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O convite para
participar nesta obra sobre bibliotecas, que me honra, e agradeço,
equivale a pedirem que escreva uma autobiografia. Realmente, a minha
experiência como escritora, investigadora, editora e bibliotecária
abrange todos os níveis da biblioteca.
Licenciei-me em
Literatura, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, já num
período em que trabalhava e pagava os meus estudos. De dia, era
funcionária pública, no Museu e Laboratório Zoológico e Antropológico
(Museu Bocage), da Universidade de Lisboa. À noite, dava aulas de
Português e Francês no Externato Bocage, uma escola particular para
adultos, cuja pequena biblioteca ajudei a constituir. Já numa fase muito
posterior, enquanto codiretora, também promovi a organização da
biblioteca da Associação Portuguesa de Escritores, na Rua de S. Domingos
à Lapa, em Lisboa.
Toda a minha
carreira decorreu no Museu, um de vários na Faculdade de Ciências,
antiga Escola Politécnica. Após um grande incêndio, em 1978, a Faculdade
mudou as instalações para Campo Grande, mas os museus permaneceram na
Politécnica: Museu Bocage, Museu, Laboratório e Jardim Botânico, e Museu
de Geologia. Só mais tarde se lhes juntou o Museu de Ciência. Toda a
zona sofreu com a partida dos estudantes, que depois passaram a
frequentar a Politécnica só quando já andavam com as teses de mestrado e
doutoramento, porque precisavam dos laboratórios e das bibliotecas.
A história da minha ligação às bibliotecas
começa quando tinha dezanove anos, portanto lá pelos idos de 1966. E
não, vamos ver: a nossa primeira biblioteca, entendida como fonte de
conhecimento, é a mãe. Não conseguiríamos ler os livros sem domínio da
língua, e essa aprendemo-la em casa, daí que a designemos por “língua
materna”. Quando chegamos à escola, já temos competência linguística, o
que vamos aprender é a escrever e a ler. Numa perspetiva histórica, este
salto da oralidade para a escrita, tão imenso como o do
cru para o cozido, como
escreveu Claude Lévi-Strauss, funda a civilização ocidental, e dá lugar
a belíssimas histórias. Uma delas, apesar de relativamente recente,
impressionou-me de tal maneira que aparece em vários textos meus, caso
da peça «Um bilhete para o Teatro do Céu»: é a da revelação da Palavra
de Deus a Muhammad. Um dia, nos montes, apareceu-lhe Jibraíl, o anjo
Gabriel, que lhe mostrou um pano recoberto de carateres e lhe pediu que
os lesse. O interlocutor ficou mudo de espanto e temor. Face à
insistência do anjo, acabou por confessar: «Não sei ler!». Então,
ríspido, Jibraíl ordenou: «Lê, em nome de Deus!». E Muhammad leu,
passando assim a Profeta do novo livro que irrompia, o Alcorão, a par
dos que já existiam, o Antigo e Novo Testamentos. É motivo de orgulho
tão grande o domínio da leitura e da escrita que as três comunidades
religiosas de origem semita se designam como Povo do Livro. Não só por
os livros sagrados manterem elementos comuns, como pela circunstância
maior de as três religiões, diferentemente das que vieram a sobrepujar,
se situarem num patamar civilizacional mais complexo, o do domínio da
escrita.
A primeira
livraria que frequentei, em criança, ou quando, adolescente, passava
férias na aldeia onde nasci, Britiande, foi a biblioteca itinerante da
Fundação Calouste Gulbenkian. Eram carrinhas, corridas a estantes no
interior, que deixavam livros e recolhiam os já lidos nas aldeias e
cidades por onde passavam uma vez por mês. Dois escritores portugueses
muito importantes trabalharam nesse serviço mas, na altura, nem eu os
conhecia nem eles eram ainda importantes: Herberto Helder, sobre cuja
obra publiquei dois livros, e Luiz Pacheco, de quem também me ocupei,
embora menos. Ou ocupei-me dele de maneira diversa, promovendo a sua
leitura no Brasil, com a publicação de «O espelho do libertino» na
Editora Escrituras, de São Paulo. Outros escritores têm sido publicados
nela por conselho meu, e noutras editoras, como a Apenas Livros, de
Lisboa, na qual dirijo duas coleções, e na Arte-Livros, também de São
Paulo, na qual faço parte do conselho consultivo de uma coleção de
poesia. Saiu nesta, por diligência minha, «Onde rasgar janelas», de José
Augusto Mourão.
