora Anagnostaki
 
Quando virei o meu espelho
para o céu
apareceu
uma lua meia devorada
pelas formigas vermelhas
do fogo
e junto dela uma cabeça
que ardia também no meio de uma chuva de fogo
e a cabeça brilhou
e resplandeceu
e enquanto o fogo a possuía e carbonizava
ela murmurou:
as árvores ardem e são escassas como o cabelo
o anjo parte com as asas queimadas
e a dor
um cão com uma perna quebrada
fica
fica
 
 
O CANÁRIO  
 
Puseram-no ali, onde sopra
             o vento mais agreste
consagraram - no à geada
deram-lhe uma túnica preta
e uma gravata vermelha
um sol com um prego cravado, que pinga
óculos negros
sangue no veneno
uma lança
e um canário
puseram-no ali, onde a dor se agita
e ofereceram-no à morte
para que brilhe como a prata
 
 
O RETORNO DA NOSTALGIA    
 
A mulher tirou a roupa e deitou-se na cama
um beijo abriu-se e fechou-se no chão
as formas selvagens com facas começaram
a aparecer no tecto
 
Um pássaro, que estava pendurado na parede,
foi estrangulado e apagou-se
uma vela inclinou-se e caiu do castiçal
lá fora ouviam-se choros e ruídos
 
As janelas abriram-se, a mão entrou
depois entrou a lua
ele abraçou a mulher e dormiram juntos
 
Durante toda a noite ouviu-se uma voz:
 
OS DIAS PASSAM
A NEVE FICA
 
 
A ESTAÇÃO DE COMBOIOS 
 
Em memória de Guillaume Apollinaire
 
 
Chove sempre no meu sono
o meu sonho enche-se de lama
é uma paisagem obscura
e eu estou à espera do  comboio
o chefe da estação colhe malmequeres
que cresceram entre os carris
pois há já muito tempo
que não passa um comboio nesta estação
e de repente os anos passaram
estou sentado por detrás de um vidro
o cabelo e a barba cresceram
como se estivesse doente
e enquanto o sono me toma de novo
silenciosamente ela vem
traz uma faca na mão
cautelosa aproxima-se
 
e crava a faca no meu olho direito.
 
 
PEDRO 
 
Que canibalismo de novo nesta primavera
as abelhas foram engolidas pelas flores
os falcões comeram as vísceras dos pássaros
a rosa ficou para trás completamente sozinha
e a violeta transformou-se num funeral
 
Eu não tenho mais flores para te oferecer
mas um dia hei-de ser o grande jardineiro
eu plantarei, podarei, regarei
e construirei a minha casa numa nuvem
e acenderei os meus sonhos com o sol
 
Hoje ainda sou um piloto
também culpado pela lama, pelos limões
pelas latas na água no meio do porto
enlouqueço as sereias, semeio o meu sangue
trago uns óculos de pedra e chamo-me Pedro.
 
 
MARIA 
 
Pensativa Maria
tirou as suas meias
 
Do seu corpo saíam
vozes de outras pessoas:
de um soldado,
que falava como um pássaro,
de um doente, que morreu com a dor das ovelhas,
e o choro da sobrinha mais nova de Maria
que nasceu nestes dias
 
Maria chorava e chorava
agora Maria
esticou as mãos
à tarde descansou
com as pernas abertas
 
De seguida
os seus olhos escureceram
negros, negros e nublados
escureceram
 
O rádio tocava
e Maria chorava
Maria chorava
e o rádio tocava
 
Então, vagarosamente
Maria estendeu os seus braços
e começou a voar pelo quarto
 
 
INVERNO  
 
Como são bonitas as flores murchas
consumadamente murchas
e este louco corre pelas ruas
com um coração temeroso de andorinha
é inverno e as andorinhas partiram
as ruas encheram-se de poças de água
no céu duas nuvens negras
que se olham raivosamente
amanhã a chuva também sairá à rua
desesperada
distribuindo os seus guardas - chuvas
as castanhas hão-de invejá-la
e cobrir- se - ão de pequenas rugas amarelas
e também os outros vendedores sairão à rua
aquele que vende camas antigas
aquele que vende peles quentes e agradáveis
aquele que vende salepo quente
e aquele que vende estojos de neve fria
para os corações pobres
 
 
VIDA 
 
Noite
numa farmácia
de joelhos
um cavalo
devora
as traves
uma rapariguinha
com uma queimadura
estranhamente
verde
é tratada
enquanto o fantasma
chora
desesparedamente
no canto
 
 
A CABEÇA DO POETA 
 
Cortei a minha cabeça
coloquei-a num tabuleiro
e levei-a ao médico
 
- Está tudo bem , disse-me ele,
só está um pouco em brasa
atire-a ao rio, depois veremos
 
Atirei-a ao rio juntamente com as rãs
então ela começou a enlouquecer toda a gente
ensaiava canções estranhas
chiava terrivelmente e gritava
 
Agarrei-a e coloquei-a de novo no meu pescoço
 
corri indignado pelas ruas
 
com a cabeça verde e hexagonal de um poeta 
 

 
Miltos Saktouris (Μίλτος Σαχτούρης ) * 19 de Julho de 1919 ;  † 29 de Março  2005, foi um poeta moderno grego. Começou a publicar depois de 1945. Na sua poesia descobrimos um mundo fechado e obscuro cuja ideia fundamental
está apoiada num sentimento de amargura existencial ; numa tristeza existencial
que se serve de parábolas e pequenos mitos, bem como de símbolos e imagens
enigmáticas, muitas vezes estranhas, deformadas, cruéis, macabras e horríveis.
O medo, a morte, a destruição, a solidão e o pavor aparecem assiduamente ao longo
de toda a obra de Sachtouris, assim como a cor vermelha e o negro.  
Há igualmente na poesia de Saktouris uma força elementar e exorcizante que faz
lembrar a magia dos rituais arcaicos, bem como uma grande intensidade surreal.  
Saktouris foi influenciado pelo movimento surrealista grego, tendo estado em contacto com as principais figuras desse movimento como por exemplo o poeta e pintor Níkos Engonópoulos. Contudo, ao contrário de grande parte do surrealismo, que tende  a perde-se em grandes voos e divagações oníricas e discursivas, a linguagem de Sachtouris é depurada, rigorosa  e contida na forma de se expressar e  igualmente muito imaginativa na escolha de novas palavras.
 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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