Personagens principais deste livro
·
Tia Valentina de
72 anos em boa forma física e mental. Viúva de um médico.
·
Tem dois filhos
adultos: Miguel, o mais velho, tirou um ano de frequência da faculdade
para observar o que se passava nos territórios de Israel e da Palestina;
João, o mais novo, depois de se separar da Mónica, foi por um curto
tempo ter com o irmão.
·
A
sobrinha, a Vera, contadora da história, é filha de Sofia, irmã de
Valentina. Sofia foi casada com Álvaro e morreu cedo. Vera é casada com
Zé, médico.
·
A Vera e o Zé têm
uma filha, a Luísa, e um filho o
Tiago. A Luísa é casada com Diogo. O filho Tiago está colocado
profissionalmente em Portobelo, na América.
·
Loti é a
adolescente que está a ser cuidada na «Instituição das Mães
Adolescentes» e a Vera, por aí trabalhar, interessa-se pelo seu
problema.
·
Adelina, é a
empregada que acompanha há muito tempo a família e que ajudou a criar
Vera.
Prometi a mim própria contar a outros as
conversas que temos tido ao longo da vida e que, em certos pontos, são
comuns a muitas famílias. Não será fácil sequenciar os múltiplos
assuntos que se vão apresentando à minha memória. Talvez depois da
primeira arrumação dos textos possa ordená-los por épocas. Através dos
meus depoimentos e conversas consegue-se ver que na família houve
períodos muito conturbados e trágicos. Os relatos que aparecem são como
foguetes, bombas de menor ou maior potência que sempre ouvi com prazer,
admiração e muitas vezes respeito
Minha mãe morreu quando eu era muito pequena e
meu pai foi viver para Angola. Desde então fui criada pela Tia
Valentina. Os filhos da Tia Valentina são
meus primos/irmãos: o Miguel, o mais velho, e o João.
O reconhecimento da personalidade da Tia
Valentina só se evidenciou quando me fui despegando do meu egoísmo de
juventude e, especialmente, depois do meu casamento. Fiz a escola
secundária num internato e só comecei a avaliá-la quando passei a
frequentar a universidade e a viver em sua casa.
Quando
eu estava em crise ou perplexa perante este maravilhoso e perigoso mundo
onde nos foi dado viver ela percebia imediatamente. Às vezes eu mostrava
agressividade porque a sua sabedoria de vida me perturbava. Pensamos
sempre que a nossa geração é que nos percebe e que os velhos pertencem a
outro mundo, a uma época onde tudo era diferente.
Lembro-me
que lhe telefonei num dia muito especial para mim. O meu filho Tiago
partira para um emprego em Portobelo, nos Estados Unidos, e não se sabia
quanto tempo ficaria ausente. O meu marido estava a preparar um
congresso na sua área de medicina e não podia ser perturbado, e eu
sentia-o muito ausente. Assim a Tia Valentina parecia ser a única pessoa
a quem podia recorrer com tempo para me ouvir.
- não acendas a lenha porque ainda está húmida - disse ela.
Um marido equilibrando-se na corda bamba da
competitividade, um filho que me deu sempre carinho partindo sem se
saber devidamente as condições, uma filha a tentar uma terceira gravidez
de risco e sempre arisca e cravada nos seus problemas, todos contribuíam
para fazer oscilar o meu equilíbrio. Assim recorria à Tia Valentina
porque nunca me habituei a partilhar os meus problemas com as amigas.
Sabia que as minhas confidências podiam enfraquecer a nossa relação ou
substituir a forma como queria ser olhada.
- deixa o tempo encarregar-se de te dar respostas e ocupa-te!
Respondia um pouco irritada: “Não
durmo senão seis horas por noite, como poderei estar disponível para me
ocupar? Quando acordo de madrugada, ponho-me a pensar que o tempo voa e
estou a perder a presença do Tiago que não sei quando pode voltar a
Portugal, penso que o Zé se escraviza no hospital e que está a
envelhecer precocemente, que a Luísa morre de desgosto se não conseguir
que esta gravidez vá avante...enfim...
- Estás apenas com pena de ti própria...se o tempo voa como dizes, tens de
aproveitar para te ocupares. Continua com as aulas de pintura. Pintavas
tão bem! Fizeste parte de uma organização de mães adolescentes,
volta...a desculpa de estares cansada, como me disseste, é prova que
andas com pena do irremediável. As pequenas e sucessivas depressões dão
muito a ganhar aos médicos e às farmácias e tu sabes que falo com
conhecimento de causa.
A Tia
Valentina, filha de pai israelita, viúva de um médico de ascendência
também judia, que perdeu a vida num acidente próximo de Telavive quando
houve um atentado perto do local onde passava de carro, compreendia a
escolha do seu filho mais velho, Miguel, para mim, um primo quase irmão.
Ele Interessou-se pelos movimentos para a paz que defendem um estado
palestiniano, única forma de acabar com a guerrilha permanente dizimando
tantos judeus como palestinianos. Os dois movimentos, um encabeçado por
um israelita, o outro por um palestino, têm o mesmo título - “One Voice
Movement” - e os mesmos propósitos. Começaram com jovens que fizeram
casamentos mistos e acreditam numa solução pacífica. Como pode dormir
descansada e apresentar essa calma? Mentalmente era a minha pergunta.
- O tempo que estamos a viver é o
único que temos, não o podemos
desperdiçar
E como explica o horror do fanatismo que vai
criando becos sem saída, os sem religião estão por vezes mais perto do
equilíbrio. Como se pode viver sujeito a preconceitos estruturados por
certos religiosos que continuam intolerantes e, ainda pior, incultos.
Abomino esta gente que se mata alimentando ódios, criando uma espiral de
violência que nunca tem retorno.
- Difícil aos homens viverem sem Deus...mais fácil julgarem-se arautos de
Deus...
Mas o deus de cada um não é o Deus da
tolerância, é um deus extremista cujas leis os homens foram moldando a
seu belo prazer e depois creem nesses ídolos que construíram. Muitas
vezes penso que também estou errada, afinal tinha construído um deus à
minha medida, que me convinha embora acreditasse que o Deus universal
andava distraído com as injustiças deste mundo onde multidões se
agrediam, se odiavam e outras tinham crenças que pareciam medievais...
- Se estiveres profundamente motivada num trabalho que te interesse e
saibas evoluir, tudo o resto são problemas secundários. O teu marido é
um refém da sua profissão mas não terá depressões...
Quando acabava a conversa com a Tia Valentina
parecia que as portas cinzentas das minhas arrelias se abriam e pensava
que aquela cara enrugada com um suave sorriso e olhos um pouco piscos me
reduziam à minha autêntica dimensão. Depois dormia uma noite mais longa
e acordava com a sensação da minha fragilidade, apesar de ter saúde e
menos quase trinta anos que a Tia Valentina.
Recordei que o curso de “Arte e Cenografia” que
havia tirado em Londres durante dois anos foi o que queria na altura mas
tornou-se inconsequente na vida de casada. Voltei a inscrever-me no
terceiro ano da Escola de Artes Plásticas que tinha abandonado quando
acompanhei o Zé à Bélgica por três meses. Como ele tinha as
sextas-feiras muito cheias, resolvi dar esse dia para a obra das “Mães
Adolescentes”.
Assim fui vivendo menos centrada em mim e ia
dando conta dos meus progressos à Tia Valentina. Um dia ela telefonou e
disse que tencionava ir a Israel porque os filhos não tinham intenção de
vir tão cedo a Portugal e queria vê-los. Fiquei admirada. Achava, no meu
entender, que ela já não tinha condições para viajar e nem sabia se
devia mostrar preocupação ou apenas apoiá-la. Afinal tanto se pode
morrer num país como noutro ou em viagem. Os seus ótimos setenta anos
não são obstáculo para viajar. Há nos aeroportos cadeiras de rodas para
galgar os intermináveis espaços até ao destino e esses viajantes têm
tratamento privilegiado. Porquê a minha preocupação? Ela sempre fora
firme nas suas decisões e estava bem de saúde.
A Tia Valentina ia fazer-me falta. Seria essa a
razão primeira da minha preocupação? Não! Eu gostava mesmo dela. Sempre
pudera contar com a sua ajuda. Iria apoiá-la. Quando chegou o dia da
partida, acompanhei-a até onde me foi permitido e, no regresso a casa,
pensei que tinha contribuído mais uma vez para eu ultrapassar um momento
de fraqueza. A sua força inspirava-me. Com aquela idade aventurava-se
porque tinha saudades dos filhos. Que razão tinha eu de recear os meus
problemas?
Como tinha ficado combinado comecei a receber
e-mails. Às vezes meus primos
intervinham e apesar de estarem longe sentia-os ainda mais família. Os
meios de comunicação modernos tornam o mundo acessível e muitas vezes
dizemos muito mais do que quando estamos próximos. Fenómenos a que nos
habituamos sem dar conta!
1º
e-mail da Tia Valentina
:
- Cheguei bem e tinha os dois
filhos à minha espera. O João apresentou-me a rapariga com quem anda e
achei-a muito simpática. Os homens têm dificuldade em viver sem uma
mulher. Será porque nasceram de uma mulher?! Isto é só para jogar com as
palavras...ela também trabalha para o tal movimento de conciliação. No
grupo deles há setenta e dois casais israelo-palestinianos. O amor entre
eles pode ajudar as novas gerações a respeitarem-se mesmo tendo alguns
princípios diferentes. Vou estar presente a uma reunião que se espera
tenha grande adesão.
Nunca se sabe o
que pode acontecer?! Há sempre a possibilidade de infiltrados e
extremistas. Estarão provavelmente a fomentar as guerras, os ódios, e
assim o negócio das armas continuará, ou outros interesses que não
conhecemos. O do petróleo é um rio de sangue.
Diz-me se a Luísa
ainda continua segurando o bebé. À minha maneira, pouco ortodoxa, rezo
por ela. Nunca sabemos se a criança que queremos que nasça terá uma vida
que valha a pena viver. Desculpa esta frase, mas às vezes estes
pensamentos um pouco perversos assaltam-me.
Os desígnios de
Deus são sempre repetidos pela gente bem-intencionada e que está exausta
de conflitos, de mortes, de gente estropiada, de vingança. Este
movimento que o Miguel parece apoiar começou por cinco casamentos
celebrados no mesmo dia por eclesiásticos de credos diferentes. Os
noivos eram judeus e palestinianos que desejavam com o seu exemplo de
amor e compreensão transmitir a reconciliação.
Entretanto tem
havido progressos e recuos, mas a esperança não os abandona. Parece que
vou ter de falar num destes “meetings”. Como filha e viúva de judeus e
tendo vivido num kibbutz nos anos cinquenta posso dar alguns exemplos.
Este movimento está a dar-me força. Sinto-me mais nova e, se não olhar o
espelho, convenço-me que rejuvenesci. Afinal judeus e palestinianos são
primos direitos e podem entender-se. Querida sobrinha vai dando
notícias.
:
Como não tenho o conhecimento deste movimento e
só agora na Internet
recolhi alguma informação, não posso senão aguardar, com algum
receio, notícias do “One Voice
Movement”. Os relatos da Tia
Valentina enchem-me de curiosidade. Peguei num grosso livro sobre o
problema israelo-palestiniano. Aqui, neste cantinho português onde há
paz, sentimentos inquietantes sacodem o meu espírito. Será que as lutas
fratricidas terão sempre de acompanhar o desenrolar da história de
alguns povos? Vejo aos poucos a minha pequenez condicionada por
preocupações que latejam numa combustão onde não se vislumbram soluções.
Aborrecida pela falta de notícias durante quase
uma semana fui à casa da Tia Valentina. Lá estava aquela bela e elegante
palmeira, à qual chamava Marilyn Monroe, ereta e dominante no jardim em
socalcos. Admirei mais uma vez aquela árvore nascida ao acaso num degrau
da encosta e o porte dela com um terço das raízes fora do canteiro
fazia-me sempre pasmar. Muitos de nós também temos raízes fora
das próprias fronteiras! A Tia Valentina dizia: garantiram-me que as suas inúmeras e profundas raízes a manterão
ali até que haja um sempre. Ela troçava desta expressão dúbia. Subi ao
seu escritório. Só eu e a velha Adelina possuíamos as chaves da casa.
Ia mandar um
e-mail no computador dela pois
o meu estava com avaria e andava preocupada. Naquele país instável tudo
podia acontecer...não sei porque me deu uma curiosidade mórbida e abri
um caderno de capa preta que ela tinha na gaveta da secretária. A Tia
Valentina nunca fechava nada à chave e dizia que quem quer abrir
consegue sempre e era irrelevante usar chaves para estas trivialidades.
Abri o caderno e dei por mim a ler o que parecia um livro de reflexões.
Devia talvez tê-lo posto logo de parte, mas não consegui.
Livro de
capa preta:
&
A família é sempre uma caixa de
surpresas
– estremeci ao ler
– não sei se o amor, a amizade,
tem diversas escalas, não amo as pessoas nem as estimo da mesma forma
todos os dias, estou às vezes saturada do pouco que me conseguem
surpreender, outras vezes desesperam-me por serem tão uniformes ou
porque me impressionam pela negativa. Não sei se procuro nelas coerência
impossível de alcançar ou se espero revelações de comportamento que
desejava poder existir num ser humano que ambiciono perfeito. Estou numa
fase de vida em que tudo à minha volta oscila e acho que sou eu que
espero dos outros o impossível e ao fazer isto me posiciono numa berma
perigosa de um precipício e só fugindo posso sobreviver...sei que é
impossível fugir de nós próprios...
&
Ao ler isto senti que estava roubando um pouco
da alma da Tia Valentina e ela não merecia. Também reduzia a minha
existência a problemas que talvez não desejasse resolver. A Tia
Valentina já me tinha alertado para desdramatizar as minhas
preocupações. Ter o marido super preocupado era realmente um bem. Ter o
filho longe mas num trabalho de que gostava, outra vantagem. Poder
avaliar a situação da filha que abortava com desgosto mas tinha todos os
outros fatores positivos não era uma calamidade.
Seria que estava a preparar a minha menopausa?
Depois resolvi fechar o livro da capa preta, mas
havia uma força que parecia maior que a minha curiosidade e me impelia a
folhear o livro. Continuei a leitura:
Livro de
capa preta:
&
Sempre desejei encontrar respostas para os problemas do amor, do afeto,
das preferências, sempre desejei poder aceitar as pessoas que me
acompanharam pela vida, do foro familiar, de amizade, ou de convivência,
no lugar que realmente tinham e não no lugar que eu desejava que
ocupassem. Aos poucos vi que quem está sempre errada sou eu porque rara
é a pessoa que se manifesta ao ponto de poder ser compreendida. Cada um
constrói uma aparência e nem sempre é a verdadeira imagem de si própria;
é muita vez o robot que julga que os outros esperam de si. Vai se
mascarando e age de forma inesperada para si própria. Há gente simples,
despida de ambiguidades que deveria apreciar condignamente e que se
desprende do meu caminho e por impossível que pareça não me deixa
saudades. Sou uma analisadora de comportamentos e o descobrir no outro
atitudes, opiniões que os diminuem, essa análise é um estigma que me
agride. Não devia gostar de me meter por caminhos que me vão cavando
trincheiras onde acabo por ficar só e passo a viver apenas a observar.
Quem observa o porquê dos que o rodeiam é apenas um farol sem sinais
luminosos.
&
Realmente estava a ficar mais próxima da Tia
Valentina. Percebia por que resolvera naquela idade avançada empreender
a viagem a Israel. A sua ânsia de participar. O risco que talvez
corresse não fazia parte das suas preocupações. Já vivera o suficiente,
talvez pensasse. A proximidade da morte é um privilégio para quem já
usufruiu da vida e a observou com frieza – digo frieza – mas não é ainda
a palavra adequada para uma senhora que estimo mais do que qualquer
outra que conheci e que tanto me deu de si própria. Ela é a figura
feminina que encarna os valores que nunca encontrei em ninguém, talvez
por ter perdido a minha mãe quando criança. Mas este desencanto
confessional que lia nas linhas deste diário que nunca deveria ter
aberto, fazia de mim uma espia que, em vez de manchar o meu ato, me
aproximava de alguém que vivia em permanente indagação sobre os outros e
sobre si própria. Todas as fraquezas que ela apontava eram as incógnitas
de seu próprio caráter. A incompletude das relações humanas, da procura
do imensurável era, na boca da gente de autêntica fé, o almejar de uma
alma aspirando ao divino. Talvez ela se sentisse sempre na encruzilhada.
Mas eu, que às vezes julgava ter perdido a fé,
não sabia se a Tia Valentina também andava como eu numa busca pelos
caminhos tortuosos da incerteza. Depois pensava na maneira generosa como
tratava os outros: ouvindo-os, dizendo frases curtas mas que pareciam
bordões onde encostar para refletir. Estava na dúvida se devia abrir
mais umas páginas ou largar o livro da capa preta onde a Tia Valentina
registava as notas do seu pensamento à solta. Se ela morresse antes de
mim, o que é sempre uma incógnita, teria um dia de arrumar os seus
pertences e o livro viria parar a minhas mãos. Estava talvez a
prevaricar, mas ainda podia amá-la melhor porque compreendia as suas
fraquezas e dúvidas. Não sendo senão uma sobrinha a quem ela amparou
desde que fiquei sem mãe, achei que talvez não estivesse a abusar e sim
a antecipar um tempo. Lia com curiosidade mas censurando-me. Era uma
dolorosa experiência. Sabendo-a com vida e energia anímica para ter
viajado a minha falta ficava, a meu ver, atenuada. Nesta página ela
falava do marido e senti um arrepio. Voltei às leituras do livro da Tia
Valentina
Livro da capa preta:
&
Percebi que a Adelina tem qualquer coisa que me quer dizer e está a
adiar, calculo o que seja mas vou dar tempo ao tempo. Penso muitas
vezes, tentando estar no seu lugar, que o trabalho braçal vai perdendo a
tonicidade porque o corpo cansa. O estímulo para bem cumprir perde o
interesse, essa perceção provoca uma vontade de retirada e assim Adelina
garantiu-se conservando a sua casinha onde anseia instalar-se. Todo este
processo não é idêntico em todos nós mas tem muito de semelhante.
Coitada! Digo isto, mas coitada de mim, que nesta idade, difícil será
adaptar-me a outra pessoa. Ela é depositária dos segredos da nossa
família e sempre os conservou com ela.
Refletindo melhor,
julgo aperceber-me que, o fim de um ciclo de vida é uma plataforma antes
da nossa morte, é uma desistência gradual das atividades, de certos
interesses e uma procura de isolamento, no caso dela o apego à terra, ao
seu quintal e um anseio de refúgio onde o espírito se liberta e se
prepara para aceitar outra dimensão. Tanto nos simples de condição como
nos elaborados de espírito a reação é semelhante.
