REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 44 | fevereiro-março | 2014

 
 

 

 

JOÃO S MARTINS


9 palavras e uma rua

 

João S Martins, 59 anos, natural de Manteigas, residente nos EUA há vinte e seis anos.Poesia publicada em sete livros. Muitos outros poemas. Histórias de viagem. "Mãos verdadeiras", o livro mais recente. Para breve a publicação dos livros/poemas: "Ferry Street Rua da Palavra" e "quando menino eu lia...". E muitas palavras disponíveis.... ( www.artamarte.blogspot.com ) joaomartins54@aol.com

 

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Ferry Street rua da palavra  

 

preâmbulo  

antes que seja tarde repetias

como quando te escutava pela tarde

dizer tantas vezes: vem, vem

meu tempo, que te espero,

antes da tarde

 

e enquanto há tempo para escutar

o vento e as vozes desse tempo,

desse tarde que antecede o outro vento

que narra o pensamento nas palavras ...

 

quero correr o mundo enquanto é tempo

na ânsia de vencer o instante e o momento

em que já pouco restará da história; pela tarde

 

lançarei a minha voz solta no vento,

acalmarei a centelha que por dentro arde

e beijarei uma vez mais a vida

 

antes que seja tarde...

 

depois, pediste mais palavras que salvassem

da morte as pedras e os anos de outrora

as memórias dos gestos, mesmo os mais pequenos,

que constroem os homens e os sonhos

e os grãos que fizeram tijolos e argamassa

com que as casas se mantêm contra o tempo;

 

as cores de fora serão baças

num ar quase artificial, mortiço, e as de dentro

paredes de cores vivas,

as línguas faladas lá, por dentro

onde pulsam sotaques, tradições,

paixões e memórias muito vivas

entre viagens à terra e o movimento,

aos mares, portos, campos e aldeias

de beira rio, montanhas e planuras,

onde a distância de então era tão longe

como a distância que hoje nos separa

do sonho que nos mantem unidos.

 

 

1. PALAVRA  

rua da palavra 1                                                             

palavra de rua palavras na rua

palavra que é minha palavra que é tua 

palavra quebrada o corpo é que sua

palavra da noite pintada na lua

palavra de amor ou palavra nua

palavra que é o nome da rua

 

 

2. VIAGEM  

Um comboio e um relógio

e uma rua pelo meio...

um antes do comboio e das linhas de ferro,

outro mundo para lá

do relógio, das pontes, do rio, do mar.

 

Antes do comboio, ou seria um avião,

os sonhos chegavam de barco,

que importa: em qualquer lado

há sempre uma estação:

 

escadas, bilhetes, papéis, sonhos,

malas, malas, caixotes e mais sonhos,

e uma língua amada, muitas línguas,

e outra língua nova ignorada.

Para trás ficavam outros sonhos, sons, línguas,

palavras, corações, razões para dizer não,

o que sempre vinha era a vontade,

a força da mente e dos braços, das mãos....

e das palavras

 

 

rua da palavra 2  

rua da palavra palavra

rua palavra que é minha 

tua palavra quebrada

palavra tua

 

amor ou palavra nua

na lua palavra de amor

palavra da noite palavra

nua palavra

 

palavra palavra palavra ...

palavra palavra palavra ...

palavra palavra palavra ...

palavra rua

 

 

No largo da chegada havia caminhos cruzados,

transversais, avenidas, pedaços de uma história nova

construídos com nomes antigos, familiares.

As esquinas que pareciam um cantinho

à beira rio, à beira serra, à beira mar

atlântico, tão perto e tão distante.

 

todas

redondas

eram as janelas
para te ver

arredondada
por te olhar

 

vou abrir
o meu olhar
para ver
quem me atravessa

nos quadrados
das cortinas
uma sombra

se desdobra

 

todas

redondas

eram as sombras

 

apareces

e não escondes

sinais de mãos

e sorrisos

 

como o sol
de roda em roda
dá volta 

à tua janela


no interior
a tua luz
bem perto

do meu desejo

a tua voz

a chamar
- deixa a porta

entreaberta!

 

todos

redondos

são os sonhos

nas transparentes

janelas
do teu rosto

 

todas redondas eram as janelas…

todos redondos eram os desejos…

todas redondas eram as sombras…

todos redondos eram os olhares…

todos redondos eram os sinais…

todas redondas eram as palavras

 

 

E aquela palavra, só deles, sem paralelo

nos outros falantes? ("não se diz alto -

dizia ela - que pode dar azar...")

 

 

3. PAIXÃO           

não a sigo fisicamente porque
não estou lá na hora
em que todos os desejos
e frustrações do mundo (todos 
ou quase) alguns cansaços

estampados nos vestidos

desaguam na ferry street.
 

será seu nome: são ou
maria da encarnação dos sonhos
e dos pesadelos transportados
nos comboios da grande cidade.
debaixo do braço a magra bolsa
quase se confunde com a magreza
que dá forma à blusa amachucada.

mas todos os dias à mesma hora
ela e a mesma tristeza do mesmo comboio
percorrem os passeios da street
(chamar-lhe-ão talvez por isso
ferry dos stristes) não sei... e

duvido que os nomes sejam
apenas marias ou são ou ...

todos os nomes de todas as marias
esquecidas do relógio e das horas
do jantar que as espera porque
serão ainda elas que irão
aquecer os filhos e filhas
que a aguardam sem querer
saber dos outros minutos.

sigo-a à distância de dois corações
que ainda batem com a mesma
velocidade com que os pés
pisam o cimento
com um eco um som igual

ao que lhe tortura a memória

sem ainda saber do futuro

por ler nas linhas do comboio.
não teve tempo nem a esperança
das luzes do túnel apagadas
no regresso à realidade

da pequena cidade que a grande

já fica para trás. traz a mensagem

cono quem transporta um bilhete

de castigo por falhas que

não são suas nem das outras 
vidas incompletas. há olhares
paralelos enquanto viajo longe
noutro transporte de ferry
que as águas levarão

lavando as marcas como a chuva

a escorrer palavras no rosto.
e as folhas descoloridas
não trazem promessas. amanhã
novamente caminharei na ferry
e esperarei no largo o comboio.
aquelas. outras. porquê? não sei
porque são...

(...)

   
 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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