REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 45 | abril-maio | 2014

 
 

 

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES

 A minha vida vista do papel

 

Foto: Ed. Guimarães    

Maria Estela Guedes. Poeta, ficcionista, cronista, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos publicados.                   

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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  In: Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary Roggero (org.), TEMPO-MEMÓRIA NA EDUCAÇÃO. São Paulo, Big Time Editora, 2014.
 
 

O convite para participar nesta obra sobre bibliotecas, que me honra, e agradeço, equivale a pedirem que escreva uma autobiografia. Realmente, a minha experiência como escritora, investigadora, editora e bibliotecária abrange todos os níveis da biblioteca.

Licenciei-me em Literatura, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, já num período em que trabalhava e pagava os meus estudos. De dia, era funcionária pública, no Museu e Laboratório Zoológico e Antropológico (Museu Bocage), da Universidade de Lisboa. À noite, dava aulas de Português e Francês no Externato Bocage, uma escola particular para adultos, cuja pequena biblioteca ajudei a constituir. Já numa fase muito posterior, enquanto codiretora, também promovi a organização da biblioteca da Associação Portuguesa de Escritores, na Rua de S. Domingos à Lapa, em Lisboa.

Toda a minha carreira decorreu no Museu, um de vários na Faculdade de Ciências, antiga Escola Politécnica. Após um grande incêndio, em 1978, a Faculdade mudou as instalações para Campo Grande, mas os museus permaneceram na Politécnica: Museu Bocage, Museu, Laboratório e Jardim Botânico, e Museu de Geologia. Só mais tarde se lhes juntou o Museu de Ciência. Toda a zona sofreu com a partida dos estudantes, que depois passaram a frequentar a Politécnica só quando já andavam com as teses de mestrado e doutoramento, porque precisavam dos laboratórios e das bibliotecas.

A história da minha ligação às bibliotecas começa quando tinha dezanove anos, portanto lá pelos idos de 1966. E não, vamos ver: a nossa primeira biblioteca, entendida como fonte de conhecimento, é a mãe. Não conseguiríamos ler os livros sem domínio da língua, e essa aprendemo-la em casa, daí que a designemos por “língua materna”. Quando chegamos à escola, já temos competência linguística, o que vamos aprender é a escrever e a ler. Numa perspetiva histórica, este salto da oralidade para a escrita, tão imenso como o do cru para o cozido, como escreveu Claude Lévi-Strauss, funda a civilização ocidental, e dá lugar a belíssimas histórias. Uma delas, apesar de relativamente recente, impressionou-me de tal maneira que aparece em vários textos meus, caso da peça «Um bilhete para o Teatro do Céu»: é a da revelação da Palavra de Deus a Muhammad. Um dia, nos montes, apareceu-lhe Jibraíl, o anjo Gabriel, que lhe mostrou um pano recoberto de carateres e lhe pediu que os lesse. O interlocutor ficou mudo de espanto e temor. Face à insistência do anjo, acabou por confessar: «Não sei ler!». Então, ríspido, Jibraíl ordenou: «Lê, em nome de Deus!». E Muhammad leu, passando assim a Profeta do novo livro que irrompia, o Alcorão, a par dos que já existiam, o Antigo e Novo Testamentos. É motivo de orgulho tão grande o domínio da leitura e da escrita que as três comunidades religiosas de origem semita se designam como Povo do Livro. Não só por os livros sagrados manterem elementos comuns, como pela circunstância maior de as três religiões, diferentemente das que vieram a sobrepujar, se situarem num patamar civilizacional mais complexo, o do domínio da escrita.  

A primeira livraria que frequentei, em criança, ou quando, adolescente, passava férias na aldeia onde nasci, Britiande, foi a biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian. Eram carrinhas, corridas a estantes no interior, que deixavam livros e recolhiam os já lidos nas aldeias e cidades por onde passavam uma vez por mês. Dois escritores portugueses muito importantes trabalharam nesse serviço mas, na altura, nem eu os conhecia nem eles eram ainda importantes: Herberto Helder, sobre cuja obra publiquei dois livros, e Luiz Pacheco, de quem também me ocupei, embora menos. Ou ocupei-me dele de maneira diversa, promovendo a sua leitura no Brasil, com a publicação de «O espelho do libertino» na Editora Escrituras, de São Paulo. Outros escritores têm sido publicados nela por conselho meu, e noutras editoras, como a Apenas Livros, de Lisboa, na qual dirijo duas coleções, e na Arte-Livros, também de São Paulo, na qual faço parte do conselho consultivo de uma coleção de poesia. Saiu nesta, por diligência minha, «Onde rasgar janelas», de José Augusto Mourão.

