REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 46 | junho-julho | 2014

 
 

 

 

JOSÉ ROBERTO BAPTISTA

Ateu também vai para o céu

 

José Roberto Baptista (Brasil). Editor da ARTE-LIVROS Editora. Foi professor universitário e Diretor-Acadêmico de tradicionais instituições de ensino superior em São Paulo. É estudioso da fenomenologia parapsicológica e autor, entre outros, do livro Introdução ao Estudo da Parapsicologia (Arké, 2007), além de já ter escrito vários artigos sobre o tema. Dirigiu o IEP-SP - Instituto de Estudos Psicobiofísicos de São Paulo voltado, exclusivamente, ao estudo e ao ensino da Parapsicologia.

 

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Tenho acompanhado, com certa apreensão, confesso, determinados posicionamentos por parte de líderes religiosos, e crentes de todas as crenças, contra todos aqueles que não professam crença alguma.

O mais interessante é notar-se a forma, a maneira, pouco criativa, diga-se, como isso   ocorre. - Nada tenho contra quem não crê. Isso é um problema de cada um. Eu creio na Bíblia. Creio na verdade da Bíblia.

E aí, o inesperado, ou já esperado:

“Tenho convicção que irei para o céu”. 

Mas, o que significa dizer  Tenho convicção que irei para o céu? Que tipo risível, e anticristã, de ameaça velada reside nessa afirmação? Que quem não crê no Deus cristão vai para o inferno? Novamente   risível.  

Fique claro, desde já, que ao escrever este artigo, não pretendo afrontar a fé ou ofender a quem quer que seja.

Portanto, diferentemente de muitos religiosos, não pretendo que ninguém, religioso ou não, queime no inferno eternamente. Inclusive, neste sentido, acredito ser um pouco cristão e seguir o “novo” mandamento: Amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois os meus discípulos: se vos amardes uns aos outros. (1)

Aspeei o adjetivo “novo” por entender que Jesus não poderia tê-lo usado. Bastava dizer - lembrai-vos do mandamento. Isso por que não quero admitir, sem maiores convicções, que tivesse passado despercebido por Jesus o fato  de que o mesmo preceito havia sido promulgado dois mil anos antes. Não procures vingança nem guardes rancor aos teus compatriotas. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor. (2)

E ainda:

Se um estrangeiro vier morar convosco na terra, não o maltrateis. O estrangeiro que mora convosco seja para vós como o nativo. Ama-o como a ti mesmo, pois vós também fostes estrangeiros na terra do Egito. Eu sou o Senhor vosso Deus.(3)

Bem, deixemos essa chicana de lado. Certamente há uma explicação para isso. Afinal, convenhamos, um texto inspirado pelo próprio Deus não pode conter algo que não seja corretamente explicado.

De toda forma, parafraseando Sam Harris (4), acho espantoso que alguém tenha a capacidade de discernimento dos verdadeiros ensinamentos da Bíblia, enquanto os mais destacados e influentes pensadores na história da religião falharam nesse ponto. Mas, considero, segundo alguns, que para compreender a Bíblia, antes, temos que crer em Deus. – Mas, considerar não é o mesmo que concordar. Farei um esforço para explicar o porquê.

Os cristãos defendem com todas as suas armas, o verdadeiro Deus. E, acima de tudo, o Deus encarnado, Jesus, o Cristo, o Messias. Em poucas palavras, o verdadeiro Deus. Contudo,

“Cada muçulmano devoto tem as mesmas razões para ser muçulmano que você tem para ser cristão. E, no entanto, você não acha essas razões convincentes. O Corão declara repetidas vezes ser a palavra perfeita do criador do universo. Os muçulmanos acreditam nisso piamente quanto você acredita na definição da Bíblia sobre ela própria. Há uma vasta literatura relatando a vida de Maomé que, do ponto de vista do islã, prova que ele foi o mais recente dos profetas de Deus. Maomé também garantiu aos seus seguidores que Jesus não era divino (Corão 5,71-75; 19,30-38), e que qualquer pessoa que pense diferente passará a eternidade no inferno. Os muçulmanos estão certos de que a opinião de Maomé a respeito desse assunto, assim como de todos os outros, é infalível.

