REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 44 | fevereiro-março | 2014

 
 

 

 

ARSÉNIO MOTA

De relance - A alma

 

Jornalista e escritor. Nasceu em 1930 (abril) em Oliveira do Bairro e vive no Porto, Portugal, desde 1963. Começou a publicar em 1955 (poemas sob pseudónimo); sua bibliografia, já extensa, inclui volumes de crónicas, ficções e estudos diversos, além de traduções, organização de antologias, etc. É também autor, desde 1985, de contos para crianças. Em 2005 saiu "50 anos de escrita", livro de autores vários organizado por Serafim Ferreira. Mantem desde 2008 o blogue que tem o seu nome. Email: arseniomota@gmail.com

 

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     Encontram-se palavras extraordinariamente antigas no vocabulário. Sofreram adaptações para entrar no nosso léxico provindo de lugares, tempos e povos remotos que as adoptaram e lhes atribuíram sentido. Em geral, todas têm que se lhes diga, é certo, mas as palavras mais antigas, quando as estudamos, abrem-se deixando à vista conteúdos ricos que chegam a ser fascinantes com as suas raízes estendidas ao longo das geografias e das épocas que atravessam, podendo recuar para lá do latim e do grego até os confins da história.

É este o caso de “alma”, anima, palavra que os catecismos das religiões impregnaram de espiritualidade, alcance metafísico, transcendência. Mas, desde sempre, a semântica de anima (“sopro, ar; alento”) aponta para a naturalíssima função de respirar, pelo que é fácil perceber que o vivente animado ganhou “alma” somente na justa medida da sua animação. Todavia, interessou à religião colocar esta anima como “princípio de vida”, assim estabelecendo a oposição dessa alma com o corpo que sente e respira.

Atribuir à palavra que designa função tão natural e universal uma categoria religiosa de inspiração divina, por mera transferência metonímica, originou a noção de pecado e, por aí, os conflitos travados entre a consciência e os apelos das emoções e dos instintos. Uma curiosa questão aparece então suscitada. Se o homem, dotado de consciência, tem alma, anima, porque respira, como explicar que os seres orgânicos que vivem na natureza em geral, alegadamente criada por Deus e com necessidade respiratória, não tenham também alma, anima?

A acção de limpar dos véus teológicos as palavras cujo sentido natural a catequese pretendeu recobrir de um certo halo místico assume excepcional premência. Os avanços do conhecimento científico demonstram, indiscutivelmente, quão falaciosos são os dogmas que estruturam a religião, senão mesmo todas as religiões, deixando bem à vista que os deuses, tendo sido inventados pela imaginação humana, jamais criaram coisa alguma. Este tópico foi abordado no meu artigo anterior “Um relance ao céu” (1), de modo que, no presente relance, considero a função respiratória como “princípio de vida” no plano teológico em primeiro lugar para em seguida abordar em análise algumas outras palavras dignas de especial atenção. Mas, a propósito, passo a lembrar uma peripécia.

Num jornal que já não existe (tinha sede em imponente edifício no centro da cidade tal como os seus dois concorrentes), li que se encontrava “memória” na água, e explicava: adicionava-se uma substância química estranha ao líquido natural e extraía-se depois essa substância em operações sucessivas. Novidade: na décima extracção ainda surgiam vestígios da adição; logo, poderia falar-se de “memória da água”…

O caso, de recorte certamente algo fantasioso, não perturbou ninguém. Recordo-o porém porque estas nossas palavras, dissecadas à lupa, também serão capazes, para nossa surpresa, de largar substância até à “décima extracção”. Acontece portanto que são as palavras de uso corrente (isto é, uso repetitivo, mecânico) as que mais conseguem surpreender-nos. Como esta outra, o verbo “folgar”.

Não passa de um folegar, dar muito aos foles do peito, portanto de uma animação. A respiração também aparece no “alento”, substantivo de abordagem não menos reveladora. Significa, sem segredo, “força para respirar; bafo, respiração; força; ânimo”. Ou ainda, por outra via, hálito - de (h)alenitu - que o dicionário regista, “exalação; respiração”.

Segundo a etimologia, folgar tem raiz no latim follicare, “respirar com ruído (como o fole)”. José Pedro Machado abona o termo com D. Dinis (séc. XIII), registando, no séc. XV, folga e follegar, “respirar dificilmente”.