Quem sabe se Herberto Helder e Luiz Pacheco, na carrinha da biblioteca itinerante, me sugeriram a leitura de Enid Blyton, com as aventuras de Os cinco, e da Condessa de Ségur! Ainda me lembro das Memórias de um burro, e vejo o bibliotecário a preencher a ficha de requisição com o título do livro e com o meu nome. Os meninos acorriam, esfuziantes de alegria, quando a carrinha parava por uma hora ou duas diante da Casa do Povo.

Em Bissau, onde fiz quase todo o ensino secundário, a experiência manifestou-se de outra maneira. Antes de existir o liceu, então chamado Liceu Honório Barreto, as aulas davam-se na Biblioteca-Museu, junto do Palácio do Governo, e o meu pai trabalhou ali. Depois construiu-se o Liceu, o meu pai passou para a secretaria, e eu e os meus colegas, acabada a Primária, estreámos o edifício, que foi o primeiro estabelecimento de ensino secundário na actual Guiné-Bissau. Clara Schwarz da Silva, nossa professora de Francês, lutou com outros pela sua criação.

Muitas vezes, os rapazes liam romances durante as aulas, escondidos debaixo dos cadernos. Os professores, quando davam conta, apreendiam-nos e entregavam-nos na secretaria. Livros policiais, de cowboys, as aventuras de Sandokan, imaginadas por Emilio Salgari, que o meu pai levava para casa, e então eu também os lia. Fiquei admiradora até hoje de Agatha Christie e de outros autores publicados pela editora Livros do Brasil, na colecção Vampiro, criada em 1947, ano em que nasci. É a mais famosa coleção policial portuguesa, com muitas capas concebidas por Lima de Freitas, um escritor e pintor de mérito. Aprendi muito com os policiais, foram a primeira literatura a fornecer-me bagagem informativa e a estimular-me a atração pelas ciências.

Para ter a certeza de que eu estava a estudar, e não a ler romances às escondidas, a minha mãe obrigava-me a ler em voz alta. Interditava-se o romance por contrariar o modelo puritano de vida que se desejava impor aos jovens, para que estes o perpetuassem nas gerações vindouras. Apesar disso, sempre arranjava uns minutos para leituras que me alimentavam a imaginação e rasgavam horizontes para mundos abertos. Na ponta – no Brasil dir-se-ia fazenda ou chácara -  de Santa Luzia, lia de noite, quando tudo já dormia, sentada no parapeito da janela, à luz do luar, ou dos relâmpagos, durante os tornados, no tempo das chuvas.

Por volta de 1962, viemos passar férias graciosas a Portugal. Como essas férias só aconteciam de quatro em quatro anos, havia a possibilidade de se prolongarem por mais de seis meses. Eu não podia perder o ano, por isso os meus pais internaram-me num estabelecimento de ensino de freiras franciscanas, o Colégio da Imaculada Conceição, em Lamego, para fazer o equivalente ao oitavo ano. Aí sofri um gravíssimo percalço de leitura com um tipo de texto novo para mim, o mapa mudo. Nesse tempo os professores ainda gozavam o privilégio de aplicar castigos corporais aos alunos, e era conhecida a “menina de cinco olhos”, palmatória para bater nas mãos. No exame de Geografia saiu um mapa mudo para preencher, e eu até sabia que rios e cidades se assinalavam só por pontos ou linhas ondulantes. Mas nunca tinha usado um mapa mudo, pensei que não o devia estragar, escrevendo nele os nomes dos acidentes geográficos, por isso assinalei-os a lápis com números e numa folha à parte redigi a legenda. A Irmã Francisca, um esqueleto andante como as atrizes de cinema, chamou-me ao gabinete dela, pregou-me um estalo na cara, um zero no teste, e despediu-me com a censura: “A menina é uma extravagante!”.