Estou acompanhada
quando escrevo. Ela não tem este privilégio, mas tem outros que eu nunca
alcançarei. O conhecimento alargado dos problemas do mundo reduz a nossa
convicção de utilidade. Perceber a limitação dos políticos, a engrenagem
do mundo económico, os interesses das forças de poder, podem parecer
úteis em determinada altura da vida, mas esvaem-se de conteúdo com a
proximidade da morte. Somos um pouco ingénuos como o criado de D.
Quixote, o Sancho Pança. Terei que deixar de escrever brevemente porque
o registo de certos pensamentos os torna mais agudos e prejudicam-me. Há
acontecimentos no nosso trajeto que nos marcam definitivamente.
Agora penso muito
nos livros que me apaixonaram na juventude e relembro:
Tchekov, Sommerset Maugham,
as Bronte Sisters, os livros do Salgari que um amiguinho de escola me
emprestava, talvez por me achar um pouco Maria Rapaz. Algumas das
leituras foram uma surpresa porque, quando os reli, passados vários
anos, eu já era outra. As personagens de certos livros são como pessoas
que conhecemos e partiram de viagem; voltam um pouco diferentes.
O
quotidiano da Adelina é o mundo das vizinhas, dos sobrinhos netos que
lhe escrevem do Luxemburgo, das boas e más disposições do pároco da sua
aldeia que ainda é seu familiar. Neste mundo tão diverso há os pequenos
dramas, mas não se assemelham ao ódio acumulado entre israelitas e
palestinianos que próximos e de origens comuns não se esforçam para
viverem em paz. Eu que trabalhei um curto tempo num kibbutz e aí conheci
o meu marido, preocupo-me por ser apenas uma observadora. Agora que
tenho dois filhos naquela zona perigosa do Médio Oriente, sinto que
qualquer coisa tem de ser feita por todos nós para que os fanatismos
abrandem e o esclarecimento dos problemas seja conhecido pelos povos de
outras nações. Há uma espécie de fatalidade ensombrando os dossiers da
política externa dos países que deviam preocupar-se. As guerras são um
sinal de atraso na civilização e tocam o mundo inteiro. A Adelina, no
seu mundo mais restrito, não sabe disso e a sua dose de preocupação é
outra. Embora a compreenda estimo-a mais do que consigo explicar. O
mundo dos afetos é uma trama de linhas emaranhadas, assim também é o
amor.
Olho para trás e
revejo os que já partiram e sinto uma nostalgia que dói. Quando observo
na Vera aquela expressão que faz quando está preocupada que é igual à da
mãe, a minha querida irmã Sofia, fico triste. Hoje lembro o sonho que
tive a noite passada e vejo-a sentada à mesa numa casa de jantar
espaçosa de tetos muito altos e a mesa posta com requinte, nem a casa
era a nossa, nem o resto, mas tive a sensação que a minha saudade a foi
buscar. O nosso mundo real está inscrito no tempo que não tem definição
e o mundo dos sonhos tem uma escala a que não damos suficiente atenção.
Contudo passamos quase metade da vida a sonhar e percorremos lugares
desconhecidos e encontramos gente diferente com quem nunca nos cruzámos
na vida. Não procuro a interpretação dos sonhos mas interrogo-me quanto
a vivências absolutamente imprevisíveis e inexplicáveis.
Sei que vou tomar
uma decisão em breve que pode alterar a minha vida, mas porque ainda não
a tomei não a quero aqui registar. Ando inquieta.
&
Passei dias sem ir a casa da Tia Valentina.
Assim que tive um fim de tarde livre, aproveitando a ausência da
Adelina, voltei à leitura quase obsessiva.
Livro da capa preta:
&
Sempre que quero
escrever sobre Daniel há em mim uma perturbação que não consigo
resolver. Ele é o único homem que amei. Construímos a nossa vida
prometendo a liberdade e o respeito que essa liberdade implicava. Magoar
o outro para vingar insucessos temperamentais estava fora de questão. Se
alguém cruzasse a nossa vida e pudesse quebrar o compromisso que
assumimos, tentaríamos escapar, e se o caso estivesse difícil falaríamos
sobre o assunto. Felizmente não foi preciso. A admiração que tínhamos um
pelo outro serviu de biombo a terceiras pessoas. A dificuldade surgiu
quando verificámos que os nossos dois filhos pareciam a antítese um do
outro. Escrevo parecia, porque agora que são adultos, pela força das
circunstâncias, estão a agir unidos e com entusiasmo numa ação em
Israel. É certo que o João foi ter com o Miguel mais por curiosidade;
sendo mais novo manifestou no início uma certa resistência às convicções
do irmão. Com o insucesso do seu casamento achou uma boa ideia ir
observar, no seu tempo de férias, a razão do entusiasmo do Miguel.
A triste separação
do João caiu em cima de mim. Que escrevo eu? Os sucessos e insucessos
dos filhos acompanham-nos até ao fim. Assistir à derrocada sentimental
sem causas aparentes leva-me a conjeturar sobre o amor e o que exigimos
dele. Nem as poesias dos maiores poetas podem definir o que penso. Será
que o entusiasmo pelo outro pode condicionar o pensamento? Ocasionar
desvios dos nossos íntimos objetivos? Ter sempre uma duração limitada?
Seria então amor? Ou a palavra é apenas uma forma limite que como tudo
que existe nos viventes
–
não só os homens pensam amar
–
tem o seu tempo. Será que os
hábitos de convivência podem criar amarras de hábitos e comodismos que
tomamos por amor e que de certa forma o danifica?! Depois penso em
Daniel, meu marido, e parece-me que o amei até ao fim. Digo,
parece-me porque não substituí o
amor pela amizade, só pela saudade.
Pensei na mulher
de João, a Mónica, pensei de tal maneira que prometi a mim própria que
lhe iria falar em breve. Ela deixou de ser nora, mas continua a ser uma
pessoa por quem tenho afeto e aprecio. Fiquei a lembrá-la com o seu ar
desportivo, jogava bem ténis, o seu interesse em colaborar em obras
sociais, o entusiasmo no laboratório onde as pesquisas científicas sobre
os genes das moscas a entusiasmavam e proporcionavam viagens numerosas.
Afinal escrevo sobre Mónica porque não a consigo banir do meu grupo de
conhecidos próximos. Ela é uma mulher que se admira e que pôs em
evidência as carências comportamentais de João.
Teremos nós
obrigações sociais e afetivas excluindo quem nossos filhos excluíram? Eu
sei, como mais ninguém, que ele não a excluiu, sentiu-se gradualmente
preterido e perdeu a tal chama que alguns pensam que é etérea e eterna!
Afinal o outro será sempre aquele que disse que nos amava mas nunca nos
pertenceria. A inteligência diz-nos como devia funcionar, mas o nosso
amor-próprio emite falsos julgamentos. Como poderia eu explicar isto ao
João? E valeria a pena explicar?
Sem filhos, com
problemas na empresa e o seu lugar em dúvida, precisava de uma fuga. A
escolha há um ano do Miguel de ir como observador para Hebron, onde um
dos movimentos para uma solução pacífica acreditava na possibilidade da
coexistência de dois estados independentes, foi um chamamento para o
João. O problema Israelo-palestiniano parece uma doença crónica e
depauperante. Ir para aquela zona do mundo, garganta entre a Europa, a
Ásia e a África, foi para João uma evasão. Perto do Miguel havia um
suporte, e fico sempre a pensar se fugir a enfrentar o seu
caos, precisa de ações extremas, mas como posso ter opiniões?
Interrompi por um
tempo os meus relatos. Encontrei-me com Mónica e fomos tomar chá. Quando
voltei a casa não consegui pegar neste caderno e contar ao meu falso
confessionário os meus sentimentos. Agora, passada uma semana, escrevo
de novo.
Mónica continua
com aquele seu ar de mulher extremamente atraente e segura. Ela
construiu a vida à sua medida. Faz o que gosta. Infelizmente o João não
conseguiu competir com alguém que se acomoda e se entusiasma com o que
escolheu. O João precisava de uma mulher a quem desse conselhos e ela
não precisava. Começou a sentir-se menos seguro e um homem mesmo no
século XXI, mantém alguns padrões esgotados. Como mãe penso que devo ter
alguma culpa. É certo que o mundo caminha a um passo acelerado e tudo
está a ser reformulado. A Europa é uma senhora velha e parece que
acumulou alguma sabedoria com os cataclismos que sofreu, mas nem a
América com uma história mais recente, nem a sabedoria da China, podem
hoje valer a uma total inversão de valores.
O fenómeno das
comunicações rápidas e sem segurança, lançam as populações numa espécie
de fuga-euforia. Podem acender-se revoluções via Internet ..., é
possível combinar um assassinato à distância enviando sinais de
código ..., tornar uma pessoa famosa ou difamá-la por via de
múltiplas adesões no twitter.
Os negócios de
armas, de petróleo, de gás natural, continuam a provocar guerras. Nem os
judeus nem os palestinianos conseguem abolir as suas ancestrais
convicções. No Antigo Testamento, dizem os judeus que Deus lhes deu
aquela terra enquanto os palestinianos atestam que há mais de 1.400 anos
já era habitada por árabes. A gente mais nova que estudou outras
culturas não é em número suficiente para derrubar estas barreiras de
fanatismo que nos levam a pensar se a “não religião” seria
preferível...mas depois o homem tem sempre o medo da morte...e o seu
espírito clama por um Ser superior, uma justiça.
O preço
escandaloso das drogas alucinogénias gera fortunas e a decadência
humana. Recentemente uma amiga perdeu o neto por excesso de drogas. Este
caderninho é assim. O amigo que já não tenho para conversar. Estar só é
não ter a confabulação. Que digo eu?
&
Quando largo as palavras da Tia Valentina fico a
pensar. Nunca a ouvi devidamente. Será que ela acha que não sou uma
ouvinte desejável? Afinal vivemos muitas vezes toda a vida com uma
pessoa e pouco mais dizemos que trivialidades. Fiquei a pensar no seu
caso. Ela é uma mulher de coragem. Teve um casamento aparentemente feliz
e filhos que a estimam e admiram, volto atrás...admiram?
Nunca se sabe o ponto que nos parece admiração ou receio de nunca chegar
a merecer a mãe que se teve ou tem...estou já a escrever influenciada
pela Tia
Valentina. Minha mãe deixou na memória dos próximos uma aura que chegou
até mim de uma forma quase translúcida, irreal.
Neste mundo de técnica de comunicação “o Livro
de capa preta” é o facebook
misterioso da Tia Valentina. Abrir uma página do
facebook e escancarar a vida nunca
seria possível nem para ela nem para mim! Não fomos talhadas para isso.
O que se fornece à Internet é indestrutível e eterno, mesmo que dramaticamente falso ou
inadequado.
Vivo a desejar receber notícias de Israel. Ela
está num pequeno hotel perto dos filhos que se encontram acomodados numa
velha casa que o “Movimento” possui e onde há um auditório para as
reuniões semanais. Nunca desejei tanto ter a Tia Valentina de volta.
Sinto que a leitura dos seus pensamentos me tem ajudado a enfrentar os
meus problemas. Já não tomo o antidepressivo. Não sei se fico feliz por
ir desvendando a vida da Tia Valentina sem sua permissão. Há, em mim, o
desprezo por isto estar a acontecer, mas afinal pela vida fora vamos
percebendo que nem tudo o que nos disseram para não fazer é possível.
Nasce da transgressão o ajustamento da nossa personalidade. Receio
chegar a algumas páginas do livro de capa preta e ler episódios recuados
da sua vida que ela preferisse que ficassem secretos. Depois, pensando
bem, começo a aperceber-me de que
o muito íntimo nunca ficará expresso. Há em todos nós um cofre-forte que
de vez em quando aparece em nossos tresmalhados sonhos. O amor, as
preferências afetivas, os projetos de vida por concretizar e que
consideramos falhas do nosso caráter, ficam sempre num limbo de
secretismo e nunca apanham um raio de sol. Com estas considerações
perdoava-me pela minha intromissão na vida da Tia Valentina.
Veio finalmente um
e-mail que vou transcrever.
2º
e-mail da Tia Valentina
:
Querida sobrinha, estou a estudar
profundamente a história recente deste povo que, no fundo, representa
parte das minhas raízes. Na altura em que a família de meu marido fugiu
para a América, as escolas palestinianas fecharam e o Daniel falava de
seus colegas de escola que não percebiam por que as políticas os
separava. Desde 1948, data de estabelecimento do Estado de Israel, que
os amigos palestinianos desejavam ter um Estado-Nação que ficasse a
ocupar uma zona da Cisjordânia e a faixa de Gaza. Tudo se gorou com a
guerra dos seis dias em 1967. Ele tinha amigos e primos palestinianos
mas seu pai tinha tomado parte na guerra pelos israelitas porque era
judeu. Que caminho semeado de ódios tem decorrido desde então.
Um amigo de meus
filhos esteve na Síria antes dos grandes tumultos e visitou a Capela de
Ananias, na orla de Damasco onde S. Paulo viveu. Estas religiões
monoteístas: o islamismo, o cristianismo e o judaísmo deveriam
tolerar-se e tomar conhecimento do Concílio Vaticano II porque nunca
haverá paz no mundo sem se poderem compatibilizar ideias religiosas.
Assisti a uma
reunião do “One Voice Movement” e percebi o empenho que estes, na
maioria jovens, têm de promover uma confraternização autêntica entre
palestinianos e israelitas. A maioria conta-se
entre casais,
alguns já com filhos e outros que tencionam casar apesar dos credos
diferentes. O que nunca se pensa na Europa, onde há tantos casamentos
inter-raciais e que ocorrem com normalidade. Aqui são causa de muito
sofrimento. O fanatismo de ambas as partes é aproveitado pelos senhores
da guerra e pela massa popular de ambos os lados, ignorante, que nunca
viajou e é dada a extremismos. Cada vez há mais mortes
pois os fanatismos
alimentam-se de ódios.
A responsabilidade
nem sempre é dos locais e seus vizinhos. Há interesses que se conhecem
mas nunca aparecem esclarecidos nos órgãos de informação. Sempre que há
mortes de um lado ou de outro, causadas por violência, o facto é
acirrado e gera vinganças e extremismos.
Contaram-me que
nas reuniões estão às vezes presentes membros das igrejas: católica,
ortodoxa, protestante e muçulmana. Aconteceu que um ex-deputado
trabalhista inglês também assistiu a uma das sessões e apesar da sua
irreverência achou que alguma coisa urgente devia ser feita para acabar
com as agressões constantes. Penso que ainda é um ingénuo!
Os teus primos
estão muito atentos ao desenrolar dos factos mas não me parece viável
nesta geração mudanças sensíveis como seria desejável. A nossa vida é
muito curta e a História dos países é lenta porque vai alterar poderes
instalados e demolir grandes interesses económicos. Apesar de ter
antecedentes muito próximos judeus, a idade aclarou-me o espírito. Sei
que estamos muito melhor que há mil anos, mas a tolerância, a
generosidade, vivem na sombra e o homem precisa de bons exemplos
visíveis. Infelizmente o que nos é mostrado com frequência é o lado
negativo da humanidade e depois estranha-se o número crescente de
suicídios e a alta venda de anti- depressivos! Enfim, sobrinha querida,
com a minha avançada idade poder observar os vários movimentos existentes é o privilégio
máximo.:
Fico sempre estática ao ler as palavras da Tia Valentina. Quando vejo os
telejornais e depois oiço os inúmeros comentários, ajustados às
ideologias e não ao bem da humanidade, fico sempre um pouco revoltada
porque é raro poderem avaliar-se os autênticos problemas, vêm quase
sempre camuflados por desígnios partidários, economicistas ou
controladores. Para além destes interesses mesquinhos há o perigo de
apresentar às novas gerações − aos nossos filhos − a quem deveria dar-se
o melhor, uma falsa perspetiva.
Os ambientalistas, não sectários, os grupos que geram apoios sociais sem
retorno, diluem-se e perdem poder de ação perante lobbies poderosos. Lá
estou eu a escrevinhar influenciada pela Tia Valentina. No meu
quotidiano pouco encontro com quem possa dialogar sobre estes problemas.
As nossas preocupações diárias de sobrevivência ou de pequenos
interesses da vida social sobrepõem-se a tudo. Temos fronteiras ténues e
egoístas...
Ficava sempre um pouco amachucada com a força interior que a Tia
Valentina evidenciava e com algumas das suas opiniões. Ela não era uma
senhora de idade acomodada. Pensava muitas vezes como teria sido o
relacionamento dela com a minha mãe. Havia na Tia Valentina um
comportamento afoito perante a vida e, segundo ouvi sempre contar, uma
suavidade e uma feminilidade na atitude perante a vida em minha mãe.
Sentiria eu um secreto desejo de ter uma tia a fazer renda, a ver
novelas, a tomar regularmente um cafezinho com uma amiga na pastelaria
do seu bairro?
Não. Só que o seu comportamento era uma novela onde muitas vezes me
perdia. Nem no livro da capa preta que ia lendo aos poucos, nem nas
conversas, emitia opiniões sobre o meu pai. Parecia querer bani-lo por
ter tomado a decisão de não me educar e deixar-me aos seus cuidados e da
insubstituível Adelina que me deu o berço antes do tempo de ir para a
escola. O não ter tido irmãos, nem avós, perdi-os quando era criança,
fez de mim uma náufraga das memórias da Tia Valentina e da Adelina. Os
meus primos são como irmãos e desprendidos de apreciações familiares.
Continuava a enviar à Tia Valentina as minhas notícias. Parecia que
finalmente ia ter um neto. A Luísa já ultrapassara o período difícil e o
médico estava convicto de que o bebé se ia desenvolver. O meu filho
arranjara um lugar numa empresa de produtos farmacêuticos e estava
feliz. Parecia que todos os familiares homens se afastavam. Felizmente
que tinha duas ou três amigas com quem podia falar, mas nunca me
habituei a confessar a minha intimidade a ninguém.
O Zé preocupa-me, anda sempre acelerado e diz que não me devo
aborrecer
porque só sabe viver assim. Terá eternidade para descansar. Julgo que
ele sempre foi um hiperativo que nunca foi tratado com “Retalina”!
Aquela pequena que está no Instituto de acolhimento a mães adolescentes
e por quem tanto me preocupei estava a assumir com os seus catorze anos
o seu papel de mãe. Como se dedicou a mim, percebi que transferira o
afeto que nunca tivera de ninguém. Sabia que não a podia dececionar,
sabia também que este tipo de trabalho social podia encurralar-me em
situações difíceis de manter sem magoar os outros ou a mim própria. A
Tia Valentina sabia dos meus problemas e um dia disse:
- Olha, ou vives
intensamente rodeada de problemas ou sentas-te de manta nas pernas - se
for Outono ou Inverno - e ligas o Canal Zen/musical deixando que as
horas e os dias passem...