Neste ponto, sem resfolegar, já estaremos a lembrar-nos das variantes do termo: folgança, folgadio, folgaz, folgura, folguedo, folgazão. Em suma, precisamos de bons foles para folgar, mas temo-los embora nos faltem os sete fôlegos de gato.

O corpo de uma pessoa inanimada revela que tem vida, ainda que exangue, se lhe colocamos o espelho rente à boca e o vidro regista um mínimo embaciamento, um hálito. Era a prova real usada na falta de médico porque outrora apalpar um pulso para o sentir latejar podia induzir em erro. A prova do espelho era mais convincente.

Aqui está como a nossa capacidade respiratória aparece associada à vontade de brincar, entendendo muito naturalmente que a uma acção corresponde a outra. Mais curioso ainda é ter de concluir, perante exemplos concretos irrefutáveis, que começamos a viver respirando correctamente para depois nos habituarmos decerto a respirar mal. E sobra-nos o desplante para repetir que uma pessoa pode sobreviver sem comida vinte ou trinta dias, sem água cinco ou dez dias, mas que sem respirar não tem mais de dois ou três minutos...

A função pulmonar é vital. Concede-nos “alma”, anima, que sem teologia não passa de “sopro, ar; alento”. Precisamos, pois, de respirar para ter aquilo que as teologias garantem, sem provas conclusivas, que é eterna na condição de o crentes ganharem a salvação na travessia da mirífica ponte para o Além…

Respirar profundamente equivale a viver, ou querer viver, profundamente. A função pulmonar foi experimentada por pensadores budistas de forma assaz atenta e minuciosa. Perceberam a sua relação com a tensão arterial do próprio corpo e tentaram mesmo dominar a função até quase não respirarem durante períodos alongados em exercícios tendentes a atingir o búdico Nirvana.

As variantes lexicais do termo folgar tinham que ser abundantes: animado, animar, ânimo, animosidade, animoso, anímico, até animável (lat. animabile, “vivificante”. Respirar, então, é ter vida, animação; enfim, é possuir a tal “alminha” volátil como chama de vela que um sopro fatal extingue. Quem, embarcado no submarino da fé, se lembra do que aprendeu na catequese, passa ao largo desta ligeira abordagem etimológica, não o cronista. Lida com as palavras (que não inventou), gosta de as pesar para além da casca, até ao grão, e entrou aqui a bailar com elas.

Note-se que a semântica de anima ou fôlego, folegar e resfolegar, ou de alento, aponta de imediato, com impecável pontaria, para a função respiratória. A lembrar-nos, afinal, que é função impreterível de todo e qualquer organismo vivo que vai continuar vivo. Mas, com especial relevância, que é função a mais vital da espécie humana. O perigo supremo, para o crente, é “perder a alma” porque, justificadamente, isso corresponderia de facto a morrer...

Logo, são diversos os vocábulos que aludem ao fenómeno vida, que é respiração, bafo, exalação, anelo (do v. lat. anhelare, “respiração ofegante”). Na sua variedade, exprimem a admiração maravilhada que sempre rodeou o fenómeno da vida a eclodir em acto onde quer que se anuncie. Mas, verdadeiramente, como compreendê-lo? A inteligência humana aplica-se, avança através dos organismos vivos, vai do mundo biológico ao inorgânico, lá onde se dilui a fronteira entre um simples vírus e os processos físico-químicos. A ciência esclarece-nos mais e mais, mas o mistério continua a rodear a vida na multiplicidade das suas formas talvez porque a vida é mistério e mistério tão basilar que outrora deu berço às religiões, à invenção de uma metafísica fabulosa.

Todavia, não resta lugar para um Deus criador do mundo, os avanços da ciência extinguiram-no. O derradeiro golpe foi dado por Stephen Hawking no seu novo livro The Grand Design. Assumidamente agnóstico, o físico cósmico explica ali o Universo através do Big Bang primordial abolindo definitivamente a ideia teísta do criacionismo. Segundo afirma quem já o leu, Hawking procede neste livro a uma definitiva abolição da hipótese divina. Antes parecia admiti-la como hipótese última, nos limites do conhecimento, reafirmando porém o seu agnosticismo. Agora, por fim, aplicando somente as leis da física cósmica, transpõe a última fronteira.