Além desse, no Colégio da Imaculada Conceição entrei em contacto estreito com outra modalidade de texto, o filme. Não creio que existisse filmoteca no Colégio, mas o certo é que quase todos os meses víamos um, o que me deslumbrava, pois em Bissau só mais tarde e muito raramente o meu pai me levava ao Cinema Udib. Não seriam os filmes mais apetecíveis para uma menina extravagante, mas emocionava-me no ambiente escuro a ver as imagens cintilantes no écran com as histórias de santas como Maria Goretti.

Já que estou a falar em modalidades de texto, dou um salto grande no tempo para recordar o “livro de artista” e a “mail art”, arte postal. Foi já nos anos 80, frequentava os cursos da Galeria Diferença, onde tive como professores artistas de vanguarda. Nesse período acompanhava muito Ernesto de Sousa e até fui sua assistente na estreia de um espectáculo de multimídia na Fundación Juan March, em Madrid. Foi ele quem me iniciou na mail art, arte cuja característica essencial é a de exibir carimbos do correio. Não se trata de encomenda com arte dentro, sim de arte à vista, por conseguinte, postal na maior parte dos casos. Eu usava muito o graffiti, encanta-me a bela caligrafia e gostava de usar marcadores dourados e prateados a contrastarem com o negro. O livro de artista tem mais possibilidades, quer no formato, quer nos materiais, quer nas dimensões. Participei numa exposição coletiva de livro de artista, com «Lordes submersos», um poema trabalhado com imagens criadas por colocação direta de objetos sobre papel fotográfico; fotocopiava imediatamente as imagens, pois desvanecem-se à luz, recortava as fotocópias, fotocopiava-as de novo com redução das dimensões e colava os recortes uns sobre os outros. É a técnica da “mise en abîme”, a estrutura em abismo que Michel Foucault pôs em moda com o ensaio sobre «As Meninas” de Velásquez, quadro em que vemos o pintor a pintar «As Meninas». A técnica passou depois para romances e filmes, nos quais se conta uma história dentro de outra história. O meu livro de artista deve estar ainda na pinacoteca da Galeria Diferença. Como se vai notando, a biblioteca é algo muito sistematizado, devido à diversidade de materiais que conserva. Tal como os naturalistas classificam o mundo vivo, organizando grupos de que se ramificam outros grupos, desde Mammalia até Canis lupus, supondo, assim se organizam as bibliotecas, ou, melhor dizendo, os ficheiros. Podem incluir videoteca, discoteca, pinacoteca, hemeroteca, mapoteca e áreas mais específicas, além das comuns «Livros», «Periódicos», «Microfilmes», «Manuscritos» e «Reservados». Tratando-se de uma biblioteca de Zoologia, como a minha, o sistema de classificação dos textos espelha o sistema lineano. Na biblioteca do Museu Bocage só havia três tipos de materiais de leitura: livros, revistas e separatas. A separata, como o nome indica, é algo que se separa de um todo, o número de uma revista. O autor recebe cem ou duzentas separatas do artigo que publicou, para o permutar com artigos dos seus colegas em todo o mundo, em especial aqueles que trabalham matérias semelhantes, integrando-se deste modo no mundo internacional da ciência. O ficheiro de autores, na área das separatas, é igual a qualquer outro, organiza-se por ordem alfabética do nome do autor. Porém o equivalente para assuntos é muito diferente: se o artigo trata de mamíferos, é preciso ver que mamíferos são: toupeiras? Ah, as toupeiras vão para o grupo Mammalia, dentro de Mammalia para Insectivora, e dentro dos Insectivora ficam no grupo Talpidae, relativo à família.

Recuando a África, em certa altura morávamos no Alto Krim, em Bissau, nas traseiras da casa de uns lojistas que compravam tudo o que vinha de Portugal e me emprestavam: iniciei-me então no grande romance português. Dessa primeira biblioteca veio o meu conhecimento de Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, e também de Axel Munthe e tantos outros, incluídos os autores de romance histórico, como Walter Scott.

Foi também por esses anos que iniciei a contribuição para fundos documentais de biblioteca, mais precisamente hemeroteca, colaborando no jornal do Liceu, «O Jagudi», e participando em iniciativas que deram lugar a notícias em revistas e jornais, como aconteceu com a peça de teatro «Boa vai ela!», em que representei o papel de enfermeira.

