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Tapetum Lucidum
Apresentação
#1.
Tapetum
Lucidum é aquela membrana dos olhos dos animais que, por efeito de
refracção interna, lhes permite ver melhor em pouca luz. E que, por
vezes, brilha no escuro. Ora, esse efeito especular é fecunda metáfora
para aqueles que, não podendo fazer uso de tal dispositivo, ainda assim,
se esforçam por adentrar as trevas pelo uso da penetrante visão
meditativa e reflexa. Reflexiva no sentido maior de um olhar sobre o
si de cada um, exercício de cada qual no adestramento e delírio de
uma metacogniscência, condição talvez primeira do ser que, enquanto ente
encarnado, questiona a sua concreta essência - e, partindo daí, a sua
mais geral imanência - no aí do mundo.
Dest’arte, são estas narrações na primeira pessoa,
ponto nodal de um excurso inquiridor que propõe o exercício arriscado de
atribuir um cerne de verosimilhança àquele que, por incrível ou incomum,
em princípio, o não tem.
#2.
A escrita (como tudo o que é importante na vida) é
um jogo de verdade. É claro que aqui conta menos a verdade enquanto
adequação factual ou formal entre o que se convenciona ser o real e
o delírio da fantasia mas esse sortilégio único de erguer mundos outros,
porém cuja lógica interna se sustém aos olhos do leitor. Mundos onde a
viagem assim como a justa visão do ínfimo de seu pormenor são possíveis,
se assim o quisermos, mesmo para além do que é dito.
Uma coerência interna, a bem dizer,
praeter legem, assim como,
neste cosmo em que habitamos, a árvore possa cair na floresta sem
testemunha alguma.
Contudo, se formos averiguar, lá está ela, tombada,
em processo íntimo de corrupção, embora antes já tenha lançado as
sementes de um novo corpo vegetal que, no segredo telúrico do solo,
incessante, labora para crescer. Assim são essoutros episódios da
escrita: realidades virtualmente completas nas suas micro e macro
escalas, prontas para uma inspecção minuciosa ou a uma visão panóptica.
#3.
Através da recombinação incessante dos elementos da
tradição, o Culturalismo visa criar o novo.
Ora pela saturação, ora pela sublimação, a noção de
máquina impõe-se enquanto mecanismo e processo de construção textual.
Contudo, este terá de ser um hipertexto subtil: a poeticidade irrompe
como contraponto a um intento apenas racional que, já se sabe, pode
conduzir ao malogro da escrita. Retornemos, então, ao sentido primeiro
da ποίησις (poiesis) conexo com o de τέχνη (téchne): qual manufactura do sentido é tributária, ela
também, da técnica.
#4.
Aqui no TriploV a proposta é a seguinte: um
identitário conto-ensaio à razão, que se quer constante, de um
por mês.
Espero que gostem.
João Pereira de Matos
Lisboa, 6 de Janeiro de 2014
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Um Problema
Identitário
Não sei quem sou, essa é que é essa. Tenho uma
vaga, difusa, ideia de quem fui e fui muitas coisas ou, talvez, coisa
nenhuma, ou, então, algumas coisas e não outras, umas que gostaria ter
sido e não fui, sou ou serei, por defeito de fabrico ou cármica
destemperança ou ainda - porque não? - por dolência indolente &
insolente para com as coisas do porvir, outras que fui, e que bem
poderia ter dispensado, não fora essa a ontológica ventura e se, claro
está, tivesse tido a falaz oportunidade de tal privilégio me não ter
calhado em sorte. O certo é que pouco ou nada vos posso adiantar pois,
quem sou, não sei.
Entendamo-nos. Sei o meu nome, onde moro e habito,
sei até quantos sóis e luas passaram desde que esta carcomida carcaça
viu a luz ou a sombra, pois acho - aqui com meus botões - que a luz,
brilhante e clara e pura e límpida e azul ou branca, nunca cheguei
exactamente a ver, ou porque permaneci num escuro tugúrio, umbrado de
mofos e verdetes, ou porque sem olhos nasci, ou, se olhos tenho, os não
aprendi, com exacta e própria ciência, a usar ou ainda, como se estas
dúbias dúvidas não me acossassem o bastante, seja falho, também, na arte
de ver. Sei, igualmente, o nome de meus pais e de toda a longa
progenitura que me engendrou e sei como hei-de morrer. Ora, meus caros,
detenhamo-nos neste ponto, acaso vos tenha passado despercebido o fundo
comentário que, en passant e como quem não quer a coisa, deixei escapar, vertendo-o
silabicamente num deix'andar de resvalar pelo palato em íntimas
ressonâncias e, não digo que não, ressumando a espúrias e escusas
transumâncias: sei com preciso e precioso rigor como hei-de morrer e
quando e porquê e em que ominosas ou exaltantes circunstâncias, o que,
vistas bem as coisas, é o mesmo que dizer que sei, no derradeiro e final
momento de estertor, qual o meu lugar na economia da urbe e, mesmo -
vejam bem – do orbe.