E por que você não perde o sono pensando se deve ou não se converter ao islamismo? Você é capaz de provar que Alá não é o único e verdadeiro Deus? Você é capaz de provar que o arcanjo Gabriel não visitou Maomé em sua caverna? Claro que não. Mas você não precisa provar nada disso para rejeitar as crenças muçulmanas, considerando-as absurdas. Recai sobre os muçulmanos o ônus da prova de que suas crenças acerca de Deus e de Maomé são válidas. E até agora elas não fizeram isso. Eles não podem fazer isso. As afirmações feitas por eles acerca da realidade simplesmente são impossíveis de ser comprovadas. E isso é perfeitamente claro e óbvio para qualquer um que não tenha se anestesiado com o dogma do islã. (...)

Não é óbvio que qualquer que considere o Corão a palavra perfeita do criador do universo não leu o livro de maneira crítica? Não é óbvio que a doutrina do islã representa uma barreira praticamente perfeita para a investigação honesta? Sim, tudo isso é óbvio. Compreenda, então, que a maneira como você vê o islamismo é exatamente a mesma como os muçulmanos devotos veem o cristianismo.”(5)

Estas questões, contudo, sequer passam pelos ajuntamentos cristãos.  A Bíblia tem resposta para qualquer situação, dizem. Busquemos então:

Diz o evangelista Mateus:

Cuidado com os falsos profetas: eles vêm até vós vestidos de ovelha, mas por dentro são lobos ferozes. Pelos seus frutos os conhecereis. Acaso se colhem uvas de espinheiros, ou figos de urtigas? Assim, toda árvore boa produz frutos bons, e toda árvore má produz frutos maus. Uma árvore boa não pode dar frutos maus, nem uma árvore má dar frutos bons. Toda árvore que não dá bons frutos é cortada e lançada ao fogo. Portanto, pelos seus frutos os conhecereis.(6)

Muito bem. Lobos em pele de cordeiro, falsos profetas, árvores que não dão bons frutos etc. Mas, como reconhecer um falso profeta, com base nestas passagens bíblicas? Nunca tive conhecimento que algum tipo de espinheiro desse uvas ou de urtigas que dessem figos. Caso isso ocorresse, pelo menos para mim, seria algo que estranharia. Contudo, tal citação torna-se vazia, ou pouco operante, quando procuramos distinguir profetas verdadeiros dos falsos. Mas isso, repetido diariamente no mesmo vazio em púlpitos e palcos, parece não perturbar o sono dos crentes, embora seja, no meu entendimento, de suma importância.

Dito de outra maneira:

Partindo-se do princípio que toda a palavra profetizada provém de Deus, como distinguir, com base bíblica, a palavra que não provém de Deus? Continuemos a busca.

Lemos em Deuteronômio:

E se te perguntares: Como posso distinguir a palavra que não vem do Senhor? nisto terás um sinal: se não acontecer nem se realizar o que esse profeta falar em nome do Senhor, então o Senhor não disse tal coisa. Foi o profeta que o inventou por presunção. Por isso, não tenhas medo dele!(7)

Em 2Pd 2:1-3, lemos:

Como entre o povo antigo houve falsos profetas, também entre vós haverá falsos mestres, os quais introduzirão sorrateiramente facções perniciosas, chegando até a regenerar o Soberano que os resgatou. Eles trairão sobre si repentina perdição. Muitos hão de segui-los em suas dissoluções, e por causa deles o caminho da verdade será blasfemado. Por ganância, vos explorarão com palavras mentirosas. Há muito tempo, porém, o julgamento deles já está em curso, e sua perdição não está adormecida.

Ora, tais discursos, embora impactantes, sobre os falsos profetas, cabe na maioria dos líderes religiosos hoje presentes. Sejamos justos. Afinal, sabemos todos que o pior cego é aquele que não quer ver.