Já na Faculdade, tornei-me utente da Biblioteca Nacional, ainda ela funcionava onde hoje é a Escola de Belas Artes, perto do Teatro de São Carlos. Ali passavam professores de grande prestígio, a consultar revistas e obras antigas, como Jacinto do Prado Coelho, Virgínia Rau, Padre Manuel Antunes, Luís Filipe Lindley Cintra e Vitorino Nemésio. Em finais dos anos 60, na época das greves e lutas de estudantes contra a ditadura, vi um dia, nas escadas da Reitoria, o Prof. Lindley Cintra, no meio de uma turba de alunos, a ser desalmadamente espancado, como eles, por agentes da polícia política, a PIDE.

Comecei a trabalhar no Museu Bocage como preparadora de laboratório, dando assistência a uma naturalista, e nessas funções as minhas tarefas consistiam sobretudo em organizar materiais que se destinavam a publicação, por isso a juntar-se aos fundos das bibliotecas. De vez em quando, acompanhava os naturalistas nos trabalhos de campo, para recolha dos exemplares, quer nas praias quer no bosque. Os animais são livros, dão-se a conhecer no seu habitat e também à lupa, no laboratório. No campo, o ornitólogo identifica certa ave de rapina pela silhueta, pelo voo planado e pelas asas de pontas franjadas. O mamalogista identifica o lince ou o javali pelas pegadas e mesmo pelos excrementos. Há animais difíceis de observar, por isso o seu conhecimento faz-se de forma indirecta, pelas pistas que deixa. Todas elas são passíveis de leitura e interpretação, todas elas fornecem informações e alargam o conhecimento, por isso constituem textos, e daí que muitas vezes se diga que a Natureza é um livro.

Hoje já não se colecionam animais como desde Lineu, no século XVIII, até há poucas décadas. Com grande parte das espécies ameaçadas, dispondo nós de modernas tecnologias audiovisuais e de novos métodos científicos, basta filmar, o que nem sempre é fácil, ou coligir algo do animal que permita, no laboratório, a reconstituição de um todo. É o que acontece com algumas espécies de lagartos: como eles soltam a cauda quando perseguidos, e ela se regenera após isso, tornou-se hábito recolher a ponta da cauda em vez do animal íntegro. As caudas são textos, permitem ler o ADN.

Como nos anos 70 ainda não se usavam essas técnicas, coligiam-se os animais, depois conservavam-se em álcool ou formol. Preenchia o livro de registo de entrada dos novos espécimes nas coleções e transformava em fichas a informação. Há ficheiros de exemplares tal como de livros. De outro modo, não se teria acesso à consulta dos indivíduos, ninguém conseguiria encontrá-los entre os milhares ou mesmo milhões, no caso dos grandes museus de História Natural. Os procedimentos de catalogação e arrumação são idênticos aos de uma biblioteca: a ficha do representante de dada espécie, Tyto alba (local, data de captura e colector também são informações indispensáveis) imaginemos, indica em que sala, estante e prateleira ou gaveta se encontra, isto quer se trate de ficheiros manuais ou eletrónicos. Os computadores pessoais só se divulgaram a partir dos anos 80, usávamos máquina de escrever, mas eu manuscrevia muitas fichas. 

De uma vez, não saímos em trabalho de campo para coligir invertebrados marinhos nem répteis e anfíbios, sim regurgitações de aves de rapina. As corujas engolem os ratos inteiros, e depois vomitam umas bolas de ossos e pêlos, as pelotas. Os investigadores separam todos os ossinhos e com eles identificam as espécies a que pertencem. Isso tanto serve aos mamalogistas para inventariar as espécies de pequenos mamíferos que habitam dada região, como aos ornitólogos para conhecer a dieta de certas espécies de aves. O trabalho de campo destina-se a reunir coleções de estudo. Dá lugar à publicação de catálogos de fauna, revisões sistemáticas, análises ecológicas e outros, que às vezes eu revia literariamente, daí que o meu nome figure nos agradecimentos de bastantes artigos e teses de doutoramento. Com isso ia aprendendo alguns princípios da História Natural e familiarizava-me com os assuntos e métodos da investigação científica, o que foi de enorme utilidade quando passei a fazer História dos naturalistas: diferentemente de outros investigadores, que analisam o impacto da ciência na sociedade, eu trabalho de um ponto de vista internalista, ou literário, comentando os textos científicos.