De facto, a dinâmica da vida era o que era.
Comecei a ler todos os artigos sobre o problema
israelo-palestino. Comprei livros onde os países que me pareciam
civilizados tinham tido interferências dúbias, ignorantes ou
lastimáveis. Pensei que o jogo político, económico e as divergências
étnicas e fanáticas eram um caldo sem solução. Admirava os jovens
corajosos que acreditavam poder contribuir para um apaziguamento dos
excessos que resultavam sempre em mortes e desespero. Gostava de saber
de alguns sucessos que num ou outro artigo eram dados a conhecer, mas
receava pela Tia Valentina e meus primos. O comodismo de quem desistiu
de lutar ou nunca tentou remediar as injustiças que lhe passam ao lado é
como o jogador de cartas que ouve a guerra lá longe e espera que o
bombardeamento não o atinja.
Quando olhava à minha volta percebia que as
desigualdades tremendas, os anseios frívolos, a falta de valores
familiares, iam afastando os assustados para condomínios, fortalezas com
segurança, onde privatizavam os medos e recebiam os amigos.
O Zé tinha um só médico acima de si no Serviço
de Hematologia. Eu sabia que eram amigos mas que esse facto os podia
afastar. A sua ânsia competitiva sempre me aborrecera. Devia admirar a
força, a perseverança, mas, talvez por eu ser o oposto, desagradava-me
e, sem querer analisar, perturbava o meu amor e admiração por ele.
Nunca escreveria um diário ou caderno de
pensamentos minucioso e profundo! Iria
para o Além com os meus maiores segredos! O que aqui escrevo é a face
branca da fotocópia!
É mais fácil dissimular os nossos íntimos
sentimentos, construir o nosso conto de fadas e bruxas e pouco deixar
transparecer. E pergunto-me como fez a Tia Valentina: será que realmente
amamos devidamente quem nos compete amar? Será que a nossa preguiça é
sempre causa principal dos fracassos? Porque nos dissimulamos e
apresentamo-nos num figurino que às vezes nos causa
Comecei a
colecionar todos os artigos que falavam do problema
israelo-palestinianos. Li atentamente as diligências a nível religioso.
Os Diálogos inter-religiosos que João XXIII promoveu em 1959, o Concílio
Vaticano II em 1962, as continuadas diligências de Paulo VI para dar
continuidade ao Concílio e a convocação em Assis na Itália feita por
João Paulo II com todas as religiões para pedir pela paz no mundo e,
finalmente, as iniciativas de Bento XVI numa ida à Turquia para se
encontrar e orar com líderes muçulmanos, visitando uma mesquita, foram
passos e grandes ações de boa vontade e coragem.[1]
Infelizmente os barulhentos apelos à discórdia são sempre mais
explorados pelo mau e tendencioso jornalismo. O instinto da guerra está
no homem mesmo no aspeto verbal.
Estudei um pouco sobre o Corão. Li sobre Maomé e
sua descendência, causa das principais divergências entre xiitas e
sunitas, vias diferentes que causam ruturas e violência. Jihad significa
transformação espiritual tomada individualmente, mas passou a significar
caminho de luta, movimento guerrilheiro! Os homens acomodam a religião
aos seus interesses.
Afinal estar virado para Meca nunca resolveu
problemas, mas é uma exteriorização de fé! A aparência dos gestos, a
interiorização da herança oral e escrita vai construindo patamares que
nunca são completamente derrubados. Assim o mundo evolui com alicerces
que começaram talvez fragilizados mas que o tempo cimenta, difíceis de
extirpar. Há muita vez continuidade nos erros e não renovação própria de
uma sociedade evolutiva.
Tantas vezes acordava de madrugada e
entranhava-me nos sábios livros
cuja leitura ocasionava tanta dor. Com um grupo
cultural de que fiz parte visitei várias Judiarias espalhadas pelo nosso
país. A de Évora é, a seguir à de Lisboa, a maior. A Sinagoga é onde a
conhecida pensão Portalegre se insere. No portal gótico ainda se vê o
mezurah. A influência judaica
marcou para sempre a história de muitos povos e ainda hoje move grandes
decisões económicas. Li excertos da Tora pela primeira vez e pedi à mãe
de uma amiga judia que me ajudasse.
É curioso saber
que o primeiro livro impresso em Portugal é o Pentateuco escrito em
hebraico, composto de cinco livros: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronómio, impressos na tipografia do senhor Samuel
Gacon e o único exemplar
existente na British Library.
A persistência, o apego árduo ao trabalho, o
estudo profícuo, o jeito para o negócio são características dos judeus.
Junto com as qualidades vêm sempre os defeitos como em todas as raças e
épocas civilizacionais. É mais fácil filosofar sobre os acontecimentos
históricos que fazer parte dos obreiros da História. Assim, com estas
conjeturas simplistas eu preenchia a ausência da Tia Valentina. Sem
querer debitava os meus parcos conhecimentos num livro que não tinha
capa preta - o meu computador - com as letras à minha frente na luz crua
da minha ignorância. Escrevendo refletia melhor...e estava acompanhada.
Entretanto, um insensato jornal satírico francês
publicou desenhos provocatórios do profeta Maomé. E todo o mundo
civilizado reagiu à falta de senso comum visando apenas exibicionismo.
Há seres, criaturas frívolas, que gostam de atear fogos em armazéns de
palha. Atear ódios é o contrário do que o Homem honesto deseja. Troca-se
o senso comum pelo êxito publicitário e protagonismo baratos. Muita
gente pequena em bicos de pés!
3º e-mail da Tia
Valentina
:
Ainda bem que a gravidez de Luísa
estabilizou. Nem calculas o que te vou contar. O Miguel encontrou, por
mero acaso, documentos sobre uma visita que o Daniel fez à embaixada da
América em Telavive e comoveu-se por essa aproximação ao pai. Ficou a
saber que tinha feito várias diligências para que dois dirigentes de
ideias políticas opostas se viessem a encontrar na sala dessa embaixada.
Isto prova que os meus filhos estão, de certa maneira, a prosseguir nas
tentativas de seu pai e receio que esta causa, que também partilho,
possa ter para eles algum fim trágico. Quantos homens terão de morrer
para que o ódio e o sectarismo terminem? Vê na internet o que se passou
depois dos acordos de Oslo. Depois do primeiro-ministro de Israel ter
sido assassinado por um terrorista judeu, Shimon Peres quis implementar
os acordos de Oslo II. Parecia que o Estado Palestiniano estava a
delinear-se mas os receios, as desconfianças, os atos terroristas,
encravaram o processo.
Os checkpoints e
as estradas da zona ocupada eram cada vez mais controlados. Arafat ficou
desacreditado perante o seu povo e os termos do contrato ficaram só no
papel. Clinton, Presidente dos EUA, chamou a Washington Arafat e
Netanyahu, na altura, recentemente eleito, para se poder voltar aos
acordos de Oslo. O desenrolar dos factos mostra haver incompatibilidades
intransponíveis. Isto que aqui escrevo passou-se entre 1996/1999. Não
digo mais porque esta triste resenha de antagonismos prolonga-se e tenho
pena dos jovens que, de ambos os lados, têm tentado limpar o ódio e
expandir as missões de entendimento.
Não te quero
assustar e transmitir as minhas preocupações e darei outras notícias.
Fui visitar uma exposição de desenho e pintura, lembrando-me de ti que
aprecias ver o que fazem os artistas na nossa época. Não posso dizer que
gostei, e lembro-me de um artigo onde li a opinião de Jacques Barzun, um
estudioso da História da Civilização Ocidental. Professor desta matéria
na Universidade de Colúmbia e muito crítico do culto do absurdo em certa
arte moderna. Lembrei-me dele quando vi a exposição. Acaba de morrer com
104 anos e deixa uma obra fantástica onde o pensamento sobre o ocidente
não nos leva ao desânimo porque, segundo ele, sempre soubemos encontrar
caminhos. Um homem que escreve aos noventa anos um texto com este
espírito e esta visão é um marco definitivo da sua época. Se tiveres
ocasião compra o seu último livro.
Encontrei
um velho amigo de Daniel que era bastante mais novo que ele e, por isso
tem menos cinco anos que eu...um jovem! Especialmente porque tem uma
conversa fulgurante. Há muito tempo que não tenho um interlocutor assim.
Ele adquiriu com a experiência da vida a sabedoria de se expressar com
contenção, sem vícios oratórios e didáticos. Embora tenha nascido na
Polónia e estudasse numa universidade inglesa, tem uma visão do mundo
como se estivesse olhando de um observatório. Não acredita nas múltiplas
boas vontades, mesmo as levadas a efeito por altos eclesiásticos das
três religiões monoteístas. A maioria − diz ele − é sempre o que conta
nas sociedades onde há democracia, mas será uma maioria esclarecida?
Pergunta ele. (eu sorri, interrogando-me sobre a democracia, mas o outro
caminho, a ditadura, nunca) − há sempre o receio a mudanças que trazem
ruturas e os homens são timoratos. Ele acha que, enquanto um povo não
estiver educado e instruído, os votos não são a expressão do que é
vantajoso para um país. Imagina os séculos que terão de passar para que
a tal sociedade utópica apareça! Ele acha que muitos só veem a sua
religião pelo prisma fanático para merecer maior compensação quando
morrerem; outros procuram apenas os efeitos económicos; os mais
esclarecidos sabem que o panorama não se vai resolver nas próximas
gerações e radicam-se em países mais estáveis onde podem trabalhar e
viver em paz colaborando apenas por via económica ou por via da
comunicação escrita. Ele, o Samuel, tem uma certa razão e esquece-se que
a sociedade atual cansa-se de trabalhar (e felizes por terem trabalho!)
e precisa alienar-se quando tem horas de ócio.
Como vês ele está
em sintonia com o que me traz muitas vezes desesperada por ver jovens
nesta forma de luta, altruísta, mas sem grande esperança. Vim até aqui,
como sabes, para estar com os teus primos. Andava muito preocupada e
precisava de vir até ao Médio Oriente onde a justiça não se pratica e
onde o Ocidente receia imiscuir-se. Sempre que o fez foi para servir os
seus próprios interesses.
O
João tem uma amiguinha, como já te disse, que nos apresentou a outro
grupo de Boa Vontade para a Paz e o estabelecimento de dois Estados. É o
Movimento #J14 ...lembro-me da Mónica sempre que os vejo.
O Grupo ”One Voice
Movement” baseia a sua ação na tentativa de garantir que a segurança só
pode ser adquirida quando houver respeito mútuo e ambas as partes
estabeleçam um diálogo permanente. Vai ver à Internet e não te
explicarei mais. Sou maçadora com isto! É evidente que partem do
princípio de que deve haver dois estados com pactos definitivos de
não-agressão. O drama é saber que nas escolas de ambos os lados há uma
educação sectária e xenófoba. Também em muitas famílias acontece o
mesmo.
Tu já me conheces
bem e ao dizer-te isto sabemos que estes projetos para conciliar as duas
partes estão cheios de alçapões, mas não se encontra outra saída pois
nenhum povo atinge maturidade para se saber governar sem se investir
fortemente na instrução, na educação e na saúde, tal como o Samuel
insiste. Digo isto com muita mágoa: a humanidade está ainda muito
atrasada na sua grande maioria. A própria democracia ainda não
amadureceu. As soluções para o país são adulteradas por anseios de poder
dentro dos partidos, rivalidades, diálogos inconsequentes. O lema agora
é: a economia tem de crescer... se não cresce temos todos de ser mais
frugais, exigir menos do Estado. Quem quer esta verdade?!
O discurso dos
políticos é muito semelhante ao dos presidentes de clubes de futebol, em
meu entender bem pior!
Quando um chefe de
um partido chegar a primeiro-ministro, nomear o seu governo e mudar o
discurso totalmente, sem facciosismos, sem partidarites, talvez
consiga ser acreditado pelo povo. Quem sou eu para ensinar?! Uma
anciã! Mas, começaria assim:
Portugueses, vamos
designar ministério a ministério o que o nosso antecessor fez e nos
parece bem e deve ser continuado. Vamos abandonar aquilo que não nos
parece adequado nesta altura. Assumiremos estas opções e contamos com a
vossa ajuda. Em cada ministério haverá um registo via internet com as
críticas e conselhos das pessoas que se sintam preparadas para dar
sugestões possíveis e construtivas. O resumo dessas sugestões será
divulgado depois de analisado.
Quem sou eu para
fazer estas reflexões?! Esta parte é só para te rires...
:
Quando acabava de ler ficava sempre com a ideia
de que o espírito, o poder analítico, não habitam em espécie da mesma forma
em todos os seres.
Receio pelos meus primos e pela Tia Valentina.
Mas sei que só gente ousada pode fazer crescer a sabedoria da
humanidade. Esta frase é definitivamente da Tia. A sua influência
cresceu desde que leio o livrinho da capa preta e recebo os seus
e-mails. No nosso contínuo
contacto durante anos estive sempre muito aquém de a conhecer. Sempre
houve para mim um mistério nesta família e só a Adelina sabe o que eu
nunca saberei. Ela conheceu meus avós, minha mãe, a tia Valentina e meu
pai. Mas ela é uma rocha que só conta trivialidades.
Recebi uma chamada da Mónica e combinámos jantar
na próxima semana numa daquelas noites em que o Zé está ocupado até
tarde. Ela deve querer saber notícias do João.
Achei a sua voz um pouco diferente e aguardo com
alguma inquietação o encontro. Deve ser a minha mania das tragédias como
diz o Tiago. Estou mais descansada porque ele encontrou dois casais
portugueses em Portobelo e parece estar a integrar-se. A Diáspora que
por esse mundo fora semeia o nosso portuguesismo é parte do sal de que a
humanidade precisa.
A Loti, pequena que teve a criança e se afeiçoou
a mim para lá do esperado, põe às vezes a questão do envolvimento que
derruba as fronteiras entre a doação a uma causa. Ela vai enfrentar de
novo o mundo de onde veio, desta vez com um bebé. Quando contactamos com
esta face do mundo que difícil é encarar tanto de frívolo,
inconsequente...não me é possível ter duas faces. Tanto carinho
desperdiçado nas mulheres que não conseguiram ter filhos, tanto aborto
pago pelo Estado a mulheres que não se precaveram ou se desleixaram...
Durante algum tempo, a pequena vai poder estudar
na Instituição que a recolheu e seguir os estudos interrompidos.
Enquanto frequenta as aulas a criança está a ser apoiada e tem a mãe
próxima. Ao fim do tempo estipulado vai ser acolhida por uma avó que lhe
dá uma precária ajuda. Ela sabe que não deve mais engravidar enquanto
não organizar a vida...que vida poderá ter? A Loti é uma miúda esperta
que pode ir longe se tiver muitas ajudas e eu vou continuar a apoiá-la.
Só que podem aparecer e aparecem muitas raparigas na Instituição e nós,
as voluntárias, não nos devemos envolver demasiado. Às jovens
facultam-se livros, acompanha-se a leitura com comentários e mostram-se
filmes de organizações semelhantes, espalhadas pelo mundo onde jovens,
encaminhadas na vida, depois de terem precocemente filhos, conseguem
singrar. Estou a levar este trabalho com muito empenho porque ele é
decisivo para a vida de crianças que quase não tiveram infância. Eu tive
a sorte de ter tido a Tia Valentina quando minha mãe faltou e a velha
Adelina que me rodeou de cuidados.
As aulas de pintura, onde me inscrevi, estão um
pouco negligenciadas, mas sou uma assídua visitante de exposições e vou
tentar fornecer material para a nossa Instituição. Há tantos talentos
desperdiçados! O João, por ter tido sempre jeito para desenhar, foi para
arquitetura e, agora, com esta crise na construção e no país, teria
feito melhor em tirar o curso de cozinheiro. Talvez através do turismo
interno ou externo arranjasse trabalho. Esta pasta guardada nos
my documents é onde arrumo os trapos dos meus pensamentos. Fico
acompanhada nas horas de ócio...
Hoje o Zé veio doente. Meteu-se na cama do
quarto de hóspedes porque disse que não me queria incomodar. Ainda não
sei se vou ficar em casa amanhã.
No próximo fim de semana ficámos de ir os dois
para a casa da praia da Luísa e do marido. Ela está muito mais
acessível, os nervos acalmaram; o Diogo, meu genro, adora cozinhar e vai
fazer um almoço surpresa, espero que o Zé melhore para não faltarmos.
Recebemos um e-mail grande e minucioso do Tiago.
A mulher de um dos casais portugueses que lá encontrou e de que falei, a
Carmo, trabalha com ele e tem origem açoriana. Como eu também tenho, e
na Ilha Terceira, vamos ver se encontramos alguns pontos de contacto. Já
fui à árvore genealógica que minha mãe me deixou. Estava nos pertences
dela e guardei toda a informação como se fosse um tesouro para um dia
desbravar. Afinal vai ser agora. A tal Carmo tinha um avô com o mesmo
apelido de minha mãe.
No meio deste quase diário que mantenho como um
pequeno vício faço o tricô da minha vida. As coisas sérias e que me dão
preocupação passam-se lá, no extremo Mediterrâneo, onde a Tia Valentina
se encontrou com os filhos, meus primos.
A Loti e outros casos semelhantes também fazem
parte da minha vida e estou realmente a compenetrar-me que em breve
serei avó. O Zé agora fala já dessa possibilidade e diz que a Luísa tem
de fazer a primeira ecografia no seu hospital porque quer ser o primeiro
a ver o neto. O seu espírito competitivo!
Estive
a ver na TV duas entrevistas que falavam exatamente sobre a influência
dos votos dos judeus americanos nas eleições presidenciais de 2012 e
sobre o voto dos judeus russos e de outros judeus espalhados pelo mundo.
Assisti também a uma entrevista a um embaixador de um país sul-americano
que focava a não colaboração dos países europeus para resolver a
premente necessidade de definir fronteiras de um Estado palestiniano e
onde Jerusalém permanecesse como a cidade sagrada e respeitada por todas
as religiões monoteístas. As influências exteriores desde o tempo de
Roma antiga até hoje nunca conseguiram sanar esta questão dolorosa e
sangrenta.
“One Voice Movement”
tem grupos muito ativos a visitar estados americanos que reúnem muita
gente. Tanto os liderados por israelitas como por palestinianos dão a
conhecer a necessidade de o governo americano se empenhar numa campanha
de paz que apaziguaria aquela zona do Médio Oriente há tanto tempo
instável. O Presidente Clinton esforçou-se e não viu êxito. Sua mulher
Hillary, secretária de estado, em plena crise de Novembro 2012,
não pôde encontrar-se com a liderança da Palestina em Ramallah na
Cisjordânia nem com os representantes de Israel em Jerusalém e ficou a
aguardar no Cairo. Pouco tempo depois houve um cessar-fogo entre as
partes. Por quanto tempo?