Mas, tal informação, notem
inda os amigos, que para
tantos seria de inestimável valia, a mim me não
serve de nada porque não sei quem sou, fui ou serei, à excepção
da cônscia e fatal consciência do fim. Não temo tal final pois há muito
convivo com essa ciência e se vos disser que não partirei de forma
pacífica mas porém não particularmente desagradável não andarei longe da
verdade. É claro que ninguém aceita que não possa viver mais um
bocadinho quando se aproxima a aprazada hora, cifra exacta de seus dias
e ademais alguém que como eu que se não conhece em vida suspira e
suspirará por uma qualquer dilação por pequena que seja que lhe permita,
enfim, descortinar o cerne do mistério que o atormenta, que lhe consome
as horas, que baila no pensamento como obsidiante névoa. Quanto mais se
tenta vislumbrar mais se furta a vera chave. Logo adivinho um caminho
que me leve ao destino de me entender, logo se apaga a luz que me
guiaria, e no escuro já se sabe que se perde o Norte. E sendo o presente
um mistério sobre o que seja a minha pessoal, intransmissível e única
identidade mais se adensa o olvido do passado porquanto este aumenta em
distância, devém indefinido, mutante e mutável. Tanto assim o é que mais
dificultosa é a interpretação dos acontecimentos principais de uma
biografia, se o padecente não sabe quem é porque o seu ser se lhe foge e
furta então como dizer que tal e tal acontecimento quis dizer uma coisa
e não outra. Se em determinada encruzilhada se tomou a esquerda e não a
direita será que isso se deveu a mero acaso ou algo na identitária
matriz determinou uma escolha, que essa opção nem foi fortuita porém
teve a sua génese em uma verdade intrínseca à alma do viandante. Por
outro lado, cada decisão - isto é sabido e ressabido - entra como efeito
e como causa em uma série ininterrupta de causas e efeitos concatenados,
é certo, mas com uma raiz comum. Nada mais nada menos do que o que o
vulgo apelida de identidade. Ora, não a conhecendo no passado, não a
sabendo no presente, resta-me entender que o futuro conterá uma
acrescida incógnita: não será o desconhecimento do que acontecerá, será
o desconhecimento da razão pela qual o que será é. Para descodificar tal
imbróglio teria de saber quem sou e como o não sei, embora sabendo de
alguma maneira muitas coisas a-ser, não lobrigo porque o são, e isso é
tanto pior. Doida patologia: olho para trás e vejo o futuro, tento
vislumbrar qualquer indício à minha frente e topo com a densa incógnita
do passado, que a identidade é sempre escorada no rememorar o que se
foi, as opções que se tomou devido a um determinado temperamento, uma
maneira própria de pensar e de querer e mesmo pelas paixões mais
violentas que, ainda que provoquem sofrimento, nos definem. Infeliz como
sou, porém, nem as labaredas das intensas emoções são capazes de
chamuscar sequer o opaco manto que me esconde de mim próprio. Acreditei,
durante algum tempo, que as situações extremas, aquelas onde se joga num
lance a vida-e-a-morte pelo paroxismo próprio que comportam seriam o
contexto ideal a proporcionar um auto-conhecimento ainda que peculiar
mas mais próximo da verdade de quem sou. Posto à prova, no limite
radical do perigo, poderia a mim próprio revelar-me. Contudo isso só
mais adensou a dúvida. Por certo reagia - como, acredito, qualquer o
faria - sem no entanto demonstrar o distintivo carácter que me
aproximasse da compreensão da minha específica diversidade dos demais.