Quando se tratava de recolher invertebrados marinhos, aparecia em cena mais um tipo de texto, a tabela das marés, para saber em que dias e a que horas se verificam as marés vivas e a preia-mar, ou maré cheia, para, na baixa-mar, irmos coligir animais nas rochas, ou grandes tufos de algas, habitat de espécies de dimensões tão pequenas que só se vêem à lupa, no laboratório móvel instalado no hotel. Então separava os Pantopoda das esponjas, dos moluscos e dos crustáceos, mergulhava-os em tubos de vidro cheios de álcool (antes, preparava o líquido a 70 ou 80 graus, com ajuda de um instrumento de leitura, o  alcoómetro), redigia a etiqueta de papel vegetal a lápis, com a data e local de colheita. Papel vegetal e lápis porque a etiqueta se guarda no interior dos frascos com líquido de conservação, por isso papel e tinta têm de resistir à passagem dos anos. Com os livros, a conservação também é importante. Nas bibliotecas, há alguns que já não nos deixam consultar, dado o mau estado de conservação. Só os podemos ler em microfilme ou noutro tipo de cópia. Consoante as épocas, assim a qualidade do papel varia, daí o estimar-se que tais livros durarão mil anos ou só umas dezenas. Entre outras virtudes, o suporte digital é extremamente valioso para preservar textos antigos.

Certa vez ia-me afogando na Pedra da Anicha, na baía de Setúbal, porque entrei numa zona mais funda, as botas de pescador encheram-se de água e eu não conseguia sair dali. Quem me salvou da aflitiva situação foi um dos mais importantes oceanógrafos portugueses, Luiz Saldanha, chefe da equipa. Devia ser Verão, recordo-me da praia agradável. Na maior parte dos casos, porém, o trabalho começava bem cedo, em madrugadas geladas de Inverno. Viajávamos na carrinha do Museu, uma Mercury com tablier de madeirinhas douradas, na qual carregávamos baldes de lona, redes camaroeiras, pinças grandes, pinças pequenas, vasilhame de vidro, lupa, que não é lupa de mão, à Sherlock Holmes, sim microscópio, botas de borracha, pás, caixas de Petri de várias dimensões, para colocar sob a lupa com os tufos de algas entre as quais se escondem os pantópodos, enfim, a quantidade de objetos que constitui o laboratório móvel. No gabinete, o investigador desenvolvia o seu estudo, preparava o trabalho escrito, a publicar na revista do Museu, entrando assim nas bibliotecas, para ser lido por professores, alunos, e utentes externos.

Aos poucos, comecei a constituir minha própria livraria, com livros que ia comprando e aqueles que me ofereciam, pois fazia crítica literária em jornais, e os autores e os editores sempre mandavam o que ia saindo de novo. E continuam a enviar, por causa do Triplov (www.triplov.com). De vez em quando surgem ofertas mais incomuns. Lembro-me de o “Prof. R.J. velhinho”, como o tratávamos, já jubilado havia uma eternidade, me ter oferecido, da sua própria livraria, «Les dames galantes» de Brantôme, os diários de Casanova e os volumes todos da «Histoire des amours des rois de France». Além destas, ofereceu-me também obras mais sérias, as do pai, Ricardo Jorge, médico higienista de renome, famoso por ter identificado o surto de peste bubónica que em finais do século XIX assolou a cidade do Porto. Pela mão do filho, entraram então na minha biblioteca os «Canhenhos de um vagamundo» e a obra dedicada a Amato Lusitano, um médico do século XVI.

Os livros, materialmente falando, tornam-se repulsivos quando envelhecem: ficam cheios de pó, bolor e insetos. Não se confunda velho com antigo, o antigo costuma ser bem conservado e preservado pela encardernação em carneira; o que envelhece rapidamente é o livro brochado, em papel de qualidade inferior. Uma vez por ano, ao menos, é necessário proceder a uma desinfestação pelos serviços especializados. As bibliotecas fecham durante três dias ou mais, para o veneno surtir efeito sobre os animais e não atacar as pessoas. Mas sempre ficam ovos e larvas a corroer o papel. É para evitar dermatites e alergias que em certas circunstâncias os bibliotecários usam luvas e até máscara.