Li tudo quanto me estava mais acessível e receio
que os movimentos de gente de boa vontade e todos os esforços que
diariamente fazem sejam sempre aniquilados. Que pena! Que gota de água
são os problemas da Instituição onde trabalho. Sempre se resolvem alguns
casos com sucesso. Tudo na vida é relativo.
Amanhã pensava jantar com a Mónica, é o dia de o
Zé vir tarde, mas como está doente, nem sei se vá. Como o Zé melhorou
sempre fui.
A
Mónica queria estar comigo para ter notícias do João. Percebi que não
comunicavam e que ela não o conseguia pôr de parte inteiramente. Não
deixou transparecer nada da sua vida afetiva e também não era suposto
que o fizesse. Vejo-a muito concentrada no seu trabalho. Será apenas uma
camuflagem? Parece que vai a Londres colaborar num projeto sobre a área
onde trabalha, e sem que eu pudesse esperar desafiou-me a ir no primeiro
fim de semana para vermos a grande exposição de pintura focando os
pintores ingleses do Século XVIII. Fiquei cheia de vontade de ir. Uma
lufada de ar fresco na minha vida que, por mais que eu tente, é sempre
polarizada por preocupações.
Seria apenas um fim de semana alargado. Como ela
tem um pequeno apartamento reservado, eu teria apenas de pagar a viagem.
Por estranho que pareça. minha relação com a
ex-mulher do meu primo é mais fácil do que com a minha filha Luísa. A
tensão psicológica que imana dela quando estamos juntas não nos deixa
ter uma relação descontraída. A Tia Valentina explicaria isso melhor. Eu
ainda não percebi a origem.
Passou uma semana e o trabalho na Instituição de
apoio a mães jovens aumentou. Sei que devo continuar porque é um
trabalho muito necessário e descobri que tenho aptidão para um diálogo
que parece desprendido, embora o não seja na realidade, antes transmite
afeto que é o que sinto por aquelas jovens. Estou a ser útil só que a
envolvência tem dificuldades. A Loti vai começar as aulas e o seu
maravilhoso bebé é como um neto emprestado que me apareceu. É uma
criança linda, não admira, pois a Loti tem uma beleza fora de comum e,
por isso, representa um perigo. Quando fui a casa da avó dela naquele
bairro carenciado de ruas de pedra soltas e caixotes de lixo derrubados,
pensei que o que estava a tentar fazer por ela e por outras, em
circunstâncias semelhantes, era como usar uma sombrinha de papel no meio
de um temporal. Sinto por vezes desânimo. Talvez por precisar de reagir
comuniquei ao Zé que ia a Londres passar o próximo fim de semana.
Extraordinariamente ele disse que se houvesse
lugar para ele também gostava de ir. Vamos então os três. Quando o Tiago
receber o e-mail vai ficar
perplexo. Ele sabe que o pai é um
alcoolic worker.
Por falta de tempo e de oportunidade não escrevo
há alguns dias. O apartamento disponível era mínimo mas coubemos os
três. O Zé esteve muito interessado no trabalho que a Mónica desenvolve
e foi com ela ao Laboratório. Aproveitei esse bocado da manhã para
visitar a Escola onde frequentei Belas Artes em solteira. Ainda estava
na receção a Mrs. Andersen que me fez grande festa. Através de mim tinha
vindo a Portugal e eu servi-lhe de guia. É uma encantadora pessoa que
envelhece em atividade e mostra bem, o resultado disso. Foram quatro
dias cheios de entusiasmo. O Zé, muito descontraído, o que é raro. Ele
precisava como eu de quebrar o ritmo das nossas vidas. Votámos bem
dispostos e com a cabeça arejada. Amanhã vou ver se há
mails da Tia Valentina.
Lá estava o último
mail com a data da nossa
chegada a Lisboa. Ela sabia da nossa ida a Londres e estava feliz por
saber que três pessoas que estimava estavam juntas. Só o li dias depois.
4º e-mail da Tia
Valentina
:
Espero que tenham chegado bem. O João ficou muito curioso com a tua
saída com a Mónica. Está cheio de curiosidade e espera, como eu,
notícias. Há por aqui muita atividade no meio onde os teus primos se
movimentam. É perverso haver tanta gente a boicotar, a difamar, a querer
tirar lucros de movimentos que só querem a paz. O Miguel foi convidado a
falar na próxima reunião. Portugal é visto aqui, entre vários grupos
tanto de israelitas como de palestinos, como um país de diálogo. Um país
que ultrapassou o contexto do colonialismo, uma longa ditadura e um
período difícil de integração na União Europeia.
O Miguel está a
receber informação via internet e consulta uma boa biblioteca em
Telavive. O João volta comigo e podes
estar tranquila. Percebi que mesmo em Israel há várias tendências. Não
só entre os grupos políticos. O povo, especialmente os idosos, tem
dificuldade em ver a sua área de solo reduzida, as fronteiras ameaçadas,
os extremistas palestinos a curta distância. Depois de tantos ataques
que sofreram é compreensível. Estes eleitores votam no partido que
julgam melhor defende-los do
inimigo palestino.
Os jovens, de
ambas as partes, muitos são universitários, gente viajada, alguns com
famílias onde o sangue das duas raças se cruzam, querem definitivamente
duas pátrias territoriais e acordos de não-agressão com a ajuda de
outras nações. A Europa apoia em princípio a criação de duas pátrias.
Sabe que o morticínio pode diminuir embora leve muitos anos para a
consolidação.
Aqui a herança
política e religiosa tem um peso surpreendente!
Receio que o
Miguel fique mais algum tempo e arranje compromissos afetivos e
políticos difíceis de abandonar. Sei que a vida em Portugal tem-se
agravado e que o desemprego é sempre explosivo em qualquer sociedade.
Ele está a trabalhar embora tenha um curto salário. Diz que, dadas as
circunstâncias lhe chega bem.
Os jovens que não
gostam muito de estudar começam a procurar a aprendizagem de ofícios e
estão convencidos que terão aceitação profissional e social. Já não há,
como anteriormente, uma barreira tão grande entre académicos e não
académicos. Parece-me bem! Lembro-me de uma viagem que fiz há muitos
anos a Oslo e encetei conversa com um companheiro de avião. Fiquei, na
altura, surpresa pela conversa informal mas muito civilizada do meu
parceiro. Afinal era padeiro. Na altura comparei com os padeiros que
conhecia em Portugal e constatei o enorme fosso civilizacional.
:
É
sempre bom ir tendo notícias da Tia Valentina. A excecional Tia
Valentina! Fala de vários assuntos, tudo lhe interessa. Também tenho
notícias para lhe dar. Habituei-me a escrever o que vou fazendo e
pensando, mesmo antes de ter descoberto o Livro da capa preta da Tia
Valentina já o fazia em escrita encriptada no computador. Ajuda a
organizar-me.
A Loti estava muito excitada e julguei que fosse
por ir começar a frequentar as aulas na própria instituição, mas havia
outra causa. A avó Januária recebera uma carta da filha, mãe da Loti,
que caiu como uma bomba. Nem sempre as bombas são devastadoras. Foi uma
surpresa. Ela escrevia do Brasil onde
estava há dois anos e casara com um pequeno empresário. O homem vivia
bem e queria vir a Portugal com a mulher para conhecer a família dela.
Era madeirense e a carta trazia mais informações.
Talvez esta carta pudesse dar esperança aquela
mãe tão nova e inexperiente, talvez o neto que nem sabiam que existia os
viesse a aproximar. Senti que a notícia também me envolvia.
Assim que me foi possível fui ao bairro onde a
avó de Loti vivia e aproveitei para levar a Loti e o bebé comigo. A
criança cada vez está mais engraçada e é linda, aliás como a mãe, com os
seus cabelos ondeados e loiros.
A senhora Januária deu-me a carta para a mão e
pediu que a lesse alto. Dizia assim: «Boa
mãe! Sei que não me podes perdoar, fui uma má filha e estou arrependida
de tanta asneira que fiz. Depois, quando aí voltar, conto como aqui
cheguei. Tive a sorte de ter sido acolhida numa igreja cristã. As
senhoras do acolhimento aos emigrantes ajudaram-me e arranjei o emprego
onde estou. Casei com um homem que é proprietário de dois minimercados e
que estava há alguns anos viúvo e sem filhos. Ele é madeirense e a
oportunidade de falar o português de Portugal muito nos aproximou.
Casámos há seis meses e estou muito feliz. Falo muito na mãe e filha que
abandonei quando andava desnorteada. Escrevam e digam tudo o que
se passa. A Loti não deve ter boas lembranças de mim, etc.» e
seguiam as despedidas e promessas de virem em breve. Sentia-me tão
aliviada, tão feliz como se conhecesse esta família há longa data. Como
se fosse uma família que fazia parte da minha.
Agora havia a
esperança de os ver funcionar. São estes factos que nos compensam do
trabalho nas ongs.
A minha filha Luísa vai esta semana fazer a
ecografia ao hospital onde o Zé trabalha. Estamos muito excitados.
A Mónica ficou muito mais próxima de nós depois
da estada em Londres e é uma rapariga cheia de força e sentido de humor.
Disse-me que gosta muito da Tia Valentina e que nunca se desligaria dela
apesar da separação com o João.
Foi bom ter recebido notícias do Tiago. O
e-mail que mandou era mais
dirigido ao Zé porque tinha a ver com firmas farmacêuticas e negócios
hospitalares. Nada relacionado com o curso que tirou. Atualmente um
curso superior fornece conhecimento e abre caminhos mas nem sempre
condiciona a vida dos licenciados.
O Tiago tornou a referir-se à companheira de
trabalho, a tal Carmo de origem terceirense. A avó dela reside em Angra
do Heroísmo e vai indagar sobre as ligações familiares connosco. Por
graça tratam-se por “primos”. Os portugueses vão tecendo a sua teia de
afetos e raízes como uma rede de sustentabilidade no centro de uma urbe
longínqua. Espero que o Tiago não se fixe por lá. Ele é um filho
dedicado e faz-nos muita falta.
Hoje, para
relaxar, vou ouvir à Gulbenkian um concerto. Tem havido muito
stress ! O Zé vai comigo...
Espero ter
notícias da Tia Valentina, pois há uns dias que não envia
mails.
O problema político parece insolúvel e receio
que a Tia Valentina volte desiludida. Os acordos de paz tardam em ser
assinados, mesmo se isso acontecer, sabemos que estão desde sempre
armadilhados e a ânsia de poder e o medo de ambos os lados criam
barragens.
Finalmente chegou o dia da ecografia: o Zé falou
eufórico do Hospital: “vamos ser avós de uma rapariga”. A Luísa,
radiante, diz que deve sempre haver uma mulher a encetar uma geração.
Será a nossa primeira neta.
Continuo a ir à Instituição das mães
adolescentes e agora com mais alegria esperando que outros casos se
equilibrem como provavelmente poderá acontecer com a Loti. Funcionando a
escola na instituição, as jovens mães cuidam do bebé e estudam. Têm
apoio psicológico, médico e jurídico pois o reconhecimento paternal é
muito importante. Muitas vezes conseguem colocar as suas alunas, quando
terminam o secundário, e já houve casos de algumas terem enveredado por
estudos universitários. Para as voluntárias como eu é uma grande
compensação poder ver o esforço compensado.
5º
e-mail da Tia Valentina
:
Já soube que vão ter uma neta. A
Luísa deve estar felicíssima, sempre disse aquilo que também sempre
achei - uma mulher para começar uma nova geração - mas eu falhei e só
arranjei dois machos que me dão muita preocupação. O Miguel está
completamente interessado no “Movimento” já referido e anda muito com
uma palestina, a Zora, bonita e muito inteligente. Ela esteve três anos
em Londres a estudar e receio que a ligação possa pô-lo à prova. A vida
dividida é sempre difícil de aguentar. Há sempre o que se ganha em
horizontes diferentes e o que se perde no campo familiar e dos amigos de
infância. O João acaba as férias e tem de regressar e assim os mails
irão acabar ou continuarei a mandar-tos quando chegar a Portugal.
Habituei-me a escrever o que penso e parece que comunicamos bem assim.
Como está a minha casa? Tens lá ido ver o correio? E a Adelina vai bem?
Penso muito nela, porque ajudou a criar-te depois da morte da minha
querida Sofia, porque é uma amiga.
Quando aí chegar
vou ter de me corresponder com as pessoas com quem fiz amizade aqui.
Quero muito manter estas ligações e ficarei melhor informada sobre o
Miguel que muito me preocupa com o seu espírito de missão. Ele é muito
parecido com o Pai. O Daniel tanto levou o seu empenhamento ao extremo
que acabou por morrer num acidente provocado por atos terroristas. É
difícil retroceder, abandonar e procurar uma vida longe, quando se está
aqui envolvido nestas causas. É como uma traição.
Sempre eduquei
os filhos com o princípio de que
devemos ser coerentes. Defender causas e mantermo-nos em terreno neutro
é cómodo mas é um egoísmo sem nome. Sofro hoje, e o Daniel sofreu com a
perda da sua vida, por defendermos princípios que não atingem nem
preocupam a maioria dos mortais.
Como achaste a
Mónica? Sempre gostei dela e sei que o João não a esquece com
facilidade. A diversidade num casal é difícil mas muito mais rica e
menos monótona certamente. É difícil dar certo. Para atingir essa
sabedoria atravessam-se alguns desertos e desfiladeiros. Querida Vera,
desculpa estas minhas tempestades de alma, mas a escrita é sempre mais
sincera que a palavra dita com o sujeito presente. O teu primo Miguel
foi muito cumprimentado no final da sua palestra. Fizeram muitas
perguntas sobre Portugal e elogiou-se o Serviço Nacional de Saúde e a
baixa taxa de mortalidade infantil. Também se referiu o significante
número de cientistas portugueses a trabalhar em projetos no estrangeiro.
Falou-se do nosso rico campo cultural e uma rapariga israelita recitou
em português um poema de Fernando Pessoa. Tinha estudado em Coimbra.
Se
o Miguel não estivesse aqui este vasto público não teria ouvido este
diálogo que se processou no final da sua intervenção. Como em clima de
guerra se mantêm estas reuniões é quase absurdo!
Em Outubro de 2012
vários grupos do “One Voice Movement” percorreram estados americanos,
antes das eleições presidenciais, para sensibilizar os americanos sobre
a fragilidade das políticas externas dos últimos anos em relação ao
problema israelo-palestino. Consulta a internet para perceberes melhor o
que aqui se passa. Infelizmente pensa-se que as guerras longe não nos
afetam, mas é um erro.
Convenci o meu
novo amigo, o Samuel, a visitar Portugal. Vamos promover sessões de
esclarecimento sobre este problema. Os jovens israelitas e palestinos
têm de se encontrar e consolidar esforços para futuros leaders políticos
moderados. Deves estar a pensar que virei ativista, mas custa-me ver
tanta boa vontade, tanta iniciativa afastada do grande poder.D
Mal sabia a Tia Valentina que eu estava quase a
acabar de ler o seu livrinho de capa preta! Só que fiquei com a certeza
de que a escrita do seu diário não era espontânea mas também refletida.
Ela sabia que poderia vir a ser lida e, assim, ficaria para a
posteridade e estava formatada nesse sentido. Pensando bem, não era
mulher para se expor demasiado perante os outros. Suspeitei isso desde o
início, por isso nunca senti grandes remorsos. Naturalmente teria
segredos que nunca revelaria.
Livro de
capa preta:
&
A vantagem de
escrever neste livro é desembaraçar-me de algumas franjas dos meus
problemas, das minhas dúvidas, e sentir uma certa consolidação do meu
ego que, às vezes, vacila. A fé católica transmitida por minha mãe é
como um arranhão que me vincou a alma. Todas as dúvidas, e são muitas,
acumuladas por ignorância e falta de desejo de me esclarecer,
preocupam-me agora que estou na curva final dos meus dias. Apesar da
consciência disso a marca que o arranhão fez é indelével. Ninguém ama o
que não conhece e contudo que afastada está a maioria dos católicos de
estudos profundos sobre a sua fé. A presença de Cristo em nós não é
gratuita. Temos de estar recetivos e atentos para perceber essa comunhão
que nos transmite a certeza de que, feitos à imagem de Deus, sentiremos
a Sua presença em nós.
Quando há alegria
de viver parece que o nosso corpo se revigora, quando há vontade de
indagar no campo do conhecimento, as repostas, mesmo nebulosas,
aparecem. Há uma espécie de mistério do qual não temos explicação, mas
se revela.
Precisei de
escrever isto para corresponder a um apelo que não sei de onde veio. Li
uma frase do sábio Gamaliel que diz: “se alguma coisa não vem de Deus
passa, se vem, nada pode prevalecer contra isso”
Como a presença de
Cristo na Terra foi uma contracultura é natural que o que observamos no
nosso mundo atual seja para nós uma contracultura. Isso nos desespera e
precisamos de tomar conhecimento de obras de bem para nos estimular a
enfrentar a nossa falta de esperança. Na origem obscura do pensamento há
um caos que se disciplina no processo da fala comum. A maioria vive de
conceitos, de trivialidades.
O mundo pagão
obedecia a deuses heterogéneos, simbolismos que exigiam preceitos,
submissões, sacrifícios. O próprio Abraão dispunha-se a sacrificar o
filho bem-amado. A civilização ocidental encontra exacerbado culto por
músicas troantes que estão em moda e obrigam a assistência a grande
desconforto. A evolução nem sempre é civilização.
Sempre
pensei que, finda a minha vida de obrigações, poderia estar disponível
para o que me pareça mais urgente, o que os outros não fazem e eu sei
que é preciso. Viúva com dois filhos homens independentes, a sobrinha
casada, só me restava ser útil. Que faz um velho fora disto? Gasta a
pensão com receio de surpresas e vai a médicos. Preciso de agradecer a
graça de estar viva, em plenas faculdades e a vontade de usar esse bem
para ajudar os outros, tanto pelo exemplo, sendo ativa, como no uso do
meu discernimento que vive da observação e da experiência. As pessoas
mais difíceis de ajudar são as muito próximas. Há pessoas que encontro e
gostaria de tornar a vê-las, deve ser o fenómeno da empatia que nunca me
pareceu bem explícito. Há certamente o fator da proximidade física, de
uma suspeita de cumplicidade de uma vontade de encontro com algo que
pode ser semelhança ou complementaridade. Assim escolhemos os amigos. A
lógica não está presente.