Lógico que não confundo liderança religiosa com verdadeiros profetas. Embora muitos líderes comportem-se como verdadeiros profetas ao “profetizarem” nosso destino caso saiamos da linha. Mas, alguém está mentindo.

Por que devo acreditar nos cristãos que dizem ser Jesus o Messias, o filho amado de Deus, o próprio Deus encarnado e não acreditar nos judeus e muçulmanos que afirmam que Jesus não é divino? Quem está transformando mentiras em palavras sagradas?

Ora, dizer que o julgamento deles (falsos profetas) já está em curso, e a subsequente ameaça, sempre presente para aqueles que se desviam do reto caminho, não passa de um desprezível sofisma. 

Não espero que ninguém concorde comigo. De fato. Mas, em que avançamos? Como um verdadeiro cristão, com base nos versículos anteriores, pode reconhecer um verdadeiro profeta? Pela fé? Convenhamos, e reconheçamos,  haja fé.

Consideremos que a Bíblia não está limitada a palavras e fé. A Bíblia está presente em todos os planos e interfere no comportamento geral da sociedade. Está presente nas discussões sobre célula tronco, homossexualismo, aborto e por aí afora. Muitos líderes religiosos certamente são falsos profetas conscientes, contudo, sabedores da impossibilidade de serem identificados, com base na Bíblia, aproveitam-se, não só como falsos profetas, mas como abjetos e inomináveis seres, que arrogantemente colocam-se como intérpretes da palavra de Deus e são seguidos por suplicantes, muitas vezes piores que eles próprios, que por alguma razão desconhecida acreditam poder negociar com Deus. Estes ocupam os primeiros lugares nas fileiras da fé. Muitas vezes joguetes da própria fé. Digo joguetes não por qualquer escárnio; mas por percebê-los, mesmo a distância, distantes da compreensão dos ensinamentos básicos da sua própria religião, multifacetada em inúmeras denominações. Grande e substancial parte busca as igrejas na mais sórdida intenção de tirarem vantagens privadas; pequenos, risíveis e desaconselháveis “milagres”, que acreditam ser mediados  por fantásticos e pululantes vendilhões do templo, cujo discurso, com base bíblica, distancia-se do minimamente aceitável. Fazer algo por medo do sofrimento é algo inaceitável. 

A religião se baseia, acredito, em primeiro lugar e principalmente, no medo. (...) O medo é a base de todo o problema: o medo do misterioso, medo da derrota, medo da morte. O medo é o progenitor da crueldade, e portanto não é nada surpreendente o fato de a crueldade e a religião andarem lado a lado.(8)

Estas poucas questões colocadas, poderiam juntar-se a muitas outras. São um excelente exercício para reflexão. Por favor, não confundamos, não é a filosofia que não é boa. O que não é bom é a falta da filosofia.

Entretanto, por mais que sejam defendidas e justificadas as mais diferentes abordagens entre os cristãos e entre cristãos, islâmicos e Judeus, a verdade, para cada crente, sempre estará na base do livro escolhido. Confunde-se, portanto, fé e conhecimento.

Daí muitos acreditarem que todos aqueles que não professam sua fé territorial sofrerão castigos intermináveis e, religiosamente, comprazem-se com isso.

Crentes acreditam que sem religião não pode haver moral. Portanto, quem não crê é imoral. Simples assim.

Mas, será verdade?

Serão hereges os muçulmanos por afirmarem que Jesus não é divino? Serão hereges os judeus que receberam diretamente das mãos de Deus seus ensinamentos, diferentemente dos cristãos que receberam seus ensinamentos através de homens inspirados?

Serão hereges judeus e muçulmanos por compactuarem  a convicção que Jesus não é o Messias? Não é divino?

Por que devemos dar crédito a Jesus e não a Maomé? Insisto.

Por que devemos deixar de ser livres e caminharmos com as próprias pernas, em vez de seguir homens de natureza incerta?