Enfrentar uma ameaça, lutar ou fugir, é próprio de qualquer criatura que
sente medo. Não revelei particular coragem ou cobardia. Agi com chão
pragmatismo, não diferente do vulgo como seria se com bravura
enfrentasse um inimigo mil vezes mais forte ou me aterrasse perante a
mais fraca das tormentas. Pelo contrário, medi com exactidão o risco e
isso não adianta pois só fiquei a saber que não era nem temerário nem de
fácil susto. Qualquer homem vulgar demonstra tais caracteres e isso não
permite a ninguém definir-se salvo para dizer que não é tolo. Ademais
não sei prever, se vier a enfrentar outros perigos, como me vou
comportar. Será que saberei sempre lidar com a adversidade ou poderei
sucumbir ao mais leve sinal da catástrofe?
Já tentei, ainda, excogitar que talvez o que me
defina será não me saber e assim estocasticamente, como que às escuras,
decido sempre e a cifra dessa decisão está numa impulsiva ignorância. Eu
o desconhecido de mim, apenas sofrendo desse frustrante dom de Cassandra
mas cujo público descrente sou eu só, desconfiando de tudo o que conheço
por tudo o que me falta compreender. Tão simples parece ao vulgo que
quantas vezes mais não sabe do que aquilo que é. Ainda que não entenda o
mundo, e desconheça que dores terá a padecer, tem firme e escorada a sua
identidade, esteio de força e matriz da fugaz decisão enquanto for o
tempo da vida. Ora, essa banal evidência escapa agora e escapou sempre
ao meu entendimento que, em outros assuntos, soube ser tão aguçado. Quem
não sabe o que vai acontecer poderá, ao menos, contar que conseguirá
interpretar os porquês logo após o acontecido. Eu que sei muito
do que será passado não sei, mesmo do ponto de vista do presente, dispor
pela ordem das razões mais próximas às mais longínquas esse elusivo
porquê das coisas. Em vão, por isso, tentei descobrir, aos poucos e
poucos, o momento determinante da minha ignorância, ou seja, aquele
momento na tenra idade quando pela primeiríssima vez me apercebi com
dolorosa acuidade que não sabia quem era, que teria um fim determinado e
que muito provavelmente passaria o firme tempo da vida na demanda de mim
próprio, procurando-me, procurando-me mas como um outro, com um afã
policiário, recolhendo as mais ténues provas que me permitam nem que
seja por silogismo reconstruir o homem que fui, e daí o que sou, para no
final determinar o que serei. Esse momento foi tremendo: vi à minha
frente um velho que morria, e na sua face encanecida que era a minha um
olhar de aflita perplexidade por não ter a paz de se conhecer. Nesse
instante, eu, que até aí sabia quem era, senti nas vísceras o tição da
dúvida, questionei tudo o que até aí tinha vivido e percebi que uma
cortina opaca velava os recessos da minha alma, me fazia estranho à
consciência como alguém com quem me cruzasse e cujo rosto logo seria
esquecido. Estava perdido, viveria daí para a frente retrospectivamente,
tentando fixar através de uma análise cuidada das minhas acções qual a
minha matéria e sem poder evitar a perplexidade que cada vez mais se
avolumava quanto mais intensamente exercitava os poderes de observação.
Por isso me tornei perito a entender as identidades mas só as dos
outros, a minha transformou-se no mistério e tal enigma alterou a minha
vivência do tempo, a capacidade de me relacionar com o Outro e o próprio
sossego, a qualidade mais preciosa para alguém como eu, amante da
verdade porém incapaz de lhe aceder porque tal pressupõe um
autoconhecimento mínimo e eu sou, dos homens, o mais perdido de si, o
mais confundido sobre aquilo que é. O mais distante de si, o mais
elementar conhecimento sobre aquele que mais nos importa ou deve
importar que somos nós próprios. De resto, sei entender toda a multidão,
diversa e com tão diferentes labores e circunstância, uma modelação tão
diferente de cada carácter que mesmo com a cara tapada eu muito poderia
informar sobre si, sobre os seus sonhos e aspirações, a procura do belo
ou a resignação em todas as alturas da vida. Por isso, dirão de mim que
fui sábio mas a irónica verdade é que padeço da mais cruel ignorância e
de nada me serve tanto saber que acumulei em estudos e investigações
várias na vã esperança de assim chegar à razão que tanto me ilude. Tanto
conhecimento, como deveis calcular, não me aproximou do único tema que
me interessou dominar nem tal poderia, pois a ciência, geral e
abstracta, é por demais inapta a esclarecer o que é eminentemente
específico na sua concretude tendo, para se distinguir dos demais, de
estabelecer uma clara individualidade, pessoal e intransmissível
identidade que à contra-luz se destaque com impressivo contorno do
pano-de-fundo da turba. Aqueles caracteres comuns que fazem as delícias
da academia não me ajudam em meu labor pois assim apenas sei o que me
prende à humanidade mas não o quanto sou eu-mesmo e não outro. Por mui
douto que seja não acrescentei um iota à ignorância de quem sou.