A Vera foi a filha
que não tive e me apareceu envolta em tragédia. Sua mãe, a minha querida
irmã Sofia, morreu prematuramente e o meu cunhado, o Álvaro, saiu de
cena para começar longe outro destino. Enviava dinheiro para os gastos
de Vera, e aparecia esporadicamente. Tornou-se um emigrante em Angola
sem gosto e vontade de voltar. Este facto deve ter marcado a Vera, ela
sentiu-se uma autêntica órfã e teve uma adolescência magoada que não foi
fácil nem para ela nem para mim.
Depois de passar a
adolescência, integrou-se na nossa vida e tudo que a afeta nos
interessa. Meus filhos são autênticos primos irmãos para ela. Quando
tiver um neto será meu autêntico bisneto.
Tive de escrever
isto porque houve tempos em que receei perdê-la e ficaria mais
angustiada pela ausência de Sofia. Talvez um dia, quando a velhice o
apanhar, o Álvaro regresse de África e queira consertar as pontas deste
pedaço da sua vida que negligenciou. A imagem da Sofia aparece-me no meu
inconsciente transformada numa personagem mítica, com aquele seu ar de
quem saiu de um livro escrito por um romântico e chego a admitir que
nunca foi suficientemente terrena. Aluna excecional de piano no
Conservatório, de uma beleza de camafeu grego, de muito poucas falas,
passou a meu lado como uma irmã, meu contraste. Quando partiu comecei a
apreciá-la melhor e a memória desse tempo perturba-me.
Há qualquer coisa
que sempre me escapa quando escrevo neste Livro de capa preta e o
indizível é a incontrolável liberdade do espírito humano que não se
deixa enclausurar.
&
Acabei de ler estas páginas e deu-se um fenómeno
raro em mim. Desatei a chorar. Sendo eu e minha mãe nestas linhas
visadas senti o abuso que estava a cometer. As desculpas que dera
anteriormente pareciam agora ridículas. Sempre as acabaria por ler
quando a Tia Valentina faltasse, dizia para mim ...
Fiquei com os olhos tão inchados que resolvi pôr
os óculos mais escuros que tinha e ir para a rua. Não podia continuar na
casa da Tia Valentina. Parecia que me auto expulsara. Porque não tivera
a sorte de apreciar a minha mãe, porque meu pai partiu e quase me
ignora?
Fui
ver o filme do Woody Allen: ”Para Roma com amor”; gozei tremendamente e
ri. Foi uma cura. Todos somos ridículos até por nos julgarmos a sério.
A mãe da Loti vem com o marido do Brasil
na próxima semana. A avó Januária proibiu a neta de lhe dizer na
carta de resposta que tinha um filho.
Acharam que seria uma surpresa.
O Zé anda a esconder-me qualquer coisa. Nunca
foi muito falador, mas agora entra mudo e sai calado. Devem ser assuntos
do serviço que o aborrecem. Não consegue partilhar as preocupações.
Faz-me falta a Tia Valentina, por
e-mail estas coisas diárias não se dizem. Há algum tempo que não
recebo notícias de Israel. Ela disse que iam para um pequena cidade mais
a sul perto de Gaza, onde havia um
meeting. Fico muito preocupada. Fora os meus filhos e marido são
eles a minha família. Também o assunto me apaixona e seria bom que em
todos os países houvesse associações ativas que promovessem a paz
naquela zona. Só a proliferação de ações em toda a Europa e na América
pode acelerar este processo de dois estados e uma paz construtiva.
Receio que ainda se tenha de passar por muita tragédia antes desse
desfecho. Aqui repito a ideia da Tia Valentina.
A Luísa anda vaidosa com a sua barriguinha. Já
mandou recuperar o berço que pertenceu a minha mãe e estava no sótão da
casa da Tia Valentina. Vou fazer-lhe a surpresa de o vestir de rosa
muito pálido. A vinda de um bebé numa família é a materialização da
esperança.
Via internet consegui muita informação de “One
Voice Movement” e percebo o entusiasmo de meus primos. Só numa
pequena cidade perto de Jerusalém realizou-se
em 2011 uma sessão onde estiveram presentes 350 pessoas. Poder levar
jovens, com vontade política, a liderar estas ações e conseguir que ajam
com moderação depois de tanta tragédia é um objetivo importante que os
leva a não desistir.
Continuo a achar que o Zé anda mais ausente que
o costume. Fala apenas de trivialidades. Detesto iniciar
interrogatórios. O tempo acaba sempre por dar respostas e, se não as dá,
é porque naturalmente é preferível assim. Ainda bem que estou tão
ocupada e, devo isso, à Tia Valentina. O meu professor de pintura passou
um pequeno filme que focava: rochas, peixes no fundo do mar, flores,
troncos de velhas árvores etc., e disse aos que se queixavam de não ter
inspiração e criatividade que bastava recriar o que existe e trazer para
a tela numa arrumação pessoal. Um dos alunos, finalista de Física,
acrescentou que os cientistas explicam a presença da geometria e da matemática na
natureza e caracterizam as leis físicas a que toda a matéria obedece. O
já existente pode ser redescoberto e aplicado. A arte também é saber
encontrar.
Entretanto numa
aula seguinte muitos surpreenderam o Mestre com obras bem conseguidas.
Também recriei numa tela raízes de árvores e tive a exclamação do Zé que
me surpreendeu: “Que mulher
versátil que tenho! Continua e organizo uma exposição com os teus
quadros e os dos teus colegas mais habilidosos. Temos uma sala no
hospital para esse fim que acabou de ter obras”.
Assim a vida corre com grandes alegrias,
pequenos e ternos acontecimentos, golpes de angústia e às vezes de
ansiedade. Os jornais têm títulos sensacionalistas que nem sempre
correspondem à realidade e mantêm no esquecimento uma infinidade de
acontecimentos que são a malha que sustenta a sociedade. E, ao escrever
isto, desejo que a Tia Valentina volte. Com ela há sempre matéria para
conversar e o seu humor nunca deixa que o assunto se torne pesado e
sério demais. Como ela diz: se nos levamos muito a sério corremos o
risco de virar palhaços!
Estou com bastante curiosidade de encontrar a
família da Loti que chega em breve da Baía. Que volta a sua vida irá
dar?
Já tinha tencionado fechar o computador, estava
a ouvir na rádio um arranjo novo de um tema
dos “Beatles”, quando o Zé entra em casa disparando a frase:
“Foste nomeada para organizar a
exposição de desenho e pintura no Salão Verde do hospital.” Não sei
se fiquei contente. Implicava escolhas, preferências e
rejeições...queria muito falar com a Adelina e voltei a casa da Tia
Valentina, o Livro da capa preta chamava-me.
Livro de
capa preta:
&
A vida anda tão acelerada para mim
como nos tempos que antecederam o meu casamento. Naquela época tinha
descido uma nuvem negra sobre nós. A minha mãe teve um AVC e faleceu
repentinamente, a Sofia estava a morrer acompanhada daquela execrável
criatura que viera há três meses para se ocupar dela. O Daniel, que
conheci em tempos num kibbutz em Israel e que planeara, assim que
voltasse em definitivo de Telavive, casar comigo, estava a chegar. Tinha
de deixar o hospital e tratar de muitas coisas para se instalar
definitivamente em Portugal. O meu pai, cabisbaixo, arrumava ou melhor,
deitava fora as coisas de sua mulher, parecia não querer enfrentar os
despojos. Eu tinha remorsos de ver Sofia agonizante e sentir-me de
perfeita saúde. Nunca me julguei gata borralheira e ia finalmente casar,
já entradota para a época. Talvez pensassem que eu nunca casaria, mas
apareceu o Daniel com quem namoriscara no passado em Israel e já não
havia tempo para esperas e eu queria muito vir a ter um filho. Nunca
pensei que o destino me proporcionasse vir a ter dois, com pouco
intervalo. Antes de Sofia morrer placidamente, como sempre vivera, a
criatura que nem pronuncio o nome fez uma declaração mentirosa e
insultuosa e numa semana tudo se precipitou. Escrevi isto porque é
apenas um desabafo.
Agora, o sentido
de urgência é outro, a minha vida está no fim, embora os velhos andem a
durar muito! As gavetas dos meus papéis precisam de uma ordem: Que
dificuldade em deitar fora! Deveria fazer uma escolha, mas que escolha?
O que para nós é importante pode ser para os outros considerado lixo.
Tentar arquivar o que me parece de interesse é uma utopia! Ando sempre a
adiar, que valor tem o meu espólio afetivo senão para os mais próximos?
Talvez na velhice de meus filhos e da Vera estes papéis, relatos de
viagens, alguma poesia envergonhada, possam ajudar a urdir as lianas
invisíveis que fazem de uma família uma Família. Este é um pensamento de
uma mulher idosa de uma era onde se prezavam as memórias.
Hoje,
a vida é um contra relógio. Foge-se de refletir: o trabalho absorvente e
muitas vezes com um horário exagerado, as idas a cinemas, concertos,
encontros sociais, mesmo aqueles cheios de vacuidade, consomem os dias.
Quem tem tempo e interesse por se debruçar pela vida de outros por maior
interesse que possa ter?! Os papéis dos mortos são um enguiço!
Isto que escrevi
são páginas da minha vida, mas há muitas mais que não escrevi. O Daniel
foi um companheiro fabuloso que a morte levou cedo demais, era
inteligente, interveniente nos assuntos que considerava primordiais,
atento aos movimentos de arte. Não houve tempo para perder a sua aura...
Neste momento
saltei muitos anos atrás e vejo-me num colégio inglês, onde fiz os
primeiros anos de estudos e lembro os concursos desportivos (rounders)
entre os dois clubes que em tudo mantinham grande competitividade, os
almoços onde às vezes atirava discretamente o puré de maçã para debaixo
da mesa por não tolerar o borrego com o doce. Hoje aprecio exatamente o
contrário, o doce na comida condimentada com sal.
Visitei mais tarde
aquela quinta, onde havia os campos de jogos, que me pareciam enormes e
tinham encolhido, perdido a sua vastidão. Só as escadinhas de cimento
onde tirávamos as fotografias continuavam um pilar firme.
Relembro as
colegas e o grupinho das preferidas que foi desaparecendo, gradualmente
umas e outras, sem deixar rasto senão na minha memória. As zangas e
segredos infantis que tanto nos marcavam na altura esvaíram-se como se
tratasse de um passado desconhecido. Aqueles amores não correspondidos,
verdadeiramente só imaginados.
Quando escrevo
estes fragmentos do passado e mesmo os do meu quotidiano, vejo o efémero
da nossa passagem pela vida e pergunto aos enfatuados, aos gananciosos,
aos ansiosos de protagonismo, se não se teriam excedido.
Fui ver um ballet
à Gulbenkian e mais uma vez agradeci a grande possibilidade que o
público amante deste tipo de arte tem de poder usufruir de um espetáculo
tão gratificante. Depois lembrei-me da opinião de um rapper de que não
recordo o nome e que declarou que ficaria furioso se alguma vez um
membro da sua família fosse a um concerto clássico. É esta diversidade
que dá colorido ao mundo!
Amanhã temos o
encontro das viúvas ativas. Grupo que ajudei a formar e que tem uma
reunião uma vez por mês. O tema do encontro é: “ócio e negócio”.
Preparei uma pequena colaboração porque não gostamos de preencher a
tarde só com um assunto. A Elisa traz a viola como se combinou e teremos
um intervalo musical e o chá que por decisão coletiva só pode ter três
variedades. Aproveito para dizer, apenas em desabafo, que as mulheres
têm mais facilidade em envelhecer que os homens, Há exceções!
Quando o João se
separou, começou a vir aqui almoçar quase todos os dias. Foi a única
vantagem da separação, fiquei mais acompanhada! Tenho dificuldade em
falar sobre a Mónica. Nunca chamo o assunto. Quando os nossos filhos
crescem também crescem barreiras que preferimos não transpor. Para
conservar uma harmonia e conservá-los desejando a nossa companhia,
precisamos de uma dose grande de bom senso. Agora estou a ser posta à
prova. Ele julga que não precisa do meu apoio e, na verdade, que ajuda
damos relativamente aos sentimentos? Assim falamos das notícias
arrasadoras dos jornais e ambos sabemos que é um campo preocupante mas
neutro, a nossa atuação na crise económica é ter de pagar mais impostos.
Também sabemos que
a evolução da sociedade é um caminhar de crises e que, se queremos um
mundo mais justo, teremos que enfrentar fraturas sociais até reganhar um
equilíbrio. Precisamos de
acreditar que o futuro será mais justo, mais igualitário porque é o que
vem acontecendo desde o passado. Só comparando épocas históricas podemos
avaliar a dificuldade em prosseguir. A pena de morte foi extinta nas
sociedades evoluídas e as nações, ainda com muitas lacunas, providenciam
para que os mais carenciados tenham subsídios e ajudas no campo da saúde
e educação. Eu comparo com o tempo de meus pais, e vejo uma evolução
significativa. Precisei de escrever isto para me animar. Tento dizer
isto aos mais novos, mas é difícil que entendam! A idade tem poucos
benefícios, mas a experiência devia ser aproveitada. Não ouso dizer em
público o muito do que aprendi com a vida. Julgo ridículo não se querer
aproveitar o trabalho das pessoas depois dos sessenta anos e não dar
oportunidade remunerada a quem sabe transmitir essa experiência. Muitos
reformados tentam enveredar por ocupações novas, remuneradas ou não,
porque a inação acelera a morte.
O voluntariado já
rejeita propostas devido ao grande número de gente capaz, sem ocupação
que o procura. Isto é um drama.
&
A Tia Valentina passava para o seu Livro de capa
preta muito do que pensava e não tinha a quem dizer. Era uma alma
aberta, bem-intencionada. Sentia-me um pouco culpada por nunca lhe ter
dado a atenção que merecia. Poucas pessoas têm a sorte de ter como
educadora a mulher que eu tive e não percebi o alcance da minha sorte.
Só agora que ela estava a uma distância enorme, no Médio Oriente, me foi
dado abusar da sua confiança e neste livro reconhecer a minha pequenez.
O assunto da acompanhante de minha mãe nos últimos tempos chegou até mim
como uma bala disparada do escuro.
Sinto-me contente com a vinda de uma neta e a
possível melhoria de vida da Loti, mas preocupo-me com o Zé que me
parece encobrir qualquer problema e, estranhamente, não ouso enfrentá-lo
preferindo continuar em dúvida. Quando a Tia Valentina chegar talvez ela
seja a chave para este problema. O Zé sempre conversou bem com ela e têm
uma boa relação de afeto.
Na organização das jovens mães entraram mais
duas grávidas com quinze anos. Uma angolana residente desde a infância
em Portugal. A outra parece que foi abusada pelo padrasto e tem atitudes
intempestivas e difíceis de aceitar naquela casa onde todos nos
esforçamos para aliviar os traumas que vêm do exterior. A psiquiatra
conversa com elas duas vezes por semana.
Há vários dias que não escrevo. O tempo voa com
as ocupações a que aderi e ao muito que se vai acumulando. A família da
Loti chegou do Brasil. Ela continua nas
aulas, por isso vou tendo notícias. A sua mãe - diz ela - parece uma
senhora e ficou doida com o neto. Comprou um enxoval e está a tentar
através da Câmara arranjar uma casa decente embora pagando ela uma
renda. As coisas estão a andar muito rápidas porque ela e marido só
podem estar em Portugal dez dias e querem que fique tudo tratado. Ainda
não os vi.
Finalmente resolvi, sem querer pensar demasiado
na forma de abordar o assunto, pedir ao Zé que me explicasse se tinha
alguma preocupação que pudesse partilhar comigo. Inexplicavelmente ele
anuiu e disse que não o tinha feito antes para não me aborrecer. O Luís
Andrade, colega que estava acima dele na hierarquia hospitalar, estava
com uma doença incurável.
Percebi o problema. Não podia ficar descansada
porque conhecia o médico, sabia das pequenas rivalidades com o Zé e o
caso para além de dramático, trazia-lhe problemas de consciência. Agora
vou esperar que a Tia Valentina chegue e poderei deixar sair a angústia
que sinto pela fatalidade em si e pelo choque terrível que está a
ocasionar no Zé.
Vou
ter de organizar a exposição no hospital e gostava que o Luís Andrade
ainda pudesse assistir. Sei que a mulher pinta muito bem e tencionava
convidá-la para expor na Sala Verde. De um dia para o outro a vida das
pessoas pode mudar e tudo aquilo que girava à sua volta se modifica.
A Adelina, num dos nossos encontros em casa da
Tia Valentina, disse-me que não sabia como devia abordar o assunto, mas
andava muito cansada, queria ir gozar o seu resto de vida para a casinha
perto de Montachique. Calculei o problema que esta decisão acartava. Não
valia a pena preocupar-me já. A Adelina esperaria até a Tia Valentina
arranjar uma solução. Mas fico a pensar seriamente porque naquela idade
arranjar uma substituição não é tarefa fácil.
Estou a viver o meu dia-a-dia com emoção e
percebo agora perfeitamente a contribuição que a Tia Valentina me deu
quando andava dada à inércia e com problemas depressivos. Vou tentar
encontrar alguém para substituir a Adelina e penso que nesta altura
devia ter uma empregada, sem grandes compromissos, para poder, se
necessário, ficar interna. Sei que ela vai barafustar, mas vai ser
preciso.
O João mandou um
mail em
que se refere ao trabalho da Mónica. Em Telavive há um núcleo de
cientistas a fazer pesquisas semelhantes às do grupo da Mónica. Ele,
sabendo do meu contacto recente com ela, procura-me como um elo de
aproximação. É o tal modo dele, um pouco tímido, e que tanto pode
conquistar como afastar as mulheres. Eu gosto tanto dele que só o quero
ver feliz, mas será felicidade insistir numa relação que fraquejou ou
esperar que outra afeição o estimule a seguir novo caminho? Escrevo isto
mas já estou a mandar um mail
para a Mónica. É uma atitude romântica e fora de moda, ou os sentimentos
através dos tempos são vítimas de conservadorismo?
O Luís Andrade sai hoje do hospital e entra de
baixa. Frase ridícula que escrevi. Ele e todos no hospital sabem que não
voltará. Calculo o trauma que o Zé está a sofrer e como vai reagir num
futuro próximo. Habituei-me a viver com um homem que interioriza os seus
sofrimentos e angústias e, na sua quase hiperatividade, as consome.
Felizmente o meu quotidiano está preenchido e agora que a Guilhermina, a
nossa competente empregada doméstica, está de férias, preciso de agir e
não de remoer problemas. Tenho de arranjar tempo para ir a casa da Tia
Valentina, quero acabar a leitura do Livro da capa preta. É um
imperativo e quase uma droga que tomou conta de mim.