Ora, certa vez foi preciso limpar os livros de Ricardo Jorge antes de doados a uma instituição. O filho, Artur Ricardo Jorge, o Prof. R.J. velhinho, tinha-os arrumado num armazém do Museu. Achavam-se numa perfeita lástima, sobretudo os dele mesmo, Ricardo Jorge higienista, por serem brochados e brancos. Alguns tiveram mesmo de ser lavados com um pano humedecido e postos a secar, o que exigia muito espaço livre na pequena arrecadação. Duas ou três jovens funcionárias foram destacadas para esse moroso serviço que causava alergia nas mãos e nos olhos, mas tinha a aliciante de o Prof. R.J. velhinho estar quase sempre presente, a contar histórias brejeiras e a seduzir-nos com presentes e galanteios.

O Prof. R.J. velhinho, quando diretor, fundara o Laboratório Marítimo da Guia, num forte militar, em Cascais. Como ele se interessava pelos invertebrados marinhos e investigava um grupo especial deles, os Crisopetalaídeos, sobre os quais publicou três ou quatro artigos, comprou uma traineira a que deu o nome de Physalia. As Physalia lusitanica são medusas do Atlântico com tentáculos muito compridos que se afundam na água sob a parte do corpo que flutua acima deles, o flutuador, justamente. A traineira recebeu esse nome devido à lusitanidade das medusas. Já não conheci a embarcação, mas cataloguei e fiz os ficheiros da biblioteca do Laboratório Marítimo da Guia, na qual figuravam obras notáveis dedicadas à fauna que habita os mares, como os resultados das grandes campanhas oceanográficas do século XIX. No título exibe-se sempre o nome do navio, que chegava a viajar anos em cada missão científica, sempre com naturalistas famosos a bordo: as do Challenger, em mais de cinquenta grossos volumes, as do Talisman, do Travailleur, as do Porcupine; e também dos iates Princesse Alice, do príncipe do Mónaco, e do seu primo português, o rei D. Carlos, o Amélia. O nome dos iates homenageia as esposas.

Príncipe Alberto I e rei D. Carlos dedicavam-se à História Natural e lideravam as campanhas. Qualquer obra de História da Oceanografia na Europa os menciona como pioneiros dessa ciência que ainda hoje se pode considerar recente. No Principado do Mónaco existe um museu oceanográfico cuja criação data das campanhas do Príncipe Alberto I, com biblioteca, pois a biblioteca é parte tão essencial de um museu como as coleções daquilo em que é especializado: botânica, geologia, zoologia, instrumentos ópticos, escultura, pintura, etc.. Em geral o museu publica uma ou mais revistas, que depois permuta com as de outras instituições, em circuito fechado, porque as edições são limitadas e não se destinam a venda. Arquivos do Museu Bocage é o nome da revista do museu onde eu trabalhava. Ia para cerca de quinhentas instituições congéneres em todo o mundo, incluídos o museu de História Natural do Rio de Janeiro, o Instituto Butantan, em São Paulo e o Museu Oceanográfico do Mónaco, que nos enviavam as deles. A maior atividade da biblioteca de um museu científico gira em torno das revistas, por serem o principal instrumento de atualização. Recebem-se vários números por dia, é necessário pô-las imediatamente à disposição dos investigadores e dos alunos. Já no mestrado os estudantes preparam os seus trabalhos de pesquisa para o doutoramento. Ora, diferentemente do que se passa nas Letras, em que a novidade não assume grande relevo, e se podem elaborar trabalhos só com matéria antiga, em ciência é crucial dispor da bibliografia mais recente, por uma questão de atualidade e para evitar sobreposição de descobertas: em todo o mundo, diferentes pesquisadores estudam os mesmos assuntos e estão sempre a descobrir novas espécies, a inventar novos produtos e novas técnicas. Interessa ser o primeiro, o segundo e o terceiro já chegam tarde. De outra parte, certo tipo de revisões, por exemplo as sistemáticas – aquelas que retiram certas espécies de um grupo para as colocarem noutro, o que implica mudança na classificação e na nomenclatura – revisões sistemáticas, dizia, exigem que se siga o novo modelo, quando o especialista é de grande renome, por isso é necessário estar atento a elas para não se publicar um artigo anacrónico, ultrapassado, que ignorou a atualização publicada semanas antes...