Degrau a degrau, sucessivamente, pode também chegar à contemplação do cosmos, ou seja, do Universo, quem se põe a cogitar nas origens do mundo. Não se detendo em meras aparências, eleva o pensamento para além do que o rodeia e, gostando de astronomia, fica no escuro como quem sobe de noite ao telhado mais alto e dispara para o céu polvilhado de estrelas as suas interrogações e espantos. Decerto perceberá então que a vida, toda a vida respira e pulsa naquela abóbada fantástica.

Inserido na abóbada, vogando no espaço celeste, terá o sistema solar que integra o planeta Terra, com a natureza envolvente em cujo seio a humanidade nasceu. Na verdade, tudo existe na amplidão do céu, onde tudo é tempo e espaço, isto é, matéria diversamente organizada e energia. Pormenor curioso: os que mais apontam o olhar para o alto, supondo que é morada de Deus, parece que menos o contemplam. Rezam, adoram o céu, mas habituaram-se decerto a considerá-lo como metáfora, mero recurso retórico, ao modo dos minúsculos hemisférios pintados de azul, com estrelinhas douradas, que cobrem certas imagens de santos. A observação directa inculca a impressão de que os crentes assim religiosos vivem tão agarrados ao terreno que prescindem de contemplar o que adoram.

Todavia, viver no Planeta Azul sem pressentir a infinidade sideral, portanto de olhos cegos para a verdadeira luz, como toupeiras no interior dos túneis que escavam, reduz a dimensão humana à ínfima condição. Rebaixa-a para além do razoável, permitindo a sobrevivência de fenómenos sociais tais como superstições e crendices arcaicas enraizadas no íntimo de gente com mentalidade parada no tempo. Mas a ciência é e torna a ser peremptória: a hipótese de Deus criador não tem mais céu para reinar...

Sobra-nos hoje na Terra quem reina a valer, disputando o poder à Igreja ou reinando inclusive em nome de Deus sobre as consciências, os valores humanos supremos e as coisas do mundo. Mas das épocas em que a Igreja predominou com poder mundial absoluto subsistem termos que ainda hoje, ao detectá-los, nos assombram e deixam a estremunhar. Regressemos, pois, a palavras antigas carregadas de história. Tomemos o vocábulo dom.

Sentia-lhe, desde há tempos, uma esquisitice intrigante. Na escola primária habituara-me, como toda a gente, a vê-lo ligado a reis e outras figuras da aristocracia, depois também a bispos e cardeais e por fim a senhoras donas. No tira-teimas, lá estava abonada a semântica: donativo, dádiva, qualidade ou vocação; do lat. donu-, “oferta aos deuses” e, como título, do lat. dominus, “senhor, dono [de casa], possuidor, proprietário; chefe, soberano, árbitro, senhor (com sentido próprio e figurado)”.

Eis quanto foi preciso para me agarrar ao tema. O dicionário regista que “dono”, proprietário, provinha do lat. dominu- e remetia-nos para o “dom”. Ora dominiu-, domínio (propriedade, direito de propriedade; banquete solene, festim) conduzia a domina, “dona de casa, esposa, e também senhora, soberana”…

Neste ponto, tendo na mão o dom e respectivas derivações fui, inevitavelmente, até ao lat. domus (casa, morada, habitação, domicílio), que lembra a domus municipalis. Era evidente. Existia uma correlação entre as partes deste conjunto lexical. Apontava para um facto de grande relevância histórica com especial significado.

O facto parece demonstrar que o dom era adquirido pelos felizes, então muito raros, possuidores de bens terrenos, propriedades. Um rei, portanto, adquiria-o por possuir vastos domínios com povos, palácios e castelos. No período feudal esses domínios entraram em progressiva fragmentação (repetiam-se as doações régias), de modo que o número dos senhores “donos”, isto é, com “dom”, foi crescendo.

Mas acaso poderiam assistir a isso os grandes hierarcas da cristandade sem disputa, eles que, no esplendor das catedrais, coroavam as cabeças dos reis sagrando-os em nome da divindade? A Igreja também possuía bens terrenos (e não eram assim tão poucos), ainda que, alegando eterna pobreza, declarasse que o seu reino não era deste mundo, estaria cifrado numa transcendência. Todavia, os “príncipes da Igreja” chegaram a ser titulares de domínios (apenas simbólicos, celestes?) atribuídos pelo soberano absoluto, o papa.

