REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 45 | abril-maio | 2014

 
 

 

 

JOÃO PEREIRA DE MATOS

 

Schizzi

(esboços)

(textos e desenho)

 

João Pereira de Matos (Lisboa, 1973). Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração), Requiem par'Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d'Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura. 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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Tapetum Lucidum 

Apresentação 

#1.

Tapetum Lucidum é aquela membrana dos olhos dos animais que, por efeito de refracção interna, lhes permite ver melhor em pouca luz. E que, por vezes, brilha no escuro. Ora, esse efeito especular é fecunda metáfora para aqueles que, não podendo fazer uso de tal dispositivo, ainda assim, se esforçam por adentrar as trevas pelo uso da penetrante visão meditativa e reflexa. Reflexiva no sentido maior de um olhar sobre o si de cada um, exercício de cada qual no adestramento e delírio de uma metacogniscência, condição talvez primeira do ser que, enquanto ente encarnado, questiona a sua concreta essência - e, partindo daí, a sua mais geral imanência - no aí do mundo.

Dest’arte, são estas narrações na primeira pessoa, ponto nodal de um excurso inquiridor que propõe o exercício arriscado de atribuir um cerne de verosimilhança àquele que, por incrível ou incomum, em princípio, o não tem.

 

#2.

A escrita (como tudo o que é importante na vida) é um jogo de verdade. É claro que aqui conta menos a verdade enquanto adequação factual ou formal entre o que se convenciona ser o real e o delírio da fantasia mas esse sortilégio único de erguer mundos outros, porém cuja lógica interna se sustém aos olhos do leitor. Mundos onde a viagem assim como a justa visão do ínfimo de seu pormenor são possíveis, se assim o quisermos, mesmo para além do que é dito.

Uma coerência interna, a bem dizer, praeter legem, assim como, neste cosmo em que habitamos, a árvore possa cair na floresta sem testemunha alguma.

Contudo, se formos averiguar, lá está ela, tombada, em processo íntimo de corrupção, embora antes já tenha lançado as sementes de um novo corpo vegetal que, no segredo telúrico do solo, incessante, labora para crescer. Assim são essoutros episódios da escrita: realidades virtualmente completas nas suas micro e macro escalas, prontas para uma inspecção minuciosa ou a uma visão panóptica.

 

#3.

Através da recombinação incessante dos elementos da tradição, o Culturalismo visa criar o novo.

Ora pela saturação, ora pela sublimação, a noção de máquina impõe-se enquanto mecanismo e processo de construção textual. Contudo, este terá de ser um hipertexto subtil: a poeticidade irrompe como contraponto a um intento apenas racional que, já se sabe, pode conduzir ao malogro da escrita. Retornemos, então, ao sentido primeiro da ποίησις (poiesis) conexo com o de τέχνη (téchne): qual manufactura do sentido é tributária, ela também, da técnica.

 

#4.

Aqui no TriploV a proposta é a seguinte: um identitário conto-ensaio à razão, que se quer constante, de um por mês.

Espero que gostem.

 

João Pereira de Matos
Lisboa, 6 de Janeiro de 2014

 
 
 

Um Problema Identitário 

Não sei quem sou, essa é que é essa. Tenho uma vaga, difusa, ideia de quem fui e fui muitas coisas ou, talvez, coisa nenhuma, ou, então, algumas coisas e não outras, umas que gostaria ter sido e não fui, sou ou serei, por defeito de fabrico ou cármica destemperança ou ainda - porque não? - por dolência indolente & insolente para com as coisas do porvir, outras que fui, e que bem poderia ter dispensado, não fora essa a ontológica ventura e se, claro está, tivesse tido a falaz oportunidade de tal privilégio me não ter calhado em sorte. O certo é que pouco ou nada vos posso adiantar pois, quem sou, não sei.