Quem sabe se Herberto Helder e Luiz Pacheco, na
carrinha da biblioteca itinerante, me sugeriram a leitura de Enid
Blyton, com as aventuras de Os cinco, e da Condessa de Ségur! Ainda me lembro das
Memórias de um burro, e vejo o
bibliotecário a preencher a ficha de requisição com o título do livro e
com o meu nome. Os meninos acorriam, esfuziantes de alegria, quando a
carrinha parava por uma hora ou duas diante da Casa do Povo.
Em Bissau, onde
fiz quase todo o ensino secundário, a experiência manifestou-se de outra
maneira. Antes de existir o liceu, então chamado Liceu Honório Barreto,
as aulas davam-se na Biblioteca-Museu, junto do Palácio do Governo, e o
meu pai trabalhou ali. Depois construiu-se o Liceu, o meu pai passou
para a secretaria, e eu e os meus colegas, acabada a Primária, estreámos
o edifício, que foi o primeiro estabelecimento de ensino secundário na
actual Guiné-Bissau. Clara Schwarz da Silva, nossa professora de
Francês, lutou com outros pela sua criação.
Muitas vezes, os rapazes liam romances durante
as aulas, escondidos debaixo dos cadernos. Os professores, quando davam
conta, apreendiam-nos e entregavam-nos na secretaria. Livros policiais,
de cowboys, as aventuras de
Sandokan, imaginadas por Emilio Salgari, que o meu pai levava para casa,
e então eu também os lia. Fiquei admiradora até hoje de Agatha Christie
e de outros autores publicados pela editora Livros do Brasil, na
colecção Vampiro, criada em 1947, ano em que nasci. É a mais famosa
coleção policial portuguesa, com muitas capas concebidas por Lima de
Freitas, um escritor e pintor de mérito. Aprendi muito com os policiais,
foram a primeira literatura a fornecer-me bagagem informativa e a
estimular-me a atração pelas ciências.
Para ter a certeza de que eu estava a estudar, e
não a ler romances às escondidas, a minha mãe obrigava-me a ler em voz
alta. Interditava-se o romance por contrariar o modelo puritano de vida
que se desejava impor aos jovens, para que estes o perpetuassem nas
gerações vindouras. Apesar disso, sempre arranjava uns minutos para
leituras que me alimentavam a imaginação e rasgavam horizontes para
mundos abertos. Na ponta – no Brasil dir-se-ia fazenda ou chácara -
de Santa Luzia, lia de noite, quando tudo já dormia, sentada no
parapeito da janela, à luz do luar, ou dos relâmpagos, durante os
tornados, no tempo das chuvas.
Por volta de 1962,
viemos passar férias graciosas a Portugal. Como essas férias só
aconteciam de quatro em quatro anos, havia a possibilidade de se
prolongarem por mais de seis meses. Eu não podia perder o ano, por isso
os meus pais internaram-me num estabelecimento de ensino de freiras
franciscanas, o Colégio da Imaculada Conceição, em Lamego, para fazer o
equivalente ao oitavo ano. Aí sofri um gravíssimo percalço de leitura
com um tipo de texto novo para mim, o mapa mudo. Nesse tempo os
professores ainda gozavam o privilégio de aplicar castigos corporais aos
alunos, e era conhecida a “menina de cinco olhos”, palmatória para bater
nas mãos. No exame de Geografia saiu um mapa mudo para preencher, e eu
até sabia que rios e cidades se assinalavam só por pontos ou linhas
ondulantes. Mas nunca tinha usado um mapa mudo, pensei que não o devia
estragar, escrevendo nele os nomes dos acidentes geográficos, por isso
assinalei-os a lápis com números e numa folha à parte redigi a legenda.
A Irmã Francisca, um esqueleto andante como as atrizes de cinema,
chamou-me ao gabinete dela, pregou-me um estalo na cara, um zero no
teste, e despediu-me com a censura: “A menina é uma extravagante!”.
Além desse, no
Colégio da Imaculada Conceição entrei em contacto estreito com outra
modalidade de texto, o filme. Não creio que existisse filmoteca no
Colégio, mas o certo é que quase todos os meses víamos um, o que me
deslumbrava, pois em Bissau só mais tarde e muito raramente o meu pai me
levava ao Cinema Udib. Não seriam os filmes mais apetecíveis para uma
menina extravagante, mas emocionava-me no ambiente escuro a ver as
imagens cintilantes no écran com as histórias de santas como Maria
Goretti.