Certamente, os príncipes da realeza e da cristandade, conservadores empedernidos, continuam a manter na actualidade o seu dom, ao passo que outros grandes donos do planeta o dispensam, abraçados como estão aos seus milhares de milhões ou de triliões, mas será de notar que os colonos romanos da antiga Lusitânia, sentindo-se decerto miraculados, dotavam muitas vezes as suas villae com uma capela, costume depois mantido por donos posteriores de palacete solarengo.

Sem atender mais a outras derivações de tão prodigioso dom, note-se a longevidade das juntas de paróquia, embriões das actuais freguesias. Passaram, evidentemente, por diversas transformações, confundindo-se de início com o avanço do culto cristão. A própria designação dessas autarquias locais variou e sofreu alterações semânticas: igreja, diocese, paróquia, freguesia, colação - refere José António Santos, autor do estudo As Freguesias (Oeiras, 1995). Por outro lado, o artigo “Paróquia” do Dicionário de História dirigido por Joel Serrão conduz-nos à percepção de que as casas senhoriais das villae, espalhadas pelo campo (quintas onde se formaram muitas vilas), incluíam templo privado (paróquia = “igreja” primitiva).

Tudo isto ilumina com renovada clareza o processo do avanço da cristianização no terreno pondo em destaque a notável antiguidade dessas organizações de vizinhos. Estiveram sob a égide total da Igreja, inclusive como “juntas de paróquia”, até ao advento do liberalismo, no século XIX, e em 1916, sob o regime republicano, laicizaram-se em completa autonomia civil. A reforma administrativa, dita de Miguel Relvas, que alterou em 2012 a estrutura administrativa das autarquias básicas, herança milenar tão tradicional entre nós, foi aplicada no terreno com insólita indiferença.

Aliás, a escassa memória da evolução que a religião católica teve ao longo dos séculos tende a inculcar a ideia, errónea, de que não houve mudança, somente conservadorismo. Ora a matriz comum de que nasceram as três principais religiões monoteístas mais conhecidas contém aspectos, por isso mesmo, pouco evidenciados. Um desses aspectos parece continuar omisso e é o de encontrar uma resposta para a velha questão: porque são, para os católicos, os judeus tão hábeis em negociar com o dinheiro, lucrar, enriquecer?

Questão interessante. Longe de manchar a boa reputação da religião da maioria dos portugueses (uns 85%), realça, pelo contrário, um belo preceito da doutrina canónica emanada da basílica de S. Pedro para o mundo. Mas contrapõe, sem mais, um tempo antigo ao nosso tempo deixando aquele a brilhar perante este.

É pena ter-se perdido aquele nobre princípio ético, embora nada impeça os católicos de considerar quanto queiram uns usurários incorrigíveis os judeus. Mas a questão traz a lume, já veremos porquê, a alteração que o pai nosso, eminente oração do cristianismo, sofreu. Aponta para uma rasura no trecho: “perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores”.

Posso testemunhar que, na minha pequena comunidade natal (situada entre Aveiro e Coimbra), pelo menos até 1945, aquela oração se manteve sem a emenda que depois sofreu. Aparentemente, a meus olhos, ninguém deu fé da troca que então pôs “ofensas” no lugar das “dívidas”. Mesmo hoje pouca atenção merece, afinal, a emenda daquele trecho da oração “ditada por Deus”, apesar de ser máxima a relevância que a questão assume no plano das relações sociais no universo católico.

Marca, porém, uma viragem crucial na doutrina canónica (e hoje contam-se 30 milhões de escravos no mundo com ou sem dívidas; metade na Índia, 3 milhões na Europa). Finalmente, a Igreja passou a admitir o direito de quem concedia empréstimo a reaver o seu crédito bem como o de auferir juros. Escreve Armando de Castro (artigo juros, Dicionário de História, dir. Joel Serrão, Figueirinhas, Porto, 1981): “É bem sabido que na Idade Média, em Portugal como no resto da Europa, a Igreja combatia a cobrança de juros, justificando teologicamente a proibição com o argumento de que exigi-los seria extorquir valores ao devedor pelo uso do tempo, que era uma dádiva divina.”