Entendamo-nos. Sei o meu nome, onde moro e habito, sei até quantos sóis e luas passaram desde que esta carcomida carcaça viu a luz ou a sombra, pois acho - aqui com meus botões - que a luz, brilhante e clara e pura e límpida e azul ou branca, nunca cheguei exactamente a ver, ou porque permaneci num escuro tugúrio, umbrado de mofos e verdetes, ou porque sem olhos nasci, ou, se olhos tenho, os não aprendi, com exacta e própria ciência, a usar ou ainda, como se estas dúbias dúvidas não me acossassem o bastante, seja falho, também, na arte de ver. Sei, igualmente, o nome de meus pais e de toda a longa progenitura que me engendrou e sei como hei-de morrer. Ora, meus caros, detenhamo-nos neste ponto, acaso vos tenha passado despercebido o fundo comentário que, en passant e como quem não quer a coisa, deixei escapar, vertendo-o silabicamente num deix'andar de resvalar pelo palato em íntimas ressonâncias e, não digo que não, ressumando a espúrias e escusas transumâncias: sei com preciso e precioso rigor como hei-de morrer e quando e porquê e em que ominosas ou exaltantes circunstâncias, o que, vistas bem as coisas, é o mesmo que dizer que sei, no derradeiro e final momento de estertor, qual o meu lugar na economia da urbe e, mesmo - vejam bem – do orbe.

Mas, tal informação, notem inda os amigos, que para tantos seria de inestimável valia, a mim me não  serve de nada porque não sei quem sou, fui ou serei, à excepção da cônscia e fatal consciência do fim. Não temo tal final pois há muito convivo com essa ciência e se vos disser que não partirei de forma pacífica mas porém não particularmente desagradável não andarei longe da verdade. É claro que ninguém aceita que não possa viver mais um bocadinho quando se aproxima a aprazada hora, cifra exacta de seus dias e ademais alguém que como eu que se não conhece em vida suspira e suspirará por uma qualquer dilação por pequena que seja que lhe permita, enfim, descortinar o cerne do mistério que o atormenta, que lhe consome as horas, que baila no pensamento como obsidiante névoa. Quanto mais se tenta vislumbrar mais se furta a vera chave. Logo adivinho um caminho que me leve ao destino de me entender, logo se apaga a luz que me guiaria, e no escuro já se sabe que se perde o Norte. E sendo o presente um mistério sobre o que seja a minha pessoal, intransmissível e única identidade mais se adensa o olvido do passado porquanto este aumenta em distância, devém indefinido, mutante e mutável. Tanto assim o é que mais dificultosa é a interpretação dos acontecimentos principais de uma biografia, se o padecente não sabe quem é porque o seu ser se lhe foge e furta então como dizer que tal e tal acontecimento quis dizer uma coisa e não outra. Se em determinada encruzilhada se tomou a esquerda e não a direita será que isso se deveu a mero acaso ou algo na identitária matriz determinou uma escolha, que essa opção nem foi fortuita porém teve a sua génese em uma verdade intrínseca à alma do viandante. Por outro lado, cada decisão - isto é sabido e ressabido - entra como efeito e como causa em uma série ininterrupta de causas e efeitos concatenados, é certo, mas com uma raiz comum. Nada mais nada menos do que o que o vulgo apelida de identidade. Ora, não a conhecendo no passado, não a sabendo no presente, resta-me entender que o futuro conterá uma acrescida incógnita: não será o desconhecimento do que acontecerá, será o desconhecimento da razão pela qual o que será é. Para descodificar tal imbróglio teria de saber quem sou e como o não sei, embora sabendo de alguma maneira muitas coisas a-ser, não lobrigo porque o são, e isso é tanto pior. Doida patologia: olho para trás e vejo o futuro, tento vislumbrar qualquer indício à minha frente e topo com a densa incógnita do passado, que a identidade é sempre escorada no rememorar o que se foi, as opções que se tomou devido a um determinado temperamento, uma maneira própria de pensar e de querer e mesmo pelas paixões mais violentas que, ainda que provoquem sofrimento, nos definem. Infeliz como sou, porém, nem as labaredas das intensas emoções são capazes de chamuscar sequer o opaco manto que me esconde de mim próprio. Acreditei, durante algum tempo, que as situações extremas, aquelas onde se joga num lance a vida-e-a-morte pelo paroxismo próprio que comportam seriam o contexto ideal a proporcionar um auto-conhecimento ainda que peculiar mas mais próximo da verdade de quem sou. Posto à prova, no limite radical do perigo, poderia a mim próprio revelar-me. Contudo isso só mais adensou a dúvida. Por certo reagia - como, acredito, qualquer o faria - sem no entanto demonstrar o distintivo carácter que me aproximasse da compreensão da minha específica diversidade dos demais. Enfrentar uma ameaça, lutar ou fugir, é próprio de qualquer criatura que sente medo. Não revelei particular coragem ou cobardia. Agi com chão pragmatismo, não diferente do vulgo como seria se com bravura enfrentasse um inimigo mil vezes mais forte ou me aterrasse perante a mais fraca das tormentas. Pelo contrário, medi com exactidão o risco e isso não adianta pois só fiquei a saber que não era nem temerário nem de fácil susto. Qualquer homem vulgar demonstra tais caracteres e isso não permite a ninguém definir-se salvo para dizer que não é tolo. Ademais não sei prever, se vier a enfrentar outros perigos, como me vou comportar. Será que saberei sempre lidar com a adversidade ou poderei sucumbir ao mais leve sinal da catástrofe?