Já que estou a falar em modalidades de texto,
dou um salto grande no tempo para recordar o “livro de artista” e a
“mail art”, arte postal. Foi já nos anos 80, frequentava os cursos da
Galeria Diferença, onde tive como professores artistas de vanguarda.
Nesse período acompanhava muito Ernesto de Sousa e até fui sua
assistente na estreia de um espectáculo de multimídia na Fundación Juan
March, em Madrid. Foi ele quem me iniciou na mail art, arte cuja
característica essencial é a de exibir carimbos do correio. Não se trata
de encomenda com arte dentro, sim de arte à vista, por conseguinte,
postal na maior parte dos casos. Eu usava muito o graffiti, encanta-me a
bela caligrafia e gostava de usar marcadores dourados e prateados a
contrastarem com o negro. O livro de artista tem mais possibilidades,
quer no formato, quer nos materiais, quer nas dimensões. Participei numa
exposição coletiva de livro de artista, com «Lordes submersos», um poema
trabalhado com imagens criadas por colocação direta de objetos sobre
papel fotográfico; fotocopiava imediatamente as imagens, pois
desvanecem-se à luz, recortava as fotocópias, fotocopiava-as de novo com
redução das dimensões e colava os recortes uns sobre os outros. É a
técnica da “mise en abîme”, a estrutura em abismo que Michel Foucault
pôs em moda com o ensaio sobre «As Meninas” de Velásquez, quadro em que
vemos o pintor a pintar «As Meninas». A técnica passou depois para
romances e filmes, nos quais se conta uma história dentro de outra
história. O meu livro de artista deve estar ainda na pinacoteca da
Galeria Diferença. Como se vai notando, a biblioteca é algo muito
sistematizado, devido à diversidade de materiais que conserva. Tal como
os naturalistas classificam o mundo vivo, organizando grupos de que se
ramificam outros grupos, desde Mammalia até
Canis lupus, supondo, assim se
organizam as bibliotecas, ou, melhor dizendo, os ficheiros. Podem
incluir videoteca, discoteca, pinacoteca, hemeroteca, mapoteca e áreas
mais específicas, além das comuns «Livros», «Periódicos», «Microfilmes»,
«Manuscritos» e «Reservados». Tratando-se de uma biblioteca de Zoologia,
como a minha, o sistema de classificação dos textos espelha o sistema
lineano. Na biblioteca do Museu Bocage só havia três tipos de materiais
de leitura: livros, revistas e separatas. A separata, como o nome
indica, é algo que se separa de um todo, o número de uma revista. O
autor recebe cem ou duzentas separatas do artigo que publicou, para o
permutar com artigos dos seus colegas em todo o mundo, em especial
aqueles que trabalham matérias semelhantes, integrando-se deste modo no
mundo internacional da ciência. O ficheiro de autores, na área das
separatas, é igual a qualquer outro, organiza-se por ordem alfabética do
nome do autor. Porém o equivalente para assuntos é muito diferente: se o
artigo trata de mamíferos, é preciso ver que mamíferos são: toupeiras?
Ah, as toupeiras vão para o grupo Mammalia, dentro de Mammalia para
Insectivora, e dentro dos Insectivora ficam no grupo Talpidae, relativo
à família.
Recuando a África,
em certa altura morávamos no Alto Krim, em Bissau, nas traseiras da casa
de uns lojistas que compravam tudo o que vinha de Portugal e me
emprestavam: iniciei-me então no grande romance português. Dessa
primeira biblioteca veio o meu conhecimento de Eça de Queirós, Camilo
Castelo Branco, Júlio Dinis, e também de Axel Munthe e tantos outros,
incluídos os autores de romance histórico, como Walter Scott.
Foi também por
esses anos que iniciei a contribuição para fundos documentais de
biblioteca, mais precisamente hemeroteca, colaborando no jornal do
Liceu, «O Jagudi», e participando em iniciativas que deram lugar a
notícias em revistas e jornais, como aconteceu com a peça de teatro «Boa
vai ela!», em que representei o papel de enfermeira.
Já na Faculdade,
tornei-me utente da Biblioteca Nacional, ainda ela funcionava onde hoje
é a Escola de Belas Artes, perto do Teatro de São Carlos. Ali passavam
professores de grande prestígio, a consultar revistas e obras antigas,
como Jacinto do Prado Coelho, Virgínia Rau, Padre Manuel Antunes, Luís
Filipe Lindley Cintra e Vitorino Nemésio. Em finais dos anos 60, na
época das greves e lutas de estudantes contra a ditadura, vi um dia, nas
escadas da Reitoria, o Prof. Lindley Cintra, no meio de uma turba de
alunos, a ser desalmadamente espancado, como eles, por agentes da
polícia política, a PIDE.