De facto, “os princípios éticos e jurídicos medievais não previam sequer uma retribuição por quaisquer empréstimos em dinheiro ou em espécie.” Escreve o mesmo autor na obra citada, artigo usura: “Sendo os juros proibidos pela Igreja durante a época medieval, somente quando o investimento na produção dos capitais mutuados se tornou possível e significativo é que as realidades começaram a levar de vencida as disposições proibitivas. No entanto, mesmo na Idade Média, a cobrança de juros praticou-se esporadicamente” (pois sempre houve transgressões).

Essas proibições constam, por exemplo, das ordenações afonsinas e manuelinas e, até ao século XX, os códigos civis portugueses condenaram a usura acima de um limite legal. Foi deste modo que os judeus, dispensados de tais dogmas, puderam dedicar-se, em especial desde o Renascimento, à (mais lucrativa e compensadora) atividade financeira.

Na actualidade, a laicização das populações vulgarizou-se e a religião foi-se acantonando na esfera do privado individual ou de grupo. O anúncio do “fim da fé” sobreveio à proclamada “morte de Deus”, supremo pai da vida substituído, nas sociedades de consumo e da liberdade fictícia, pelo “deus” Mercado. Mas nem por isso a população católica portuguesa abandonou deveras a sua fé tradicional. Abalada por escândalos de especial impacto (pedofilia, ocorrências no Vaticano), terá enfraquecido a devoção traduzida no aparecimento de 615.332 habitantes sem religião registados pelo recenseamento de 2011.

Mas a política da austeridade, ou seja, a crise socioeconómica, se não anima o tamanho das côngruas e dos dízimos, pode atrair ao santuário maior peregrinos em renovadas súplicas por um emprego, embora lá cheguem de mãos vazias. Por outro lado, nem todas as correntes religiosas suportam a crise de igual maneira. A católica regista menos fiéis nos templos aos domingos enquanto outras igrejas, da IURD e de outras organizações oriundas do estrangeiro, parece que singram com bom vento.

Nesta situação despontam alguns sinais de uma evolução geral surpreendente. Certas missas e outras celebrações religiosas apresentam-se com liturgias que transformam os templos em palcos de variedades e os oficiantes em actores de uma qualquer pantomima, com verbo inflamado e um pequeno sortido de frases repetidas (marteladas) cem vezes até aquecer e levar ao rubro a freguesia. Ora a freguesia aumenta, aprecia o espectáculo, sai satisfeita e volta.

Deus, lá do Seu etéreo assento, conserva o indefectível mutismo desde o princípio das idades e, portanto, nada diz. Assim, a liturgia deixa-se contaminar pelo lado laico e as celebrações religiosas, com Bíblias e Jesus crucificado, abrem-se para a cultura do espectáculo. A vivência espiritual intimista sai para o exterior a tomar ares e não distingue mais religião de religiosidade, fé e crença.

A religião desertou totalmente da política e, como vistoso sobretudo posto no cabide, fica à porta dos gabinetes - do governo, do partido, da empresa - onde zelosos tecnocratas tomam as decisões. A religião foi metida entre parênteses agora que a riqueza material reina a valer na terra e no céu. Que papel e que valor atribuir hoje, portanto, à religião? Se a fé, qualquer fé, já não liga o crente ao seu semelhante, isto é, se perdeu toda a transcendência, toda a espiritualidade, o que resta? Restará, pelo menos, a herança positiva de uma “religião sem Deus”, isto é, a religião natural de David Hume (1711-1776), uma “religião (re-ligação à espécie) da humanidade”...

A este ponto chegamos num relance à alma atidos exclusivamente ao significado normal das palavras que usamos. Terá o fio deste discurso entrado alguma vez em digressão? Nada disso. Senão veja-se: procurámos a alma e, sem confundir respiração, que é vida em acto, o que achámos? Os teólogos da igreja optaram por recobrir unicamente anima de uma enganosa transcendência, mas, conforme vimos, outros termos relacionados com a função respiratória, identificável como vida, poderiam ter igual sorte. Logo, por coerência, sem propaganda nem ludíbrio, deveriam existir “almas” em tudo quanto existe em acto. Objectar-se-á que a transferência metonímica operada com anima se perderia se abrangesse os diversos sinónimos daquela palavra. Objecção! Então Deus, Ele, o único, não foi dividido em três (a SS Trindade) sem perda da unidade – Ele, o Espírito Santo e o seu Filho, Jesus?!

Tenho dito.

   
  (1) http://novaserie.revista.triplov.com/numero_34/arsenio_mota/index.html
 

 

© Maria Estela Guedes
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