Atacar de forma vil aqueles que pensam na contramão da fé, não faz dela mais verdadeira. Ateus não se norteiam por doutrinas reveladas. Não acreditam que um Deus perfeito possa afogar a humanidade, salvando apenas meia dúzia de “escolhidos”. Não acreditam que um Deus bondoso e misericordioso possa dizer:  

Se alguém tiver um filho desobediente e rebelde, que não quer atender a voz do pai nem da mãe e, mesmo castigado, se obstinar em não obedecer, os pais o conduzirão aos anciãos da cidade, até o tribunal local, e lhes dirão: Este nosso filho é desobediente e rebelde. Não quer obedecer à nossa voz, é devasso e beberrão. Então todos os homens da cidade o apedrejarão. E assim eliminarás o mal de teu meio e, ao sabê-lo, todo Israel temerá. (9)

Ou ainda:

Quando na guerra contra inimigos, o Senhor teu Deus os entregar em tuas mãos e tu os fizeres cativos, se então vires entre eles uma mulher bonita, da qual te enamores e a queiras tomar por esposa, tu a introduzirás em tua casa. Ela rapará a cabeça e cortará as unhas, deporá as vestes de cativa e ficará em tua casa, chorando o pai e a mãe durante um mês. Depois te unirás a ela e serás o seu marido, e ela, tua esposa. Se depois não te agradares dela, tu a deixarás partir em liberdade; não poderás vendê-la por dinheiro nem maltratá-la, pois a possuíste como esposa. (10)

Da mesma maneira não acreditam que Deus criou o mundo em seis dias, que Jonas tenha vivido dentro do estômago de uma baleia por três dias, que Deus tenha criado Adão de um punhado de barro, nem em cobras e jumentas falantes,  nem que em sã consciência  possamos  comer a carne e beber o sangue de alguém.

Em que lugar e momento da história da humanidade tais disparates poderiam ser considerados justos, didáticos ou morais?

Alguns querem salvar-se afirmando ter Jesus trazido nova ordem. Mas, o que isso quer dizer exatamente? Que o Velho Testamento recebido das mãos do próprio Deus era só para inglês ver? Por que Deus fundaria uma nova religião? Não tenho interesse em blasfemar. Mas, admitamos por um momento que Deus exista. Não esse Deus que nos é apresentado pelas religiões. Mas um Deus criador do céu e da terra.

Estou convicto que diante de tantos horrores atribuídos a esse Deus, atestados nos livros sagrados e tornados chancela para tantas perseguições, só os ateus entrariam no céu. Afinal, quando os ateus dizem não acreditar em Deus ou divindades, o fazem por entender que tais livros-testemunhos não podem ter sido escritos por Deus algum. Isentam, portanto, Deus de todas essas atrocidades. Diz Sam Harris:

 “O ateísmo não é uma filosofia; não é sequer uma visão do mundo; é simplesmente o reconhecimento do óbvio. Na verdade, ateísmo é um termo que nem deveria existir. (...) O ateísmo nada mais é do que os ruídos que pessoas razoáveis fazem diante de crenças religiosas não justificadas.”(11)

Não confundamos, portanto, ausência de crença, com ausência de senso.

 

REFERÊNCIAS 

(1). Jo 13:34-35

(2). Lv 19:18

(3). Lv 19:33-34

(4). Harris, Sam. Carta a uma nação cristã. Trad. Isa Mara Lando. São Paulo, Companhia das Letras, 2007. p. 23-24

(5). Harris, Sam. Opus cit. p.23-24

(6). Mt 7:15-20

(7). Dt 18:21-22

(8). Russel, Bertrand. Por que não sou cristão e outros ensaios a respeito de religião e assuntos afins.Trad. Ana Ban. Porto Alegre, RS, L&PM Pocket, 2013. p. 44

(9). Dt 21:18-21

(10) Dt 21:15-17

(11) Harris, Sam. Opus cit.p. 56

 

 

© Maria Estela Guedes
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