Comecei a
trabalhar no Museu Bocage como preparadora de laboratório, dando
assistência a uma naturalista, e nessas funções as minhas tarefas
consistiam sobretudo em organizar materiais que se destinavam a
publicação, por isso a juntar-se aos fundos das bibliotecas. De vez em
quando, acompanhava os naturalistas nos trabalhos de campo, para recolha
dos exemplares, quer nas praias quer no bosque. Os animais são livros,
dão-se a conhecer no seu habitat e também à lupa, no laboratório. No
campo, o ornitólogo identifica certa ave de rapina pela silhueta, pelo
voo planado e pelas asas de pontas franjadas. O mamalogista identifica o
lince ou o javali pelas pegadas e mesmo pelos excrementos. Há animais
difíceis de observar, por isso o seu conhecimento faz-se de forma
indirecta, pelas pistas que deixa. Todas elas são passíveis de leitura e
interpretação, todas elas fornecem informações e alargam o conhecimento,
por isso constituem textos, e daí que muitas vezes se diga que a
Natureza é um livro.
Hoje já não se
colecionam animais como desde Lineu, no século XVIII, até há poucas
décadas. Com grande parte das espécies ameaçadas, dispondo nós de
modernas tecnologias audiovisuais e de novos métodos científicos, basta
filmar, o que nem sempre é fácil, ou coligir algo do animal que permita,
no laboratório, a reconstituição de um todo. É o que acontece com
algumas espécies de lagartos: como eles soltam a cauda quando
perseguidos, e ela se regenera após isso, tornou-se hábito recolher a
ponta da cauda em vez do animal íntegro. As caudas são textos, permitem
ler o ADN.
Como nos anos 70 ainda não se usavam essas
técnicas, coligiam-se os animais, depois conservavam-se em álcool ou
formol. Preenchia o livro de registo de entrada dos novos espécimes nas
coleções e transformava em fichas a informação. Há ficheiros de
exemplares tal como de livros. De outro modo, não se teria acesso à
consulta dos indivíduos, ninguém conseguiria encontrá-los entre os
milhares ou mesmo milhões, no caso dos grandes museus de História
Natural. Os procedimentos de catalogação e arrumação são idênticos aos
de uma biblioteca: a ficha do representante de dada espécie,
Tyto alba (local, data de
captura e colector também são informações indispensáveis) imaginemos,
indica em que sala, estante e prateleira ou gaveta se encontra, isto
quer se trate de ficheiros manuais ou eletrónicos. Os computadores
pessoais só se divulgaram a partir dos anos 80, usávamos máquina de
escrever, mas eu manuscrevia muitas fichas.
De uma vez, não
saímos em trabalho de campo para coligir invertebrados marinhos nem
répteis e anfíbios, sim regurgitações de aves de rapina. As corujas
engolem os ratos inteiros, e depois vomitam umas bolas de ossos e pêlos,
as pelotas. Os investigadores separam todos os ossinhos e com eles
identificam as espécies a que pertencem. Isso tanto serve aos
mamalogistas para inventariar as espécies de pequenos mamíferos que
habitam dada região, como aos ornitólogos para conhecer a dieta de
certas espécies de aves. O trabalho de campo destina-se a reunir
coleções de estudo. Dá lugar à publicação de catálogos de fauna,
revisões sistemáticas, análises ecológicas e outros, que às vezes eu
revia literariamente, daí que o meu nome figure nos agradecimentos de
bastantes artigos e teses de doutoramento. Com isso ia aprendendo alguns
princípios da História Natural e familiarizava-me com os assuntos e
métodos da investigação científica, o que foi de enorme utilidade quando
passei a fazer História dos naturalistas: diferentemente de outros
investigadores, que analisam o impacto da ciência na sociedade, eu
trabalho de um ponto de vista internalista, ou literário, comentando os
textos científicos.
Quando se tratava de recolher invertebrados
marinhos, aparecia em cena mais um tipo de texto, a tabela das marés,
para saber em que dias e a que horas se verificam as marés vivas e a
preia-mar, ou maré cheia, para, na baixa-mar, irmos coligir animais nas
rochas, ou grandes tufos de algas, habitat de espécies de dimensões tão
pequenas que só se vêem à lupa, no laboratório móvel instalado no hotel.
