REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 45 | abril-maio | 2014

 
 

 

 

LUÍS COSTA

Poemas eslavos

 

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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1

SONHO: estou sentado à mesa com os meus antepassados. mortos.

as crianças brincam com as bonecas de cabeça de corvo.

os meus antepassados. mortos. dão gargalhadas.

comem e brindam à vida. ao sangue acidulado das crianças e dos animais.

as crianças olham-nos. brincam com as bonecas. feitas de trapos.

brincam. com as bonecas. ao lado, as mães. tristes e velhas.

as crianças saltam. dançam. riem. não sabem que é um banquete

de mortos.

riem para dentro dos espelhos com a inocência dos animais.

deslumbrantes.

as crianças trazem em si a agilidade dos espelhos. a grande sabedoria:

sabem, não sabendo, que os mortos vivem entre nós.

que circulam em nós. como nós. nas casas. no mistério dos rostos.

na luz das velhas fotografias  – persistentes e viris como um abandono.

 

(Breslávia, outono 2010 )

 

2

AMO os grandes vagabundos

os maravilhosos vagabundos

os vagabundos que planam pelas ruas das periferias

com asas sumptuosas

com pombas na cabeça

com o próprio coração,

como uma pedra, atado entre as mãos

amo os grandes vagabundos

os maravilhosos vagabundos

que , como martelos delirantes,

quebram a astúcia dos espelhos

e dizem

naquela sua gíria dura e estranha,

mas bela,

que deus também se revela

entre as pernas das prostitutas.

 

*

 

como cães esfomeados ascendem aos bordéis

à procura do trono de deus

pois sabem que deus também se revela

entre as pernas das prostitutas.

 

(Cracóvia, outono 2010 )

 

3

AMO todas as palavras: as grandes e as pequenas

as brutais e as serenas, as líricas e anti- líricas.

amo também as mães que se inclinam a certas

horas sob a iluminação do olhar feroz dos pais

enquanto os filhos sonham com anémonas de

cristal na boca

e os anjos obscuros espreitam pelas fechaduras.

e amo os cães rafeiros que vagueim pelos becos,

os cães ainda não castrados, os cães sujos

e imaculados.

os cães. os cães que regam as flores primorosas

de Dante e Shakespeare com a sua urina ácida,

mas bem fazeja, sob o olhar perene de deus.

 

( Katowice, outono de 2010 .  perto da casa onde nasceu Hans Bellmer )

 

4

ÓSTRACOS

i

AMO o delíro das grandes cidades

mas também amo as turbinas do silêncio

 

e as grandes florestas.

 

ii

 

EIS os cavalos que destelham o céu

o poder milagroso da sua urina

 

onde os velhos sabem ler o futuro.

 

iv

 

ADONAI

 

DAI - ME uma noite

uma só noite, uma última noite

mas uma noite grande,

tansgressora , violenta, inviolável 

 

– como um deus morto.

 

( Rzeszów, outono de 2010 )

 

5

 

HOUVE um homem que se perdeu no mar e durante

anos e anos andou à deriva.

como alimento tinha os peixes que ia pescando com as próprias mãos

como bebida a sua urina.

e sempre que tinha sede, mijava nas mãos e bebia

e olhando para o céu, clamava:

 

SENHOR, bem dito sejas por esta milagrosa urina.

 

( Lubin, outono 2010 )

Do livro ( inédito ): Vozes periféricas

 

 

© Maria Estela Guedes
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