Já tentei, ainda, excogitar que talvez o que me defina será não me saber e assim estocasticamente, como que às escuras, decido sempre e a cifra dessa decisão está numa impulsiva ignorância. Eu o desconhecido de mim, apenas sofrendo desse frustrante dom de Cassandra mas cujo público descrente sou eu só, desconfiando de tudo o que conheço por tudo o que me falta compreender. Tão simples parece ao vulgo que quantas vezes mais não sabe do que aquilo que é. Ainda que não entenda o mundo, e desconheça que dores terá a padecer, tem firme e escorada a sua identidade, esteio de força e matriz da fugaz decisão enquanto for o tempo da vida. Ora, essa banal evidência escapa agora e escapou sempre ao meu entendimento que, em outros assuntos, soube ser tão aguçado. Quem não sabe o que vai acontecer poderá, ao menos, contar que conseguirá interpretar os porquês logo após o acontecido. Eu que sei muito do que será passado não sei, mesmo do ponto de vista do presente, dispor pela ordem das razões mais próximas às mais longínquas esse elusivo porquê das coisas. Em vão, por isso, tentei descobrir, aos poucos e poucos, o momento determinante da minha ignorância, ou seja, aquele momento na tenra idade quando pela primeiríssima vez me apercebi com dolorosa acuidade que não sabia quem era, que teria um fim determinado e que muito provavelmente passaria o firme tempo da vida na demanda de mim próprio, procurando-me, procurando-me mas como um outro, com um afã policiário, recolhendo as mais ténues provas que me permitam nem que seja por silogismo reconstruir o homem que fui, e daí o que sou, para no final determinar o que serei. Esse momento foi tremendo: vi à minha frente um velho que morria, e na sua face encanecida que era a minha um olhar de aflita perplexidade por não ter a paz de se conhecer. Nesse instante, eu, que até aí sabia quem era, senti nas vísceras o tição da dúvida, questionei tudo o que até aí tinha vivido e percebi que uma cortina opaca velava os recessos da minha alma, me fazia estranho à consciência como alguém com quem me cruzasse e cujo rosto logo seria esquecido. Estava perdido, viveria daí para a frente retrospectivamente, tentando fixar através de uma análise cuidada das minhas acções qual a minha matéria e sem poder evitar a perplexidade que cada vez mais se avolumava quanto mais intensamente exercitava os poderes de observação. Por isso me tornei perito a entender as identidades mas só as dos outros, a minha transformou-se no mistério e tal enigma alterou a minha vivência do tempo, a capacidade de me relacionar com o Outro e o próprio sossego, a qualidade mais preciosa para alguém como eu, amante da verdade porém incapaz de lhe aceder porque tal pressupõe um autoconhecimento mínimo e eu sou, dos homens, o mais perdido de si, o mais confundido sobre aquilo que é. O mais distante de si, o mais elementar conhecimento sobre aquele que mais nos importa ou deve importar que somos nós próprios. De resto, sei entender toda a multidão, diversa e com tão diferentes labores e circunstância, uma modelação tão diferente de cada carácter que mesmo com a cara tapada eu muito poderia informar sobre si, sobre os seus sonhos e aspirações, a procura do belo ou a resignação em todas as alturas da vida. Por isso, dirão de mim que fui sábio mas a irónica verdade é que padeço da mais cruel ignorância e de nada me serve tanto saber que acumulei em estudos e investigações várias na vã esperança de assim chegar à razão que tanto me ilude. Tanto conhecimento, como deveis calcular, não me aproximou do único tema que me interessou dominar nem tal poderia, pois a ciência, geral e abstracta, é por demais inapta a esclarecer o que é eminentemente específico na sua concretude tendo, para se distinguir dos demais, de estabelecer uma clara individualidade, pessoal e intransmissível identidade que à contra-luz se destaque com impressivo contorno do pano-de-fundo da turba. Aqueles caracteres comuns que fazem as delícias da academia não me ajudam em meu labor pois assim apenas sei o que me prende à humanidade mas não o quanto sou eu-mesmo e não outro. Por mui douto que seja não acrescentei um iota à ignorância de quem sou. Quem me vê e julga que me conhece só o faz por apressada e irresponsável visão que se contenta em traçar um esboço grosseiro do seu próximo, sem se preocupar com as subtilezas e minudências que, essas sim, distinguem cada um como diferente dos demais, lhe dão o sabor a único e por isso precioso, irrepetível na sua biografia, digno de ter um nome e um destino. E o meu, peculiar como seja, é todo feito de angústia e sofrimento, porque a dúvida me rói inteiro, não dá descanso nem trégua, nem permite gozar os poucos momentos de satisfação que poderiam ser meus por direito se ao menos soubesse quem sou. 