Os periódicos, mal o carteiro os entregava, registavam-se e catalogavam-se imediatamente. Punham-se em escaparate, para todos verem. Só um mês depois recolhiam à prateleira. O investigador cuidadoso passa todas as semanas pela biblioteca a ver o escaparate, para recolher a informação que interessa à sua pesquisa. Na avaliação, do orientador ou do júri, será tida em conta a atualidade da bibliografia. Reverso da medalha: as grandes obras de oceanografia do passado, profusamente ilustradas com o desenho das novas espécies, que levaram tantos anos a completar, e enchem estantes e estantes das bibliotecas, hoje são consultadas raramente, e só numa perspetiva da História das ciências. A ciência está em evolução contínua. Já que usei o termo «evolução», hoje quase todos os cientistas são evolucionistas, mas raros leram as obras de Darwin, até porque o evolucionismo de Darwin já não é o atual. Darwin também fez uma longa viagem de navio, o Beagle, mas ele é anterior à oceanografia, a sua pesquisa incidiu sobretudo sobre animais e plantas terrestres. Publicou várias obras sobre animais marinhos, mas que habitam as rochas do litoral, não o mar alto. Os livros que os estudantes requisitam para estudo, nas bibliotecas especializadas, não são esses. Os estudantes tratam familiarmente os livros, chegam à biblioteca e pedem: «Queria a Rolanda», «Queria o «Sacarrão & Soares», «Precisava do Matthes». O bibliotecário ia direito à estante onde se guardam esses livros, sem precisar das referências completas. Eram os catálogos mais recentes de peixes e de aves de Portugal e um manual de Ecologia de leitura indispensável.

Acredito que, antes do incêndio, existissem na biblioteca do Museu Bocage exemplares da famosa obra de 1859, «On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life». Porém, quando eu tomei conta dela, já depois do incêndio, não havia nenhum. Fui eu que permutei os Arquivos do Museu Bocage  com obras de Darwin da Library of the Congress. Salvo Luís Arruda, com quem publiquei em co-autoria, que precisou de ler os diários para saber o que Darwin refere dos Açores, mais ninguém, além de nós dois, tinha requisitado obras de Darwin até ao dia em que me aposentei. O que rege a ciência é o novo, não o passado.

Nas campanhas oceanográficas, além do estudo do próprio oceano, que incluía a leitura dos fundos para medir as profundidades, os naturalistas iam recolhendo rochas, animais e plantas. Já de regresso, nos laboratórios, estudavam os exemplares para os distribuírem pelos grupos sistemáticos, ou criavam novos grupos sistemáticos para catalogarem espécies novas que não pertenciam aos já conhecidos: peixes, crustáceos, moluscos, celenterados, cnidários, espongiários e muitos mais. Os trabalhos iam saindo em fascículos, ao longo de décadas; findo um volume, mandava-se encadernar, ou encadernava-se na própria biblioteca que os recebia. Obras muito ilustradas porque o desenho faz parte da descrição das novas espécies. Nem a fotografia substitui o desenho, com frequência os naturalistas também desenhavam. Luiz Saldanha, o oceanógrafo que me salvou na Pedra da Anicha, era excelente desenhador e aguarelista. Alguns dos seus livros foram ilustrados por ele. Nos anos 60 e 70 ainda se ministrava uma cadeira de Desenho Biológico aos alunos de Ciências Naturais. Depois desapareceu.

Quase tudo eram novas espécies para a ciência no século XIX, a oceanografia estava a nascer e viam-se pela primeira vez milhares de espécimes de grupos animais e vegetais até então desconhecidos. O mesmo se diga para a fauna terrestre: com a independência do Brasil, dos Estados Unidos, dos outros países da América do Sul, a Europa perdeu as colónias, e com elas o seu principal mercado. Voltou os olhos para África, cujo território disputou e retalhou. Antes das partilhas, era preciso justificar soberania sobre os territórios. Não bastava o direito histórico, exigia-se conhecimento científico e interesse no seu desenvolvimento. Por isso foi a época das grandes travessias de África, com Stanley, Livingstone, e, no caso português, Serpa Pinto, Capelo e Ivens. Antes destas grandes viagens, quase só se conhecia a costa africana. Esses exploradores e centenas de outros coligiam espécimes geológicos, etnográficos, da flora e da fauna e remetiam-nos para os museus dos respectivos países, o que deu lugar a muita obra publicada e consequentemente ao enriquecimento das bibliotecas.