Quem me vê e julga que me conhece só o faz por apressada e irresponsável
visão que se contenta em traçar um esboço grosseiro do seu próximo, sem
se preocupar com as subtilezas e minudências que, essas sim, distinguem
cada um como diferente dos demais, lhe dão o sabor a único e por isso
precioso, irrepetível na sua biografia, digno de ter um nome e um
destino. E o meu, peculiar como seja, é todo feito de angústia e
sofrimento, porque a dúvida me rói inteiro, não dá descanso nem trégua,
nem permite gozar os poucos momentos de satisfação que poderiam ser meus
por direito se ao menos soubesse quem sou.
Como às arrecuas ando, de tombos em tombos,
procurando por mim e, sabeis já, que comigo não topo, qualquer que seja
o afanado afinco com que procure. Parece, aliás, que nesta triste vida
mais não fiz do que me buscar, por esquinas e vielas, perguntando a
gentes e bichos, Conhecem fulano, assim e assado, nem alto nem baixo,
antes pelo contrário, nem entroncado nem esquizóide e, muito menos, de
dolicocéfala figura? Pois olhem que sou eu, e se vós o conheceis e me
puderdes dar alguma informação sobre o arredio eu de mim, até pago bem,
pois muito guardei para quando chegasse o momento, sim, este mesmo, e em
chegando o desejado, não fosse impedimento impediente o simples e banal
facto venal de não ter soldipilim para remir essa desgraçada
notícia de minha pessoa, que teima em iludir o seu natural proprietário,
que, no entanto, por casos e acasos do destino, se vê obrigado a descer
à ignomínia de largar umas coroas por algo que, desde sempre, devia ter
permanecido em sua posse, uso e fruição, como acontece a qualquer mortal
que nasce e cresce e, aos poucos, vai sabendo quem é, e foi, e, embora
não saiba como irá perecer, vive contente e feliz e, em casos raros,
raríssimos, com um certo júbilo d'existir, porquanto tem à sua frente um
destino, decerto, incerto, mas firme &'scorado numa doce, e digo doce e
leda, identidade, coisa tão simples que parece só a mim me iludir no
teimoso, e digo teimoso e tenaz, logro da sua ilusão.
Saber quem sou, por tanto, e digo por e digo
tanto, pois tanto parece, com clara & distincta perceptio,
que muito hei-de penar e de sofrer e de buscar e de perder e de viver e
de chorar e de fugir e de chegar e de dizer e de ficar, até - e,
queridos e argutos sois vós, que já estais entendendo minha réstia
d'esperança - chegar a morte desgrenhada e façanhuda como ela só,
portando pela mão as amigas desoladoras, ou, como se diz e por aí se vai
ouvindo, a gadanha acerada que a todos ceifa com brutal excisão do sopro
vital, ou ainda, outros e variados aparatos de terminar o que forçoso é
que termine, e tenha a gentil erada senhora, por muito cruel e cruenta
que vos possa parecer, a fineza de bichanar ao meu ávido ouvido, Tu
és isto, agora que teu consabido fim chegou, e foste aquilo, na tua
larga mas cansada existência e - suprema dádiva da generosa mater
que devora os próprios filhos - irás para este lugar, reservado aos
puros e aos bons ou para aqueloutro, reservado aos réprobos, ou, não
vais para lugar algum mas serás transconsubstanciado em outra criatura
que terá a natural e bonançosa certeza de saber quem é, do mesmo passo
que, desconhecendo, para sua grande e maior serenidade, a adveniência do
último suspiro, poderá encarar o futuro, com aprazível calma ou
intranquila bravata, mas sabendo, de um modo que te não ouso descrever,
que foi, em fim e a final, reposta a certa e correcta ordem das coisas.
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