1
SONHO: estou
sentado à mesa com os meus antepassados. mortos.
as crianças
brincam com as bonecas de cabeça de corvo.
os meus
antepassados. mortos. dão gargalhadas.
comem e brindam
à vida. ao sangue acidulado das crianças e dos animais.
as crianças
olham-nos. brincam com as bonecas. feitas de trapos.
brincam. com as
bonecas. ao lado, as mães. tristes e velhas.
as crianças
saltam. dançam. riem. não sabem que é um banquete
de mortos.
riem para dentro
dos espelhos com a inocência dos animais.
deslumbrantes.
as crianças
trazem em si a agilidade dos espelhos. a grande sabedoria:
sabem, não
sabendo, que os mortos vivem entre nós.
que circulam em
nós. como nós. nas casas. no mistério dos rostos.
na luz das
velhas fotografias –
persistentes e viris como um abandono.
(Breslávia,
outono 2010 )
2
AMO os grandes
vagabundos
os maravilhosos
vagabundos
os vagabundos
que planam pelas ruas das periferias
com asas
sumptuosas
com pombas na
cabeça
com o próprio
coração,
como uma pedra,
atado entre as mãos
amo os grandes
vagabundos
os maravilhosos
vagabundos
que , como
martelos delirantes,
quebram a
astúcia dos espelhos
e dizem
naquela sua
gíria dura e estranha,
mas bela,
que deus também
se revela
entre as pernas
das prostitutas.
*
como cães
esfomeados ascendem aos bordéis
à procura do
trono de deus
pois sabem que
deus também se revela
entre as pernas
das prostitutas.
(Cracóvia,
outono 2010 )
3
AMO todas as
palavras: as grandes e as pequenas
as brutais e as
serenas, as líricas e anti- líricas.
amo também as
mães que se inclinam a certas
horas sob a
iluminação do olhar feroz dos pais
enquanto os
filhos sonham com anémonas de
cristal na boca
e os anjos
obscuros espreitam pelas fechaduras.
e amo os cães
rafeiros que vagueim pelos becos,
os cães ainda
não castrados, os cães sujos
e imaculados.
os cães. os cães
que regam as flores primorosas
de Dante e
Shakespeare com a sua urina ácida,
mas bem fazeja,
sob o olhar perene de deus.
( Katowice,
outono de 2010 .
perto da casa onde nasceu Hans
Bellmer )
4
ÓSTRACOS
i
AMO o delíro das
grandes cidades
mas também amo
as turbinas do silêncio
e as grandes
florestas.
ii
EIS os cavalos
que destelham o céu
o poder
milagroso da sua urina
onde os velhos
sabem ler o futuro.
iv
ADONAI
DAI - ME uma
noite
uma só noite,
uma última noite
mas uma noite
grande,
tansgressora ,
violenta, inviolável
– como um deus
morto.
( Rzeszów,
outono de 2010 )
5
HOUVE um homem
que se perdeu no mar e durante
anos e anos
andou à deriva.
como alimento
tinha os peixes que ia pescando com as próprias mãos
como bebida a
sua urina.
e sempre que
tinha sede, mijava nas mãos e bebia
e olhando para o
céu, clamava:
SENHOR, bem dito
sejas por esta milagrosa urina.
( Lubin, outono
2010 )
Do livro ( inédito ): Vozes
periféricas
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