Então separava os Pantopoda das esponjas, dos moluscos e dos crustáceos,
mergulhava-os em tubos de vidro cheios de álcool (antes, preparava o
líquido a 70 ou 80 graus, com ajuda de um instrumento de leitura, o
alcoómetro), redigia a etiqueta de papel vegetal a lápis, com a
data e local de colheita. Papel vegetal e lápis porque a etiqueta se
guarda no interior dos frascos com líquido de conservação, por isso
papel e tinta têm de resistir à passagem dos anos. Com os livros, a
conservação também é importante. Nas bibliotecas, há alguns que já não
nos deixam consultar, dado o mau estado de conservação. Só os podemos
ler em microfilme ou noutro tipo de cópia. Consoante as épocas, assim a
qualidade do papel varia, daí o estimar-se que tais livros durarão mil
anos ou só umas dezenas. Entre outras virtudes, o suporte digital é
extremamente valioso para preservar textos antigos.
Certa vez ia-me afogando na Pedra da Anicha, na
baía de Setúbal, porque entrei numa zona mais funda, as botas de
pescador encheram-se de água e eu não conseguia sair dali. Quem me
salvou da aflitiva situação foi um dos mais importantes oceanógrafos
portugueses, Luiz Saldanha, chefe da equipa. Devia ser Verão, recordo-me
da praia agradável. Na maior parte dos casos, porém, o trabalho começava
bem cedo, em madrugadas geladas de Inverno. Viajávamos na carrinha do
Museu, uma Mercury com tablier
de madeirinhas douradas, na qual carregávamos baldes de lona, redes
camaroeiras, pinças grandes, pinças pequenas, vasilhame de vidro, lupa,
que não é lupa de mão, à Sherlock Holmes, sim microscópio, botas de
borracha, pás, caixas de Petri de várias dimensões, para colocar sob a
lupa com os tufos de algas entre as quais se escondem os pantópodos,
enfim, a quantidade de objetos que constitui o laboratório móvel. No
gabinete, o investigador desenvolvia o seu estudo, preparava o trabalho
escrito, a publicar na revista do Museu, entrando assim nas bibliotecas,
para ser lido por professores, alunos, e utentes externos.
Aos poucos,
comecei a constituir minha própria livraria, com livros que ia comprando
e aqueles que me ofereciam, pois fazia crítica literária em jornais, e
os autores e os editores sempre mandavam o que ia saindo de novo. E
continuam a enviar, por causa do Triplov (www.triplov.com). De vez em
quando surgem ofertas mais incomuns. Lembro-me de o “Prof. R.J.
velhinho”, como o tratávamos, já jubilado havia uma eternidade, me ter
oferecido, da sua própria livraria, «Les dames galantes» de Brantôme, os
diários de Casanova e os volumes todos da «Histoire des amours des rois
de France». Além destas, ofereceu-me também obras mais sérias, as do
pai, Ricardo Jorge, médico higienista de renome, famoso por ter
identificado o surto de peste bubónica que em finais do século XIX
assolou a cidade do Porto. Pela mão do filho, entraram então na minha
biblioteca os «Canhenhos de um vagamundo» e a obra dedicada a Amato
Lusitano, um médico do século XVI.
Os livros,
materialmente falando, tornam-se repulsivos quando envelhecem: ficam
cheios de pó, bolor e insetos. Não se confunda velho com antigo, o
antigo costuma ser bem conservado e preservado pela encardernação em
carneira; o que envelhece rapidamente é o livro brochado, em papel de
qualidade inferior. Uma vez por ano, ao menos, é necessário proceder a
uma desinfestação pelos serviços especializados. As bibliotecas fecham
durante três dias ou mais, para o veneno surtir efeito sobre os animais
e não atacar as pessoas. Mas sempre ficam ovos e larvas a corroer o
papel. É para evitar dermatites e alergias que em certas circunstâncias
os bibliotecários usam luvas e até máscara.
Ora, certa vez foi
preciso limpar os livros de Ricardo Jorge antes de doados a uma
instituição. O filho, Artur Ricardo Jorge, o Prof. R.J. velhinho,
tinha-os arrumado num armazém do Museu. Achavam-se numa perfeita
lástima, sobretudo os dele mesmo, Ricardo Jorge higienista, por serem
brochados e brancos. Alguns tiveram mesmo de ser lavados com um pano
humedecido e postos a secar, o que exigia muito espaço livre na pequena
arrecadação. Duas ou três jovens funcionárias foram destacadas para esse
moroso serviço que causava alergia nas mãos e nos olhos, mas tinha a
aliciante de o Prof. R.J. velhinho estar quase sempre presente, a contar
histórias brejeiras e a seduzir-nos com presentes e galanteios.