É difícil fechar o Livro da capa preta porque me
sinto culpada. É uma devassa na vida de alguém que estimo, prende-me e
gera a sensação de apanhar um passado que me fugiu. Sei que minha mãe,
mulher dócil, suave, dedicada à música, que tinha estudado no
Conservatório e se ocupava a dar lições, era o oposto da Tia Valentina;
de meu pai tenho pouquíssimas referências porque a sua saída de cena o
ofuscou completamente. Veio a Portugal esporadicamente e desde que casei
nunca mais o vi. Receei sempre fazer-lhe perguntas. Tenho algumas
fotografias dele fazendo parte de uma caçada no Huambo. Pagou os meus
estudos e até eu casar mandou uma mesada para as minhas despesas. Nunca
me apeteceu perguntar porque me vinha ver tão espaçadamente... Esse
facto foi uma pedra no sapato com a qual sempre vivi.
Talvez por isso percebi a expectativa que a Loti
tinha ao aguardar pela chegada da mãe. Agora, aqui registo o abalo que
senti no dia que fui a casa da avó da Loti, e conheci a família. A mãe é
uma mulher linda e morena. Nada tem a ver com a Loti. Parece bem
instalada na vida e desejosa de compensar a mãe, a filha e o neto pelo
abandono prolongado a que os votou. O marido não estava. Por estranho
que pareça a Elvira, é esse o seu nome, chamou-me de parte e tentou
justificar-se. Afastei a conversa rapidamente porque o meu papel de
voluntária na Instituição não deve admitir entrar na vida íntima das
famílias. No entanto fiquei a saber que o pai de Loti era um polaco que
a Elvira encontrou num campo de férias e que pouco tempo depois partiu
de Portugal.
A explicação do loirinho bebé.
Estou a ficar um pouco envolvida nesta família e
gostava de não pensar tanto no assunto. Será que a Loti nunca procurou
dar a notícia da sua gravidez ao rapaz com quem teve a relação? Ou teria
ele fugido a responsabilidades? Parece-me que certo comportamento
feminino é desadequado, ilibando os homens de compromissos. Se soubessem
da existência dos filhos talvez se humanizassem, procurassem assumir o
seu papel. Resolvi ter uma conversa a
nível particular com a orientadora da Instituição das mães adolescentes.
Penso que as pessoas têm direito a conhecer os seus antecedentes para
criar laços fortes de parentesco e diversidade. Ignorar quem as
abandonou ou não teve conhecimento da situação na devida altura é às
vezes um egoísmo para com as crianças que nasceram. Sei que não posso
falar ao Zé sobre isto. Ele é demasiado pragmático para entender. Talvez
possa fazê-lo com a Tia Valentina.
As notícias dos jornais são alarmantes sobre o
Médio Oriente. Que a Tia Valentina regresse e venham com ela os dois
filhos. Os ódios extremaram-se a um ponto
que a boa vontade do exterior não acalma as posições de ambos os
lados. Há assim a continuação do êxodo dos mais novos com estudos
académicos e conhecimento de outras culturas, a única solução é
emigrarem. O mundo de hoje é um cocktail de muitos medos, valentias e
outros sabores. A cereja é um humanismo que a Europa, embora
convalescente, ainda representa.
Há dias que não vou a casa da Tia Valentina e os
seus pensamentos debitados no Livro de capa preta começam a fazer-me
falta. A minha intromissão ajuda-me a conhecê-la e isso implica
apreciá-la melhor. Escrevo isto para ganhar o seu perdão. Antes, o
perdão a mim própria. Contudo parece que ando à procura de qualquer
coisa que nunca encontro.
Livro da
capa preta:
&
Ando a rasgar papeis. Levo um tempo infinito porque leio quase tudo
antes de resolver destruir. As minhas memórias ou as dos meus mais
chegados são tão importantes para mim que o trabalho de deitar fora é
angustiante. Tenho agora na mão um texto da minha irmã Sofia que o
escreveu dois meses antes de morrer e vou transcrevê-lo. Ela sabia que
ia morrer.
Carta de Sofia
“Foi
bom ter nascido nesta família. Fui feliz enquanto foi possível ser
feliz. Nossos pais deviam interrogar-se por ter duas filhas tão
diferentes. Eles sempre diziam que a Valentina era a ação, a força, a
audácia. Eu sei que sou o oposto e encontrei o meu equilíbrio no estudo
da música, procurando ouvir para lá dos sons a alma de quem a escreveu.
Consegui transmitir este gosto que às vezes é um êxtase a alguns alunos
e tenho dois, excecionais, que já têm carreiras internacionais. Esse
facto é para mim uma compensação. Eu serei sempre um pássaro de gaiola.
Encontrei no Álvaro um recetor e parceiro das minhas falhas, e um pai
maravilhoso para a pequena Vera. Espero que ela não herde as minhas
fragilidades, nem as debilidades físicas. Para se ser feliz é preciso
espírito de luta, autoestima, intrepidez. Atributos que não tenho.
Felizmente que tenho fé num Deus que compensará os frágeis e nos conhece
profundamente. A vida de Vera é a minha preocupação, agora que sei que
vou partir. Como reagirá o Álvaro? É um enigma para mim, ele também tem
as suas fraquezas. Vou-me embora com a dúvida”.
---
É escusado dizer o
que me aconteceu quando acabei a leitura da carta aqui reproduzida. Há
muito tempo que não a lia e parece que fugia dela ... --!
Deveria
já ter entregado à Vera esta carta.
Julgava conhecer a Sofia, mas ninguém conhece o outro!
Para mim, a minha
irmã Sofia era um ser indefinível porque parecia planar acima de todos.
Estava muita vez ausente no meio das nossas conversas, entretinha-se com
o piano, as leituras de livros essencialmente espirituais, às vezes
cantarolava pequenos trechos de ópera e gostava de isolamento, mesmo
depois de casar, gostava de ver o marido partir para caçadas para poder
governar o seu tempo. Antes de a Vera nascer estava planeada a ida deles
para Angola mas a doença
acabou com os planos.
Sofia
era, ao contrário de mim, uma mulher muito bela. O seu mundo era outro.
Tinha um marido que a idolatrava e uma doença que a ia desgastando aos
poucos. Conservou a beleza até ao fim embora estivesse magra e pálida,
quando partiu. Parecia aceitar um futuro em que acreditava.
Sei
que estas memórias terão um dia de ficar nas mãos de Vera. São suas de
pleno direito. Quando sua filha Luísa as ler será já uma herança de
alguém que não conheceu com intimidade e, depois, a seu tempo, ao lixo.
Só avaliando o específico de cada época podemos perceber a nossa
pequenez. O mundo atual é, como os ingleses dizem: “rubish”. Só os
investigadores de certos ramos dão valor a documentos escritos.
A nossa mãe também
escrevia notas num diário que o pai destruiu quando ela morreu. Pensava
que assim fugia da tristeza e apagava os passos sacudindo a poeira das
memórias. Cada pessoa por mais que se interesse pelos outros é sempre
uma ilha. Estou ainda, com esta idade, a semear e a colher experiências
e reconheço que isso é o que me mantem viva e ativa. Sou, como ela
disse, o seu contrário. Não deixarei aquela saudade um pouco etérea de
Sofia. Ajudei a criar a Vera e a procurar entendê-la e é a única forma
de mostrar que sempre a admirei. Depois da sua morte a minha vida mudou
com o abalo dessa terrível época.
O Daniel no
“assento etéreo...”[2]
ficará surpreendido com o pouco que se caminhou para o entendimento
entre Israel e a Palestina. Procuro esclarecer-me mas, nem as leitura e
as interpretações dos livros sagrados, nem a observação dos
acontecimentos políticos numa zona a que fatalmente estou ligada me dão
a dimensão do ódio gerado e acumulado. Meu pai era judeu e fugiu da
Polónia, meu marido tinha antecedentes palestinianos do lado da mãe e
pai judeu, muito crítico de ações de retaliação de ambos os lados. Como
poderei alhear-me deste caos no Médio Oriente? Talvez alguém leia, antes
de rasgar, estes desabafos e quando ler sobre as tragédias que se passam
no mundo entendam que todos devemos agir. Há sempre forma de intervir,
até pela escrita. Eu sou uma velha mulher e acho que devo agir.
Agora assino uma
revista francesa que tem artigos sobre várias religiões e fico cada vez
mais perplexa por haver uma vasta multidão cujos credos a leva
a fanatismos sem nome. Os
navegadores antigos diziam: navegar é preciso, viver não é preciso;
Fernando Pessoa dizia: viver não é necessário, o que é necessário é
criar, eu direi: educar, instruir é preciso. Um homem interrogativo é
sempre preferível a um homem convicto. Há no entanto convicções que dão
aprumo a uma personalidade. Soube que recentemente o
Álvaro fala
esporadicamente com a Vera e não faço ideia da reação dela. As relações
humanas estão envoltas em muitas teias! Fiquei desconfortável quando
soube disso...&
Cada página que leio da Tia Valentina é uma
lição para mim que tanta vez me sentia dividida. Sou atualmente uma
mulher ativa e a ela devo o ter saído de uma depressão. A outra face é
sentir que o que tenho de fazer não se encaixa nas horas do dia. O
voluntariado na Instituição das mães adolescentes, a organização da
exposição no hospital onde o Zé trabalha, as aulas de pintura a que
dificilmente falto, os deveres da minha casa, o nunca negligenciar os
encontros com a Luísa, que anda eufórica - ela é de extremos - as noites
em que se proporciona pelo skype falar com o Tiago e alguns encontros de amigos, preenchem-me
e, por vezes, extenuam-me. Nesses momentos de desânimo lembro-me da vida
corajosa da Tia Valentina e reajo. Teria ela alguma inveja de minha mãe?
Afinal ela só casou a seguir a minha mãe morrer e, nunca ouvi falar da
sua vida amorosa. Quando tinha idade para me contarem alguma coisa sobre
o sucedido já minha avó também tinha partido. Os homens da família não
falam de assuntos íntimos de família.
Agora o meu pai fala uma vez por mês e pergunta
muito pelos meus filhos, seus netos. que não conhece. Nunca lhe
perguntei se tornou a casar ou tem uma companheira. A nossa comunicação
nunca pode ser afetiva, há tanta mágoa dos dois lados! Não fala em
voltar e agora dei o endereço
do Tiago, que ele pediu, talvez haja uma aproximação. Quando contei isto
por e-mail à Tia Valentina ela
não comentou e desviou a conversa para um assunto trivial. Deve achá-lo
cobarde por me ter deixado tão pequena ao seu cuidado ... que sei eu
desta minha família tão desgarrada...?
Tento apanhar os fios de uma meada que é enleada
ou que a enlearam para me
esconderem algum mistério que não posso compreender. Tenho medo de
abordar a velha Adelina com perguntas sobre o passado e estragar uma
relação de confiança. Afinal ela é a pessoa que conhece melhor a família
e, com o seu sentido de humor, tem sempre transformado as minhas
perguntas em brincadeiras que me tiram a força para insistir. Penso que
adorava a minha mãe e por coincidência tem a mesma idade da Tia
Valentina e às vezes festejam os anos juntas. Devia talvez empenhar-me
apenas no presente, que me dá luta, e deixar o passado que me obceca?
Julgo que a leitura do Livro da capa preta é responsável pelo atual
desejo de averiguar o passado.
Para a semana vou ultimar os contactos com os
pintores que vão expor na Sala Verde do hospital. Alguns já fizeram o
preçário, outros estão atrasados e começo a preocupar-me. No dia da
inauguração, a amiga da Tia Valentina, que toca viola, acedeu a estar
presente e a dar-nos uma boa colaboração musical.
Livro da capa preta:
&
Quando era nova escrevia um Diário
que guardei ciosamente num pequeno cofre e trazia a chavinha no fio ao
peito. Um dia tirei a chave e guardei-a no forro da minha gaveta das
bijutarias. Na horrível época em que morreu a mãe, a Sofia piorou e
entrou aquela estranha eis noviça para nossa casa, a chave desapareceu.
Não tenho provas de quem a tirou do esconderijo mas pelo comportamento
de Laura nos últimos tempos que antecederam a morte de Sofia, sou levada
a suspeitar que seria a única pessoa que poderia fazer este ato tão
maldoso e inconsequente. Estávamos todos muito fragilizados. O pai
precisava de alguém que se ocupasse inteiramente de Sofia, eu andava
exausta e o marido de Sofia, o Álvaro, parecia uma alma penada. Alguém
falou ao pai de uma rapariga que tinha desistido de continuar no
convento e precisava urgentemente de se empregar. Na altura, parecia a
pessoa adequada. Nos últimos três meses da vida de Sofia, a Laura
conseguiu de uma forma sub-reptícia e maldosa, introduzir-se e
destabilizar a família e até as empregadas. Só a nossa querida Adelina
sempre desconfiou de algumas manobras.
Não mais escreverei sobre Laura porque a sua reação na semana da
morte de Sofia marcou a vida de todos nós.
Muitos anos depois
deixei o Diário e comecei, neste livro, a registar acontecimentos,
pensamentos, opiniões. È talvez uma forma de disciplinar as
minhas atitudes e de me sentir
menos só. O que aqui anoto nem sempre é cronológico, são ideias que me
assaltam que preciso registar. Sei que no tempo curto que me sobra às
vezes falho as minhas confidências ao Livro de capa preta mas a vida
diária ocupa-me com minúcias. Se só me ocupasse em escrever neste livro
seria mau sinal, não estaria a viver.
Observar a Vera a
ocupar-se e a reagir à sua tendência para a depressão é um sossego.
Também se vai habituando a ter o Tiago em Portobelo e vai investigando
algumas das suas origens na Ilha
Terceira. Geralmente, só para lá dos sessenta anos resolvemos indagar
sobre os antepassados, mas ela, devido ao filho ter encontrado uma
colega portuguesa, a Carmo, neta de terceirenses, começa a querer
indagar. Hoje, com as novas tecnologias, o trabalho é mais fácil e eu
também consegui alguns dados extraordinários, próprios de um romance
policial. Parece que o apelido que os bisavôs da Carmo usam deixou de
ser usado na nossa família devido às lutas entre miguelistas e liberais.
Um antepassado terceirense esteve no continente e tomou parte nas lutas
pelo lado de D. Miguel. Quando a batalha acabou, alguns dos oficiais
mais próximos do príncipe, para escapar a perseguições, mudaram de terra
e de apelido. Este facto atrapalhou as investigações, mas acabaram por
concluir que ambos derivavam da mesma família. Há cada vez mais
literatura baseada em biografias mais ou menos credíveis, mais ou menos
romanceadas. Quando há familiares vivos e de boa memória alguns desses
livros são considerados execráveis. O que fica para a história são
factos misturados com lendas. A história de Inês de Castro e D. Pedro
tem um lado tenebroso e um lado romântico e sobre esse amor infeliz
tem-se vindo a construir músicas, bailados, peças de teatro. A vida da
maioria das pessoas não interessa a ninguém, mas a curiosidade movimenta
editoras e livrarias. Afinal, a um nível diferente, as pessoas são um
pouco cuscas!
&
Finalmente o dia da exposição chegou. Estava uma
pilha de nervos e tinha de me controlar. A sala e os acessos à Sala
Verde encheram-se de amigos, familiares e pessoal do hospital. Nunca
pensei que fosse tamanho o sucesso em número de visitantes. Apareceu um
único especialista que, eventualmente, com sorte, poderia vir a fazer
uma crítica num jornal. Sei que há uma política quanto ao que vale a
pena ser criticado ou anulado. Esse sectarismo existe em todo o mundo
das artes e afasta valores da ribalta por os condenar ao silêncio.
Felizmente, esta exposição não tem ambições!
A minha filha Luísa apareceu com um grupo de
amigos e parecia eufórica. O Zé esgueirava-se entre os cumprimentos e
parecia querer afirmar-se como um estrangeiro no seu hospital. As amigas
da Tia Valentina vieram à inauguração. Infelizmente, o médico que tinha
adoecido recentemente não apareceu. A enfermeira chefe, Anabela,
registava na sua máquina fotográfica os quadros e o vaivém dos
visitantes. Assim estava garantido o acontecimento para enviar ao Tiago.
Foram vendidos quatro quadros e, entre eles, um que pintei. Confesso que
fiquei surpreendida e também com pena de me separar dele. Um livro tem
réplicas que ficam para o autor, um quadro é único. Só naquela ocasião
percebi a diferença entre os criativos. As músicas, os livros podem não
deixar saudades, os quadros, as esculturas, para só falar destas formas
de arte, são peças únicas. No final fomos todos comer umas tapas. A
família estava um pouco eufórica, exceto o Zé que parecia tristonho.
Percebi que a ausência do Luís Andrade o perturbava.
Tenho andado a remoer algumas frases que li no
Livro de capa preta. Sinto que há acontecimentos que nunca me contaram,
que há mistérios que não devo indagar, que meu pai fugiu por qualquer
motivo. Só a Adelina me pode um dia esclarecer e não devia deixar passar
muito mais tempo. Não quero enfrentar este problema com a Tia Valentina.
Se ela quisesse falar com mais nitidez sobre o passado, já o tinha
feito. O essencial é não a magoar, mas começo a andar inquieta. Sei que
minha avó morreu repentinamente poucos dias antes de minha mãe. Agora
sei pelo que li no Livro que havia uma Laura que esteve pouco tempo e
foi contratada para ajudar a tratar da minha mãe e parece que teve um
comportamento inadequado ou se portou mal. O que fez? Porque só agora
soube através do livro da sua existência, eu tinha quase seis anos! Não
me lembro dela. Onde me levaram para eu não me lembrar nem da morte da
avó, nem da mãe, nem da tal Laura?
Faz
muita falta não ter uma boa amiga de infância a quem pudesse
confidenciar isto tudo. As minhas raras amigas têm famílias alargadas
com muitos velhos e muitas crianças. Eu tenho uma pequena família,
muitos ausentes no estrangeiro. Às vezes sinto-me no deserto de Atacama!
Os meus primos fazem-me falta e ando sempre
inquieta por notícias. Nem sempre eles podem comunicar e as notícias
sobre o Médio Oriente são aterradoras. Quem dera que voltem e que
comecem os jantares à quinta-feira na casa da Tia Valentina. Nos últimos
tempos a família encontrava-se e era muito bom. A Luísa vinha com o
marido, o Diogo, que sempre trazia histórias frescas e anedotas
políticas atuais que tornavam os jantares muito divertidos. O Tiago
ainda não tinha partido para Portobelo e eu e o Zé contribuíamos com o
queijo açoriano. À volta de uma mesa cria-se um ambiente inesquecível,
são essas memórias de família que eu quero preservar, preciso que
voltem. Os anos da escola interna, da morte dos avós, da falta de
notícias de meu pai e depois, mais tarde, da morte do Tio Daniel,
toldaram muitos anos da minha vida. Sei que tive uma adolescência
difícil e que muitos destes problemas deviam ter afligido a Tia
Valentina. Agora estou esperando uma neta e vou dar mais atenção às
aulas de pintura. A Loti está muito melhor e empenha-se a estudar com
entusiasmo. Parece que a sua vida deu uma volta. Ela foi abordada pela
psicóloga na perspetiva de vir a contactar o pai do seu filho. Estes
problemas humanos interessam-me e já tenho os outros dois casos que
julgo difíceis de estabilizar.