Como às arrecuas ando, de tombos em tombos, procurando por mim e, sabeis já, que comigo não topo, qualquer que seja o afanado afinco com que procure. Parece, aliás, que nesta triste vida mais não fiz do que me buscar, por esquinas e vielas, perguntando a gentes e bichos, Conhecem fulano, assim e assado, nem alto nem baixo, antes pelo contrário, nem entroncado nem esquizóide e, muito menos, de dolicocéfala figura? Pois olhem que sou eu, e se vós o conheceis e me puderdes dar alguma informação sobre o arredio eu de mim, até pago bem, pois muito guardei para quando chegasse o momento, sim, este mesmo, e em chegando o desejado, não fosse impedimento impediente o simples e banal facto venal de não ter soldipilim para remir essa desgraçada notícia de minha pessoa, que teima em iludir o seu natural proprietário, que, no entanto, por casos e acasos do destino, se vê obrigado a descer à ignomínia de largar umas coroas por algo que, desde sempre, devia ter permanecido em sua posse, uso e fruição, como acontece a qualquer mortal que nasce e cresce e, aos poucos, vai sabendo quem é, e foi, e, embora não saiba como irá perecer, vive contente e feliz e, em casos raros, raríssimos, com um certo júbilo d'existir, porquanto tem à sua frente um destino, decerto, incerto, mas firme &'scorado numa doce, e digo doce e leda, identidade, coisa tão simples que parece só a mim me iludir no teimoso, e digo teimoso e tenaz, logro da sua ilusão.

Saber quem sou, por tanto, e digo por e digo tanto, pois tanto parece, com clara & distincta perceptio, que muito hei-de penar e de sofrer e de buscar e de perder e de viver e de chorar e de fugir e de chegar e de dizer e de ficar, até - e, queridos e argutos sois vós, que já estais entendendo minha réstia d'esperança - chegar a morte desgrenhada e façanhuda como ela só, portando pela mão as amigas desoladoras, ou, como se diz e por aí se vai ouvindo, a gadanha acerada que a todos ceifa com brutal excisão do sopro vital, ou ainda, outros e variados aparatos de terminar o que forçoso é que termine, e tenha a gentil erada senhora, por muito cruel e cruenta que vos possa parecer, a fineza de bichanar ao meu ávido ouvido, Tu és isto, agora que teu consabido fim chegou, e foste aquilo, na tua larga mas cansada existência e - suprema dádiva da generosa mater que devora os próprios filhos - irás para este lugar, reservado aos puros e aos bons ou para aqueloutro, reservado aos réprobos, ou, não vais para lugar algum mas serás transconsubstanciado em outra criatura que terá a natural e bonançosa certeza de saber quem é, do mesmo passo que, desconhecendo, para sua grande e maior serenidade, a adveniência do último suspiro, poderá encarar o futuro, com aprazível calma ou intranquila bravata, mas sabendo, de um modo que te não ouso descrever, que foi, em fim e a final, reposta a certa e correcta ordem das coisas.

 

 

© Maria Estela Guedes
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