O Prof. R.J. velhinho, quando diretor, fundara o
Laboratório Marítimo da Guia, num forte militar, em Cascais. Como ele se
interessava pelos invertebrados marinhos e investigava um grupo especial
deles, os Crisopetalaídeos, sobre os quais publicou três ou quatro
artigos, comprou uma traineira a que deu o nome de
Physalia. As
Physalia lusitanica são medusas do Atlântico com tentáculos muito
compridos que se afundam na água sob a parte do corpo que flutua acima
deles, o flutuador, justamente. A traineira recebeu esse nome devido à
lusitanidade das medusas. Já não conheci a embarcação, mas cataloguei e
fiz os ficheiros da biblioteca do Laboratório Marítimo da Guia, na qual
figuravam obras notáveis dedicadas à fauna que habita os mares, como os
resultados das grandes campanhas oceanográficas do século XIX. No título
exibe-se sempre o nome do navio, que chegava a viajar anos em cada
missão científica, sempre com naturalistas famosos a bordo: as do
Challenger, em mais de
cinquenta grossos volumes, as do
Talisman, do Travailleur,
as do Porcupine; e também dos
iates Princesse Alice, do
príncipe do Mónaco, e do seu primo português, o rei D. Carlos, o
Amélia. O nome dos iates homenageia as esposas.
Príncipe Alberto I e rei D. Carlos dedicavam-se
à História Natural e lideravam as campanhas. Qualquer obra de História
da Oceanografia na Europa os menciona como pioneiros dessa ciência que
ainda hoje se pode considerar recente. No Principado do Mónaco existe um
museu oceanográfico cuja criação data das campanhas do Príncipe Alberto
I, com biblioteca, pois a biblioteca é parte tão essencial de um museu
como as coleções daquilo em que é especializado: botânica, geologia,
zoologia, instrumentos ópticos, escultura, pintura, etc.. Em geral o
museu publica uma ou mais revistas, que depois permuta com as de outras
instituições, em circuito fechado, porque as edições são limitadas e não
se destinam a venda. Arquivos do
Museu Bocage é o nome da revista do museu onde eu trabalhava. Ia
para cerca de quinhentas instituições congéneres em todo o mundo,
incluídos o museu de História Natural do Rio de Janeiro, o Instituto
Butantan, em São Paulo e o Museu Oceanográfico do Mónaco, que nos
enviavam as deles. A maior atividade da biblioteca de um museu
científico gira em torno das revistas, por serem o principal instrumento
de atualização. Recebem-se vários números por dia, é necessário pô-las
imediatamente à disposição dos investigadores e dos alunos. Já no
mestrado os estudantes preparam os seus trabalhos de pesquisa para o
doutoramento. Ora, diferentemente do que se passa nas Letras, em que a
novidade não assume grande relevo, e se podem elaborar trabalhos só com
matéria antiga, em ciência é crucial dispor da bibliografia mais
recente, por uma questão de atualidade e para evitar sobreposição de
descobertas: em todo o mundo, diferentes pesquisadores estudam os mesmos
assuntos e estão sempre a descobrir novas espécies, a inventar novos
produtos e novas técnicas. Interessa ser o primeiro, o segundo e o
terceiro já chegam tarde. De outra parte, certo tipo de revisões, por
exemplo as sistemáticas – aquelas que retiram certas espécies de um
grupo para as colocarem noutro, o que implica mudança na classificação e
na nomenclatura – revisões sistemáticas, dizia, exigem que se siga o
novo modelo, quando o especialista é de grande renome, por isso é
necessário estar atento a elas para não se publicar um artigo
anacrónico, ultrapassado, que ignorou a atualização publicada semanas
antes...