Espero, sempre que retomo a leitura do Livro de
capa preta, por algum dado que me esclareça dúvidas que persistem no meu
espírito, mas a par desta curiosidade há o medo de qualquer coisa de
indefinido que pode abalar o conceito que tenho sobre a minha família. A
ida de meu pai para Angola logo depois da morte de minha mãe nunca me
foi explicada. Antes da Tia Valentina voltar quero enfrentar a Adelina,
contudo receio aborrecê-la, logo agora que ela vai ter de dizer que vai
de vez para a terra.
A mãe da Loti e o marido partiram e deixaram
várias promessas. A avó já vai para a semana viver num andar de melhores
condições e nessa altura querem que eu as visite. A Loti estuda com
empenho e parece que andam a fazer diligências para contactarem o pai da
criança. A psicóloga e a diretora da Instituição estão a indagar. Eu sou
apenas uma voluntária, mas sigo o caso com interesse. Às vezes sinto que
ainda ando pelo mundo dos livros de fadas que lia ou que me liam em
criança. Desejo que tudo caminhe para um desfecho feliz.
Infelizmente acabámos de receber a notícia da
morte do Luís Trindade. A sua leucemia foi rápida. Amanhã vamos ao
funeral e sei que o Zé está duplamente triste. Vivia um pouco em
competição com ele e admirava-o. Para um médico, estas doenças sem
resposta pela medicina são um estigma. Não escreverei sem receber um
mail da Tia Valentina. O espetáculo fúnebre é sempre deprimente
porque nos lembra a nossa curta passagem, porque vamos ter saudades de
quem partiu, porque me faz lembrar a frase de uma senhora inglesa que
conheci, a Eve, que dizia que combinou com o marido que não iriam ter
filhos porque não era justo sujeitá-los à lei da morte. Na altura achei
que a razão era outra, talvez medo do parto, talvez grande egoísmo.
Quando assisto a um funeral vem-me, mesmo sem que queira, esta frase.
Felizmente o Tiago avisou que pelas sete da
tarde estaria no skype vai ser
bom ouvir as notícias e vê-lo.
Os portugueses da classe média gostam da família
aos cachos, como dizia o avô, as classes do povo carenciado tinham a
coragem de emigrar para poderem melhorar as condições de vida. Agora a
classe média também emigra e os velhos vivem cada vez mais sós. Tudo tem
de ser reestruturado. Lares melhorados, mais universidades para a
terceira idade, escolas de arte para ocupar os tempos livres e
visitadoras bem preparadas para cuidar de doentes acamados ou presos a
suas casas. O voluntariado é hoje uma grande e generosa ajuda.
Há duas gerações os filhos tomavam conta dos
velhos da sua família, fossem agradáveis e úteis ou maldispostos, era
assim. Bem diz a Tia Valentina que em pouco tempo uma nova ordem
civilizacional tomou conta da Europa e há uma escala de valores
diferente. Com apartamentos pequenos os novos são absorvidos pelo
horário de trabalho e múltiplas obrigações e os velhos ficam nos Lares.
O dinamismo acelerou-se, especialmente com as
novas formas de comunicação. Comunicação não quer dizer companhia e um
monitor não tem expressão, é a frieza e o contraste de luzes, contudo é
o mundo ao nosso alcance. Vive-se muito num intercambio onde a Net é o
rondpoint.
6º
e-mail da Tia Valentina
:
Já soube da morte do colega do Zé.
Que fatalidade! Nunca aceitamos a morte de alguém que está na força da
vida e desaparece em pouco tempo. Será que o Zé vai de facto ocupar o
seu lugar? Aqui onde estou fala-se pouco na morte porque ela vive a
nosso lado. Ainda bem que há algumas boas notícias e estou contente de
saber da reviravolta no temperamento da Luísa. Quando se tem um objetivo
e se falha há um sentimento de culpa que se instala e sentimo-nos como
um barco a adornar.
Aqui há entre a
gente nova um certo desconforto com a Primavera Árabe. O aproveitamento
de diferentes grupos que infiltrando-se procuram o poder ou apenas
destabilizar. Os judeus mais velhos que tentam falar-me quando apareço
nas reuniões onde há uma assistência de diferentes grupos etários,
transmitem algumas fontes do seu orgulho. Israel, único estado criado
depois da II Guerra Mundial (por decreto), protagonizou uma inequívoca
história de sucesso que as antigas colónias africanas não conseguiram
quando se tornaram independentes. Os árabes nunca perdoam este facto! O
fundamental seria tanto os palestinianos como os israelitas admitirem
uma separação entre o laico e o religioso, mas a religião faz parte da
educação destes jovens e, infelizmente, a tendência a criar mártires. O
que é estranho é que depois do Holocausto esperava-se que muitos
emigrantes judeus que padeceram de crimes se acolhessem ao novo estado
de Israel, mas tal não aconteceu. Os que viveram em países árabes, como
no Iraque, e tinham um estatuto privilegiado, devido à sua habilidade no
mundo dos negócios e na cultura, quando se refugiaram em Israel não
foram bem aceites. Há no ser humano muita mesquinhez e desconfiança e
acho que os defeitos que os portugueses têm, especialmente a pequena
inveja, não se comparam aos caminhos de exclusão com outros povos. Somos
solidários nas alturas difíceis e orgulho-me de ser portuguesa.
Acho que está na
altura de regressarmos e iremos adquirir os nossos bilhetes em breve.
Infelizmente o Miguel ainda não está preparado para dar por finda a sua
missão. Como já te disse anteriormente receio que ele para sinta que tem
de contribuir para a paz de qualquer forma, a morte do pai e estas
preocupações messiânicas afastam-no de uma vinda a Portugal. É a minha
preocupação.
Querida Vera sei
que vou regressar carregada de angústias por ver os poucos progressos
para uma convivência entre israelitas e palestinianos. Os grupos que
desejam a paz e a partilha deste espaço onde poderiam conviver
fraternamente, não vão, nos anos próximos, conhecer progressos
significativos. Porque será que a vida humana é tão curta e se procura o
litígio e não a cedência de parte a parte? Eu, que estou no fim da vida
não me conformo com a falta de senso. O espírito de vingança nunca traz
a paz individual e coletiva. Há sempre culpas de parte a parte e,
contudo há gente de grande nível intelectual e de generosidade que
procura a convivência e a concretização dos dois Estados: a Palestina e
Israel.
Quando chegar aí
haverá alguns problemas a enfrentar, mas nada que não se possa resolver.
Em breve organizo um bom almoço de domingo para nos juntarmos. Tia Val.
Este é o nome que
aqui me deram e eu gosto.
:
O tempo parece um cavalo com o freio nos dentes
e há quem diga que isso é felicidade! Quando se sofre o tempo
arrasta-se. A Tia Val, como agora a vamos tratar, tem forçosamente de
voltar diferente porque viveu momentos de grande intensidade num canto
do globo onde a história se faz de intolerância. O Zé continua agitado e
pouco comunicativo. Felizmente tomou a seu cargo sair com o Manacés, o
nosso retriever, e assim
expande os humores. O Tiago mandou um
site sobre Portobelo e também
mostrou o apartamento onde vive. Parece estar a integrar-se e, não sei
se gosto. Pensamos que os filhos são um pouco nossa pertença e que lhes
podemos fazer alguma falta mas está errado. Afinal ele é meu filho e do
Zé e a sua herança genética condiciona o seu comportamento. Será bom que
não tenha herdado as minhas tendências depressivas. Assumir a sua
independência é bom e desejável, mas bem no íntimo gostaria que tivesse
muitas saudades nossas.
Finalmente a Loti comunicou com o pai do filho.
Ainda não falei com a sua orientadora e espero que me contem que reação
houve da parte do rapaz. Tento ser discreta apesar de estar
verdadeiramente interessada. Entretanto o problema da mãe adolescente
que tinha engravidado do padrasto está a dar sérios problemas à
Instituição porque ele faz ameaças. Há dias alguém deitou uma pequena
bomba incendiária para o pátio, que não teve repercussões, mas a pequena
anda muito nervosa e não querem dar-lhe sedativos porque está a
amamentar o bebé.
Continuo a ler os livros que adquiri sobre o
problema Israelo-árabe e percebo o comportamento dos judeus e dos
palestinianos que nos países ocidentais tiveram sucesso e se sentem
ocidentalizados. Viver em democracia pode ser muito difícil mas não é
trágico! Viver em permanente guerrilha é um drama.
As aulas de pintura durante este mês obedecem a
um tema - Solidão - diz o professor que o trabalho deve ser feito em
casa e os alunos não podem comunicar o que estão a fazer. No
atelier vão ser projetados
obras de vários pintores com o comentário do professor. É uma variante
que desperta interesse e estou muito contente por ter retomado as aulas
já há algum tempo, devo esta decisão à Tia Valentina. Fomos ao cinema e
o Zé está mais descontraído.
Vou ter de planear o dia para conversar com a
Adelina sobre o passado e apesar desta decisão estou a pensar como hei
de abordar o problema. Sei que vai esquivar-se mas quero mesmo perceber
o que se passou naqueles dias terríveis em que morreu a avó, depois a
mãe e em que meu pai foi para fora. O mistério já dura há tempo demais.
O Livro da capa preta não explica mas deixa dúvidas e, antes da chegada
da Tia Valentina e do João, tenho de perceber o que aconteceu. O avô era
um cofre-forte e já morreu há vários anos e a Tia Valentina desvia
qualquer assunto sobre essa época.
--- interrompi aqui porque o pai me mandou um
e-mail que me surpreendeu ---
“Espero que estejas bem assim como toda a família. Que notícias tens de
teus primos? Aquilo no Médio Oriente está muito feio. Vou a Lisboa no
fim do mês que vem para tratar de assuntos ligados à minha empresa. Vou
querer estar convosco.”
Assinou “Teu pai que lastima este
afastamento”.
O encontro com a Adelina era agora compulsivo.
Quero perceber que mistério envolveu a saída brusca de meu pai. Há em
mim uma urgência que me distrai permanentemente. No outro dia deixei os
óculos de ver Televisão dentro do frigorífico. Poisei-os quando arrumava
as compras do supermercado. Deixei o telemóvel no cabeleireiro e, como
não há duas sem três, deixei no
voice mail do telefone fixo uma recomendação longa para a Luísa que
foi parar à minha médica Luísa Paradella. Tenho de me acalmar e resolver
progredir na minha intenção. Assim, liguei para a Adelina que estava em
grandes limpezas na casa da Tia Valentina. Disse apenas que ia lá no
próximo sábado de manhã e que precisava combinar umas coisas com ela. Se
falasse em conversa, esquivava-se.
A vida parece uma caixa de surpresas, umas
agradáveis e outras que não sei como as vou receber. O não poder
partilhar aflige-me. O Zé acha ótimo o meu pai aparecer, mas não está
por dentro dos conflitos passados na família. Ele é filho único e os
pais viveram no Brasil e morreram num acidente de avião há vários anos.
Só tem primos que raramente vê. Assim que resolva a conversa com a
Adelina, vou começar a esboçar o quadro sobre “a solidão”. Tenho algumas
ideias e vai ser difícil a escolha.
Livro da
capa preta:
&
Sempre que me lembro da nossa casa
e da vida organizada e calma que se levava parece que estou a folhear um
livro cuja capa já não tem título nem data. A vida depois de meus pais e
de Sofia morrerem deu uma volta total. Felizmente viajei com o Daniel
pela Europa e guardo as melhores recordações da ida à Itália.
A nossa estada em
Florença foi inolvidável. Chamam-na o museu a céu aberto e precisámos de
uma semana para ficar a conhecer um pouco mais que a correria turística
nos oferece. Foi numa das pontes que passam sobre o Arno que Daniel me
fez a mais bonita confissão de amor e que nunca posso esquecer. Depois
fomos ao Pallazo Vecchio na Plaza dela Signoria, às Galerias Uffizi e,
como era sempre obrigatório para o Daniel, visitámos os vários mercados.
Ainda guardo um mapa em cabedal que ele me ofereceu no mercado San
Lorenzo. Não posso esquecer a Pensione onde estivemos e que era muito
curiosa. A sala tinha a parede cheia de relógios e todos davam as horas.
Havia um empregado responsável pelo seu funcionamento. As mesas de
pequeno-almoço, todas cobertas de toalhas bordeaux, as empregadas
andavam vestidas à moda florentina. Daniel não era homem para saltitar
de monumento em monumento, dizia que não tinha alma de gafanhoto e
quando saímos de Florença ele registava num caderninho o que mais o
surpreendia. Não havia Ipad nem telemóveis, só máquina fotográfica e
parecia-nos suficiente. Ele gostava de rever as suas viagens e guardei o
caderninho na esperança de que um dia meus filhos pudessem conhecer
melhor o maravilhoso pai que perderam tão cedo.
À
medida que o tempo passa e quando começo a pensar no que devo deixar
para meus filhos e para a Vera mais me apercebo do valor relativo que
cada geração atribui aos seus valores, às suas vivências, à importância
das memórias.
Para mim, o
problema de Israel e da possibilidade de os palestinianos terem a sua
pátria é muito importante, mas para a Vera e especialmente para o Tiago
a viver uma vida nova em Portobelo, não tem o mesmo significado. A
Luisinha tem a sua escala de interesses e ser mãe e manter o seu emprego
é agora o seu objetivo. Não sei se deva destruir este livro onde anoto
algumas vivências, pensamentos, considerações, confidências...nada terá
verdadeiro valor quando partir e pode entristecer quem os ler e levantar
o problema de quando deitar fora. Como lastimo as pessoas que por este
mundo fora se põem tantas vezes nos bicos dos pés, julgando-se senhores
da verdade e arautos de façanhas. Cada vez mais aprecio as pessoas
genuínas que constroem as suas vidas com espírito de partilha e se
devotam ao trabalho com interesse de bem cumprir. Felizmente que
trabalhei mais de vinte anos num arquivo histórico e que isso me fez
compreender a evolução e a exiguidade do tempo.
No meu pequeno
grupo de amigas viúvas ativas encontro gente que tem interesse pela
cultura e, felizmente, sentido de humor. Divertimo-nos bastante e quando
estivemos em Guimarães (neste ano, capital da cultura) constatámos que é
uma cidade, falando do Centro Histórico, que representa a verdadeira
dimensão de Portugal. Nada é imperial ou monumental como noutros países
da Europa. Ali senti a marca da nossa portugalidade e vi num domingo
muitos jovens casais, acompanhados de seus filhos, compenetrados na sua
fé, na belíssima Igreja de S. Francisco,.
Quando
saí da igreja comprei um jornal e lá vinha a xicanagem do costume de
invejas políticas, digo antes, tribais. O nosso jornalismo, fora
honrosas exceções, é de um nível muito baixo. Alguns jornalistas
propalam as suas opiniões pessoais e dão preferência às notícias
negativas convidam intervenientes que repetem até à exaustão suas
opiniões muitas vezes apenas partidárias e que nada têm a ver para a
solução dos problemas que se foram acumulando. Os compradores de jornais
vão-se desinteressando. Penso muitas vezes nos adeptos de jogos
cerebrais como o “bridge” e o “xadrez”, para só falar nestes dois, que
se alienam mas, ao menos, põem o raciocínio à prova e afastam-se de
muita canga acessória do lixo do mundo.
Terei certamente
de esclarecer alguns factos do passado e nunca acho altura de o fazer.
Agora o Álvaro vai-se aproximando da família que abandonou...e sinto uma
certa curiosidade no comportamento da Vera mas, mexer no passado, pode
ser perigoso. Cada pessoa reage diferentemente aos choques psicológicos!
Visitei as duas
amigas do tempo de escola que se amarraram ao passado e vivem
enclausuradas em casa saindo só para irem a médicos e fazer exames. Não
estão verdadeiramente doentes, mas velhas por dentro. Custa-me imenso o
diálogo porque nunca aceitaram ter uma velhice ativa e quem sou eu para
as aconselhar?! Sinto, quando me afasto, que não sei como tornar a
visitá-las, mas seria injusto não o fazer. Parece-me que não terei a
sorte de ser avó, meus filhos tardam em resolver as suas vidas. É certo
que a criança que a Luisinha vai ter será como neta. É bom. A vinda de
um bebé é um acontecimento fabuloso!
&
Voltei da casa da Tia Valentina e venho
dececionada. A Adelina sentou-se na sala comigo, pegou numa almofada do
sofá afagou-a, e parecia uma múmia. Ela é a pessoa que eu mais estimo
porque me deu muito mimo e a Tia era menos ternurenta. Contudo, depois
de lhe ter dito que sabia que alguma coisa de muito grave se teria
passado para haver a coincidência de a avó ter morrido oito dias antes
de minha mãe e o meu pai ter partido logo a seguir e se manter tanto
tempo afastado... Ela apenas disse: “Pergunta à Tia... se o pai vem de
Angola pergunta-lhe, eu nada vi diretamente e só ouvi dizer...coisas que
não podiam ter acontecido...não quero falar mais... desculpa...”
Despedimo-nos.
Quando cheguei a casa tive uma reação estúpida
ou primitiva ou as duas coisas. Porque seria que a Adelina se portava
como um cofre-forte? Nem uma nesga deixou! Que época estranha foram os
últimos dias de minha Mãe? Teria ela conhecimento do que se passava à
sua volta? Com a maturidade que fui adquirindo sei que se podem gerar
conflitos entre reduzidos grupos de pessoas que se encontram dependentes
entre si. Os atritos podem avolumar-se e as causas podem ser motivos sem
grande valor.
Havia
de facto alguns dados que eu sabia: a minha avó faleceu quase
repentinamente, uma semana depois a minha mãe morreu, o avô entrou numa
espécie de paranoia e destruiu tudo o que pertencia à mulher, poucos
dias depois do funeral da minha mãe o meu pai partiu para Angola e eu
fiquei aos cuidados da Tia Valentina e da Adelina. A tal Laura que
acompanhava a minha mãe saiu depois de deixar um mau ambiente e nem a
Adelina se quer a ela referir, nem a Tia Valentina alguma vez me falou
dela. Porque será que depois de andar a ler o Livro da capa preta
escrito pela Tia eu começo a indagar-me? A única razão lógica é querer
perceber porque o meu pai me abandonou logo a seguir a estas tragédias,
embora providenciasse monetariamente com as despesas para a minha
manutenção e viesse algumas vezes a Portugal. Havia dois factos que
contribuíram para reclamar a minha curiosidade. Ter lido o livro e
começar a receber e-mails de
meu pai. Escrevendo liberto-me de tensões.