Tudo isto faz parte da minha atividade mais antiga no Museu. Depois, ocorreu o enorme incêndio que atingiu em especial a biblioteca, e pouco restou intacto. Uma bela biblioteca, corrida a varandins de ferro forjado, com as obras fundamentais da História Natural de todo o mundo. Durante semanas, os funcionários andaram a recolher bocados de livros que se acumularam em novo setor do Museu, o dos «Queimados». Permanecerão queimados até desaparecerem totalmente, o restauro é inexequível. Mas ninguém ousaria mandar obras valiosas para o lixo, apesar de destruídas. O livro é objeto de muito respeito, mesmo de culto, daí que os queimados se tivessem tornado relíquias no espírito dos bibliotecários.

Vinha isto a propósito da minha própria biblioteca, que teve início bastante cedo, da qual já me desfiz em parte, por não ter onde guardar tanto livro. Só mais tarde comecei com a discoteca, e já nos nossos dias reuni alguns filmes numa pequenina videoteca, mas sem propósitos de colecionar. Quem quer movimentar-se não deve acumular bens. Só é livre quem nada tem.

Antes de passar a dirigir a biblioteca, ocupei-me do Arquivo histórico do Museu Bocage. Os manuscritos são fascinantes porque pesa sobre eles um véu de segredo, quando só um número restrito de pessoas os leu, a começar pelo destinador e destinatário das cartas que, no caso, constituem o volume maior de documentos do espólio. Como crítica literária, uso com frequência a expressão “a escrita”, referindo-me ao modo de escrever deste ou daquele autor; com os manuscritos, é no sentido literal da palavra que enfrentamos a escrita. Quando lemos um livro impresso, já saltámos sobre os primeiros níveis de descodificação – original e provas tipográficas. No que respeita ao manuscrito, enfrentamos por vezes dificuldades desesperantes: se há autores de caligrafia limpa, há os que traçam uns gatafunhos indecifráveis. O José Augusto Mourão, que já referi, escrevia assim e, pior, não o reconhecia. Para cúmulo, era semiólogo, portanto especialista nas questões do signo e da comunicação. Como trabalhámos em vários projetos, pedia-lhe encarecidamente que, quando tivesse algo importante a escrever, o fizesse no computador. O José Augusto não ligava, achava que eu é que era esquisita. Uma vez, organizávamos um colóquio, enviou uma carta a uma convidada francesa com o bilhete de avião dentro. É claro que a carta não chegou ao destino, ninguém conseguiu, nos correios, decifrar a morada. A senhora, à última hora, teve de comprar ela a passagem para Lisboa. Fiquei furiosa com ele, tantas vezes o tinha avisado: «Zé Augusto, fico muito contente quando me escreve à mão, mas olhe que a sua letra não se percebe, por isso até me deixa livre de imaginar que me faz declarações de amor!». Não sei se informei que o José Augusto Mourão era frade…

A caligrafia é tão desafiadora como um poema obscuro, quando remonta a tempos em que a ortografia e o estilo da língua se diferenciavam muito dos atuais. No Arquivo histórico do Museu Bocage, os textos mais antigos remontam ao século XVIII, por isso são razoavelmente fáceis de descodificar. Mas o espólio, na maior parte, pertencia a José Vicente Barbosa du Bocage, antigo diretor e fundador da casa, que se correspondia com naturalistas um pouco de toda a Europa – Günther, Boulenger, Bedriaga, Gray – e então, quando a língua não me era familiar, a leitura tornava-se penosa. Para todos os documentos se redigia uma ficha, com o nome do autor, local e data, número de catálogo e um pequeno resumo. Pelo meio apareciam textos estranhos, e um deles, que por sinal nunca mais vi, depois da minha primeira ordenação, só agora o reconheço: um documento na escrita maçónica, que substitui as letras por triângulos em várias posições, com pontinhos dentro.

Os tempos mudaram, a tecnologia proporciona-nos ferramentas de trabalho preciosas, exemplo da Internet, onde podemos consultar obras digitalizadas, assinar revistas especializadas e aceder a bibliotecas de todo o mundo sem sairmos de casa. É excelente, mas faz falta a tertúlia que por vezes se criava na biblioteca, quando apareciam os professores catedráticos e se entabulavam discussões científicas ou apenas brincalhonas com os alunos e funcionários. A conversa também ensina, e a convivência cria laços de amizade tão fortes como os livros.

 

 

Maria Estela Guedes
Casa dos Banhos, maio-junho de 2013

   
   
   
 

 
  Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary Roggero (org.)
TEMPO-MEMÓRIA NA EDUCAÇÃO
São Paulo, Big Time Editora, 2014
   
 

 

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