Os periódicos, mal o carteiro os entregava,
registavam-se e catalogavam-se imediatamente. Punham-se em escaparate,
para todos verem. Só um mês depois recolhiam à prateleira. O
investigador cuidadoso passa todas as semanas pela biblioteca a ver o
escaparate, para recolher a informação que interessa à sua pesquisa. Na
avaliação, do orientador ou do júri, será tida em conta a atualidade da
bibliografia. Reverso da medalha: as grandes obras de oceanografia do
passado, profusamente ilustradas com o desenho das novas espécies, que
levaram tantos anos a completar, e enchem estantes e estantes das
bibliotecas, hoje são consultadas raramente, e só numa perspetiva da
História das ciências. A ciência está em evolução contínua. Já que usei
o termo «evolução», hoje quase todos os cientistas são evolucionistas,
mas raros leram as obras de Darwin, até porque o evolucionismo de Darwin
já não é o atual. Darwin também fez uma longa viagem de navio, o
Beagle, mas ele é anterior à
oceanografia, a sua pesquisa incidiu sobretudo sobre animais e plantas
terrestres. Publicou várias obras sobre animais marinhos, mas que
habitam as rochas do litoral, não o mar alto. Os livros que os
estudantes requisitam para estudo, nas bibliotecas especializadas, não
são esses. Os estudantes tratam familiarmente os livros, chegam à
biblioteca e pedem: «Queria a Rolanda», «Queria o «Sacarrão & Soares»,
«Precisava do Matthes». O bibliotecário ia direito à estante onde se
guardam esses livros, sem precisar das referências completas. Eram os
catálogos mais recentes de peixes e de aves de Portugal e um manual de
Ecologia de leitura indispensável.
Acredito que, antes do incêndio, existissem na
biblioteca do Museu Bocage exemplares da famosa obra de 1859, «On the
origin of species by means of natural selection, or the preservation of
favoured races in the struggle for life». Porém, quando eu tomei conta
dela, já depois do incêndio, não havia nenhum. Fui eu que permutei os
Arquivos do Museu Bocage
com obras de Darwin da Library of
the Congress. Salvo Luís Arruda, com quem publiquei em co-autoria, que
precisou de ler os diários para saber o que Darwin refere dos Açores,
mais ninguém, além de nós dois, tinha requisitado obras de Darwin até ao
dia em que me aposentei. O que rege a ciência é o novo, não o passado.
Nas campanhas
oceanográficas, além do estudo do próprio oceano, que incluía a leitura
dos fundos para medir as profundidades, os naturalistas iam recolhendo
rochas, animais e plantas. Já de regresso, nos laboratórios, estudavam
os exemplares para os distribuírem pelos grupos sistemáticos, ou criavam
novos grupos sistemáticos para catalogarem espécies novas que não
pertenciam aos já conhecidos: peixes, crustáceos, moluscos,
celenterados, cnidários, espongiários e muitos mais. Os trabalhos iam
saindo em fascículos, ao longo de décadas; findo um volume, mandava-se
encadernar, ou encadernava-se na própria biblioteca que os recebia.
Obras muito ilustradas porque o desenho faz parte da descrição das novas
espécies. Nem a fotografia substitui o desenho, com frequência os
naturalistas também desenhavam. Luiz Saldanha, o oceanógrafo que me
salvou na Pedra da Anicha, era excelente desenhador e aguarelista.
Alguns dos seus livros foram ilustrados por ele. Nos anos 60 e 70 ainda
se ministrava uma cadeira de Desenho Biológico aos alunos de Ciências
Naturais. Depois desapareceu.
Quase tudo eram
novas espécies para a ciência no século XIX, a oceanografia estava a
nascer e viam-se pela primeira vez milhares de espécimes de grupos
animais e vegetais até então desconhecidos. O mesmo se diga para a fauna
terrestre: com a independência do Brasil, dos Estados Unidos, dos outros
países da América do Sul, a Europa perdeu as colónias, e com elas o seu
principal mercado. Voltou os olhos para África, cujo território disputou
e retalhou. Antes das partilhas, era preciso justificar soberania sobre
os territórios. Não bastava o direito histórico, exigia-se conhecimento
científico e interesse no seu desenvolvimento. Por isso foi a época das
grandes travessias de África, com Stanley, Livingstone, e, no caso
português, Serpa Pinto, Capelo e Ivens. Antes destas grandes viagens,
quase só se conhecia a costa africana. Esses exploradores e centenas de
outros coligiam espécimes geológicos, etnográficos, da flora e da fauna
e remetiam-nos para os museus dos respectivos países, o que deu lugar a
muita obra publicada e consequentemente ao enriquecimento das
bibliotecas.
Tudo isto faz
parte da minha atividade mais antiga no Museu. Depois, ocorreu o enorme
incêndio que atingiu em especial a biblioteca, e pouco restou intacto.
Uma bela biblioteca, corrida a varandins de ferro forjado, com as obras
fundamentais da História Natural de todo o mundo. Durante semanas, os
funcionários andaram a recolher bocados de livros que se acumularam em
novo setor do Museu, o dos «Queimados». Permanecerão queimados até
desaparecerem totalmente, o restauro é inexequível. Mas ninguém ousaria
mandar obras valiosas para o lixo, apesar de destruídas. O livro é
objeto de muito respeito, mesmo de culto, daí que os queimados se
tivessem tornado relíquias no espírito dos bibliotecários.
Vinha isto a
propósito da minha própria biblioteca, que teve início bastante cedo, da
qual já me desfiz em parte, por não ter onde guardar tanto livro. Só
mais tarde comecei com a discoteca, e já nos nossos dias reuni alguns
filmes numa pequenina videoteca, mas sem propósitos de colecionar. Quem
quer movimentar-se não deve acumular bens. Só é livre quem nada tem.
Antes de passar a
dirigir a biblioteca, ocupei-me do Arquivo histórico do Museu Bocage. Os
manuscritos são fascinantes porque pesa sobre eles um véu de segredo,
quando só um número restrito de pessoas os leu, a começar pelo
destinador e destinatário das cartas que, no caso, constituem o volume
maior de documentos do espólio. Como crítica literária, uso com
frequência a expressão “a escrita”, referindo-me ao modo de escrever
deste ou daquele autor; com os manuscritos, é no sentido literal da
palavra que enfrentamos a escrita. Quando lemos um livro impresso, já
saltámos sobre os primeiros níveis de descodificação – original e provas
tipográficas. No que respeita ao manuscrito, enfrentamos por vezes
dificuldades desesperantes: se há autores de caligrafia limpa, há os que
traçam uns gatafunhos indecifráveis. O José Augusto Mourão, que já
referi, escrevia assim e, pior, não o reconhecia. Para cúmulo, era
semiólogo, portanto especialista nas questões do signo e da comunicação.
Como trabalhámos em vários projetos, pedia-lhe encarecidamente que,
quando tivesse algo importante a escrever, o fizesse no computador. O
José Augusto não ligava, achava que eu é que era esquisita. Uma vez,
organizávamos um colóquio, enviou uma carta a uma convidada francesa com
o bilhete de avião dentro. É claro que a carta não chegou ao destino,
ninguém conseguiu, nos correios, decifrar a morada. A senhora, à última
hora, teve de comprar ela a passagem para Lisboa. Fiquei furiosa com
ele, tantas vezes o tinha avisado: «Zé Augusto, fico muito contente
quando me escreve à mão, mas olhe que a sua letra não se percebe, por
isso até me deixa livre de imaginar que me faz declarações de amor!».
Não sei se informei que o José Augusto Mourão era frade…
A caligrafia é tão
desafiadora como um poema obscuro, quando remonta a tempos em que a
ortografia e o estilo da língua se diferenciavam muito dos atuais. No
Arquivo histórico do Museu Bocage, os textos mais antigos remontam ao
século XVIII, por isso são razoavelmente fáceis de descodificar. Mas o
espólio, na maior parte, pertencia a José Vicente Barbosa du Bocage,
antigo diretor e fundador da casa, que se correspondia com naturalistas
um pouco de toda a Europa – Günther, Boulenger, Bedriaga, Gray – e
então, quando a língua não me era familiar, a leitura tornava-se penosa.
Para todos os documentos se redigia uma ficha, com o nome do autor,
local e data, número de catálogo e um pequeno resumo. Pelo meio
apareciam textos estranhos, e um deles, que por sinal nunca mais vi,
depois da minha primeira ordenação, só agora o reconheço: um documento
na escrita maçónica, que substitui as letras por triângulos em várias
posições, com pontinhos dentro.
Os tempos mudaram,
a tecnologia proporciona-nos ferramentas de trabalho preciosas, exemplo
da Internet, onde podemos consultar obras digitalizadas, assinar
revistas especializadas e aceder a bibliotecas de todo o mundo sem
sairmos de casa. É excelente, mas faz falta a tertúlia que por vezes se
criava na biblioteca, quando apareciam os professores catedráticos e se
entabulavam discussões científicas ou apenas brincalhonas com os alunos
e funcionários. A conversa também ensina, e a convivência cria laços de
amizade tão fortes como os livros.
Maria Estela Guedes
Casa dos Banhos, maio-junho de 2013
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