Agora espero que mais uma semana passe. Aqueles
tempos recuados parecem postados à minha frente como uma muralha.
O Tiago quer saber muita coisa sobre os
antepassados terceirenses e já não tenho a quem perguntar. Documentos
escritos numa família são essenciais, mas o meu avô, com aquela postura
de tudo fazer desaparecer quando a avó morreu deve ter destruído o
“tesouro” da avó Raquel. Aquela malinha de cabedal castanho onde
guardava “as sementinhas da minha família” dizendo que tinham todos de
saber o que continha: Acho que a forma de o avô expressar o desgosto foi
intempestiva demais.
O pai do bebé da Loti nunca soube que ela tinha
ficado grávida e foi com a família para o Luxemburgo. Ele explicou que
tinha telefonado várias vezes e que nunca conseguiu falar até que
desistiu. Este procedimento feminino de desculpabilizar não é único e
sabemos que faz parte do comportamento de um grupo de mulheres. Assumir
por inteiro o que aconteceu. É talvez um misto de orgulho, de se
castigar por ter deixado que ocorresse. O rapaz vem de férias a Portugal
e quer conhecer o filho. O bebé está lindo e olha o mundo com aqueles
enormes olhos azuis iniciando a vida sem se aperceber do drama que foi o
seu aparecimento. Vou ao aeroporto esperar a Tia Valentina e o João, mas
antes vou dedicar o fim de semana a acabar a leitura do Livro.
Livro da
capa preta:
&
Como resolvi ir ter com os meus filhos vou talvez pôr um ponto final
nestes relatos que me têm ajudado
a conhecer-me. Quando leio excertos fico perplexa porque, muitas vezes,
a vida corre como um rio que vai desaguar noutro rio ou no mar, e não
damos o devido valor ao memorando da nossa vida. O cumprir tarefas
necessárias, mas sem substrato digno de serem lembradas, ocupa a maior
parte do tempo de muitas pessoas e há, no fim da vida, a sensação de
termos iniciado uma corrida programada sem que tivéssemos podido alterar
os trajetos. Por isso respeitamos as pessoas que, sacrificando e
selecionando, às vezes negligenciando obrigações, seguem um rumo que as
leva a construir um objetivo que acharam primordial. A heroicidade de
cumprir um quotidiano banal não dá notoriedade mas pode ser a base e a
estrutura de uma sociedade.
Seria um gosto
assistir à vinda de netos. Seria bom ter algum parecido com o Daniel.
Ele era um homem de causas e não viveu o suficiente para deixar uma
memória nos filhos. Gostaria de saber que o Miguel herdou a sua força
combativa e também o drama existencial. Eu, como mãe gostava de o ver em
Portugal, num emprego estável, casado e com filhos. As mães nunca gostam
de ter filhos ou filhas heróis. As mães sabem que viver no fio da
navalha nunca é bom, mas também sabem que devem respeitar os ideais dos
filhos. As mães inteligentes sabem que o excesso de prudência e o
conformismo também é uma forma de morte antecipada. Às vezes fazer um
tapete de Arraiolos, uma renda de filet matemático, uma camisola de
torcidos é um bom antídoto para os males da alma. Tenho a sorte de ter
algumas amigas que, para além de alguns trabalhos manuais, procuram ler
George Steiner, António Damásio, Fernando Pessoa e todo o compadrio
heteronímico e muitos dos atuais nossos escritores que honram as letras
portuguesas. Por experiência pessoal sei que ler as obras é sempre muito
mais compensador que o encontro pessoal com as sumidades. Os atores num
palco saem do teatro e são personagens banais que se cruzam com o
quotidiano de todos nós. Quando assisto a sessões de autores dedicando
seus livros a uma assistência penso sempre no efémero do ato passado uns
trinta anos, às vezes apenas uma semana!
Como Piaf tinha
razão ao cantar Rien de Rien. Grito de um surrealismo que mais tarde só
havia que lamber as feridas. Feridas que ficam sempre depois de um
Movimento feito de impulsos onde outra expressão de arte rompe. A arte
não tem medo do escândalo! Será? Sobre isto havia muito a escrever, mas
sem confronto ficam os monólogos como “dobrada
fria”.
Ludwig
Wittgenstein, filósofo de origem vienense e nacionalizado inglês,
professor de lógica matemática, dizia que só publicam livros os que são
demasiado fracos ou vaidosos. De facto escreveu aforismos na sua obra
“Tractatus”, nunca ensaios ou textos longos. É uma figura controversa e
preciso ler alguma coisa sobre ele. Deixo aqui a referência para não me
esquecer. As duas amigas com quem tinha a possibilidade de confrontar
estas ideias já morreram...a solidão tem muitas componentes...
Recebi um cartão
com uma frase enigmática e assinado por uma Madre Superiora de um
convento. Dizia apenas: “Agradecia que, quando tiver disponibilidade,
possa vir falar comigo. É um assunto delicado que se passou há vários
anos e fui informada que me podia ajudar a resolve-lo. Depois assinava
Madre Maria do Espírito Santo. Nunca conheci ninguém deste convento e
não vou ter tempo agora de lhe responder. Tenho suficientes preocupações
e empreendi este projeto de me deslocar para uma zona que sempre me
atraiu mas onde memórias boas e más se misturam e me destabilizam. Não
devo procurar mais nada sobre o passado e só no presente quero viver.
Quem
sabe se o que escrevo hoje é a última página deste livro?!
&
Vi partir a Tia Valentina e nunca pensei que
depois da leitura do Livro de capa preta ela se me revelasse outra
pessoa. Conheci-a melhor e agora há uma espécie de autopunição por ter
abusado da sua confiança. Tendo a entrada livre na sua casa e na sua
intimidade, abusei e embora a possa admirar e amar melhor há o perigo de
lhe ter roubado a alma.
Afinal, aprendi pelos factos que aconteceram desde que nasci que a nossa
relação com os outros é como o admirar a frescura do manjerico. Se
abusamos e o palpamos com as mãos para envolvermo-nos no olfato, ele
estiola e morre. Cada vez estou mais longe de entender os “meus”
porquês, mesmo a Tia Valentina revelando-se pela escrita esconde o que
eu queria que revelasse. A Adelina disse: “pergunta à tia ou ao teu
pai”. Como vou abordá-los sem criar ruturas difíceis de superar?
O pai do bebé da Loti vem proximamente. Aguardo
o encontro como esperasse que a Branca de Neve despertasse com o beijo
do príncipe. Todas as mães adolescentes que foram recolhidas pela
Instituição têm histórias mais ou menos trágicas. As que tiveram
famílias que as acolheram não precisam da Instituição. O problema da
injustiça no mundo gerou milhões de livros, abriu e fechou portas a
religiosos, agnósticos e ateus. O mundo confronta-se diariamente com
acontecimentos que nos deixam perplexos e só os pequenos gestos de afeto
são recebidos como um lenitivo suave mas não suficiente. Quando escrevo
estas frases fico assustada porque não quero voltar ao pessimismo e à
depressão. Tento pôr na balança o que há de bom, perto de mim e em todo
o mundo e sei que desejamos todos um paraíso inalcançável e idílico.
Sabemos que no sofrimento às vezes se encontra o inatingível e o
sublime. O homem redime-se da sua precária e inexplicável condição.
Aprendi a pensar com a Tia Valentina, mas nunca lhe poderei explicar a
herança que me tem vindo a deixar. Os exemplos de vida são bens que têm
um certo virtuosismo mas não se exibem como os bens materiais.
O Zé não aceitou o lugar do Luís Andrade.
A tia Valentina terá que deixar de se defender
das minhas interrogações já que a Adelina fechou de vez a porta às
minhas perguntas. Agora vêm aí tempos que se avizinham complicados. O
nascimento do meu primeiro neto, a chegada de meu pai com o seu mundo
nebuloso, o enfrentar uma Tia que preciso interrogar e que traz as
novidades da sua estada em Israel. Felizmente as notícias do Tiago são
tranquilas ou, quem sabe, desejam transparecer tranquilas...quando tudo
se acalmar talvez possa ir com o Zé a Portobelo.
7º e-mail
da Tia Valentina
:
Devemos chegar na
2ª feira pela 15h da tarde. Não se incomodem a ir esperar-nos. Vamos
tomar um táxi no aeroporto. A última reunião do “One Voice Movement” foi
conduzida por um jovem palestiniano e havia uma audiência mista. A
maioria palestina mas também muitos israelitas não só da classe etária
do palestrante. Há uma grande curiosidade da assistência numa altura em
que a crise se agudizou. O orador, no final da sessão, chamou para o seu
lado um amigo israelita que só disse: “ Não quero que a minha sobrinha
de dois anos venha a enfrentar esta luta fratricida que dura há tantos
anos. Depois calou-se emocionado e as palmas vigorosas partiram de toda
a assistência. Imagina o que senti...as lágrimas corriam-me e não as
tentei disfarçar, também chorava pelo Daniel.
Lembrei-me do
incidente em que foi apanhado. Um carro das forças defensivas israelitas
chocou com uma camioneta que trazia trabalhadores palestinianos e houve
uma explosão. Ele passava num carro e ao desviar-se capotou. Esta
explosão e as consequências foi o início da Primeira Intifada em
dezembro de 1987. Não sei porque te conto isto! Viver numa área
explosiva é difícil e vejo com apreensão a permanência do Miguel aqui.
Espero encontrar-me em breve com todos e já recebi e-mails do meu
pequeno grupo cultural para não faltar ao jantar do Natal.
:
A Tia Valentina chegou com o João e eu fui com o
Zé esperá-los. Ela emagreceu bastante e as suas olheiras estavam mais
cavadas. Não sei o que senti. Uma apreensão, uma vontade de a abraçar e
esconder as minhas lágrimas no côncavo do seu pescoço e poder estar
assim longo tempo sem nada dizer nem desejar que ela falasse. Nada disso
aconteceu. As nossas demonstrações exteriores andam sempre camufladas.
Levámos os dois a casa e conversámos um pouco na
salinha da televisão da Tia. Ainda fiz graça sobre o diminutivo afetivo
dado pelo David à Tia... passaríamos a chamá-la Val... se não nos
refugiássemos no humor a vida era mais difícil. O Zé fingiu que a Tia
andava a encobrir um caso amoroso deixado em Israel e cheguei a desejar
no meio de tantos disparates que pudesse ter algum sentido. Talvez essa
nova Tia Val aliviasse tantas preocupações. Gostava mesmo de a ver feliz
no tempo final da sua vida. Eu queria libertar-me do abuso de ter lido o
Livro da capa preta. Ficou combinado que a Tia e o João viriam no
próximo domingo almoçar a nossa casa e a Adelina, que esteve sempre
presente, ofereceu-se para dar uma ajuda. A família dela é a nossa.
Entretanto recebi outro
e-mail do pai. Vem passar o
Natal. A Luisinha está com a barriguinha muito redonda e a Adelina bem
avisou: “Eu disse que só podia ser
menina, mas com as ecografias estraga-se os saberes do povo...”
Agora a vida acelerou-se e não visitei esta semana a Instituição das
mães adolescentes. Soube pela diretora que a Loti está a fazer muitos
progressos nos estudos e, pelas notas que teve neste período, deve
passar de ano. O rapaz, pai do bebé, também chega no Natal do
Luxemburgo. A Rita, a que teve o bebé presumivelmente do padrasto teve
uma grave crise. Fizeram uma analisa e uma prova do ADN. Afinal a
criança não é filha do padrasto.
Nem sei se convide o pai para ficar em nossa
casa. O Zé acha que tem de ser e que é normal. Eu não consigo sentir
obrigações afetivas. Que segredos guardaria a minha mãe quando morreu?
Teria apenas morrido exausta pela doença mas em paz? Se ao menos a Tia
Valentina falasse abertamente sobre aqueles últimos tempos em casa de
meus avós... Apesar de o presente e futuro próximos estarem cheios de
acontecimentos não deixo de recordar algumas linhas enigmáticas que li
no Livro da capa preta.
Passaram-se mais alguns dias e enchi-me de
coragem e vou insistir para que o meu pai não vá para o hotel. No
passado ia sempre para um hotel.
A
tia Valentina esteve no domingo passado a almoçar connosco e a Luisinha
e o meu genro também vieram. O João disse que tinha um programa e não
veio. A Tia contou que ia ter um encontro com uma madre superiora num
convento e que não sabia de que se tratava. Reparei que a Adelina fazia
uma careta quando ouviu isto. Estava a colocar a travessa no carrinho de
rodas onde nos íamos servir. Ao ver a expressão da Adelina, dei por mim
a interrogar-me .... Parecia que tanto eu como a Adelina reagíamos com
algum constrangimento mas a Tia falou com normalidade. Naturalmente ando
a reparar no que me parece e não no que é.
A
Guilhermina já volta de férias no início da semana e vai-me ajudar a
preparar o quarto de hóspedes que está atafulhado de coisas que o Tiago
deixou antes de partir para a América. Quero que o meu pai se sinta
cómodo e não lastime não ter ido para o hotel. Estou tensa e por isso
voltei a ter dores nas costas. Desatei a apagar aquela torrente de
mails que pessoas pouco
ocupadas me mandam. Muitos são maravilhosos, outros, nada interessam,
prefiro um bate-papo ao telefone e não tenho tempo para aguentar a
avalanche. É uma nova forma de estar na vida e bem faz a Tia Valentina
que pediu a todos que lhe enviavam quilos de
e-mails que só o façam para
comunicar o que não possa ser via telefone e telemóvel. Ela diz que tem
uma curta esperança de vida e tem outros objetivos. Algumas pessoas
acham que ela está fora de prazo!
Acho que a Adelina anda um pouco esquiva. A
Luisinha retomou o trabalho porque a gravidez normalizou-se e anda
bem-disposta, ainda não a ouvi falar do nome que pensa dar à criança. Eu
sei bem o nome que gostaria mas nunca o revelarei. A viúva do Luís
Andrade tem dedicado muito tempo livre à pintura e há quem a trate pela
Paula Rego II. As figuras que desenha são talvez símbolos de
alucinações, sonhos, são marcadamente configurações de um mundo de
pesadelos. Eu, que prefiro pintar formas suaves, não aprecio, mas admiro
a força inata que elas representam. Tudo que aqui escrevo é, sem eu
querer, uma evasão às minhas preocupações. Como vai ser o encontro com o
meu pai depois de tantos anos sem vir a Portugal? Iremos manter uma
conversa de trivialidades ou vamos conseguir entrar na intimidade de
cada um? Se a Adelina tivesse aberto uma nesga do passado eu saberia
orientar-me, assim parece que vou receber o Álvaro Figueiredo cujo
retrato a preto e branco está desde sempre em cima da cómoda do meu
quarto e já veio da casa da Tia Valentina. É nessa postura que o lembro
sempre.
Não consigo dedicar-me à minha vida diária com a
naturalidade que ela exige porque ando enrolada com tantas perguntas por
responder, tantas tarefas que não me deixam despegar das dúvidas que se
vão acumulando na minha imaginação. Terá a minha mãe percebido que o meu
pai não estaria preparado para me criar? Será ele um cobarde? Só a Tia
Valentina pode realmente esclarecer-me. Porque não lhe pergunto
diretamente, perentoriamente sem admitir evasivas? Acho que talvez tenha
herdado de meu pai uma certa cobardia. Só em ocasiões extremas nos
conhecemos um pouco e, se é desagradável, depressa afastamos os
fantasmas. Agora ainda tenho de me preparar para enfrentar a Rita, a
rapariga que acusava o padrasto de ser o pai do seu filho. Nem todos os
casos correm como o da Loti.
Passaram alguns dias e não tenho tido
oportunidade para escrever o meu Diário que começou por uma necessidade
e já é um hábito.
Hoje, ao sair da Instituição, feliz por saber
que a Loti está no bom caminho e encantada com o seu radioso bebé, fui
abordada por um homem que me pediu para o ouvir pois era relacionado com
a Instituição. Dirigimo-nos para um pequeno Largo ajardinado onde há
alguns bancos e um quiosque que vende jornais e revistas.
Apresentou-se como sendo Arnaldo Freitas, o
padrasto de Rita. Vendo-me hesitante, acalmou-me dizendo:
“Preciso explicar a alguém da Instituição antes de falar com a Diretora.
Sei que teve uma boa influência no caso de outra pequena que convive com
a Rita. Já sabem que a Rita foi industriada pelo pai para engendrar a
história malévola e que me culpava da sua gravidez. Preciso explicar o
que está por detrás deste plano. O rapaz que engravidou a Rita é um
jovem, filho de uma família de importância social e rico. Estão a dar
mensalmente uma verba mas exigem que ela vá viver com a mãe ou o pai.
Não os querem na Instituição. O pai de Rita, uma pessoa conhecida por
seu mau caráter e que muito fez sofrer a minha mulher (mãe da Rita), fez
o seu esquema para poder vir a ficar com a criança em sua casa e
administrar o dinheiro.”
Nesta altura, percebendo a complicada tramoia e
não vendo como pudesse
ajudar tentei levantar-me para mostrar que em nada resolveria o assunto.
Mas o Sr. Arnaldo, muito emocionado, pediu que ouvisse o resto.
“Ele, o Ernesto,
conseguiu convencer a filha a dizer que eu, seu padrasto, era
responsável pela sua gravidez, e a Rita estava também a vingar-se em sua
mãe e por isso colaborou com o pai. A minha mulher mostrou alguma
dificuldade em aceitar o problema da gravidez da filha. Note bem que lhe
tinha sido diagnosticado um cancro na mama e começara a tratar-se no
IPO. Foi uma altura difícil. Houve um dia em que a psicóloga percebendo
que a Rita estava perante uma tramoia organizada pelo pai conseguiu que
ela recebesse a mãe. Falaram e aclarou-se o caso: o pai queria a filha e
o neto em sua casa para poder governar, a seu modo, aquela verba e
afastá-la da mãe por ser casada comigo, o pretenso violador da filha, o
homem de quem ele não gostava.”
Fiquei quase sem fôlego ao ouvir a história, mas
já conhecia a parte em que ela confessara à psiquiatra a sua mentira.
Tinha andado preocupada quando teve uma paragem de leite e por isso
confortei-a ao vê-la tão triste. Que podia eu fazer? O problema do
voluntariado é justamente as nossas limitações. Há áreas onde é
preferível não atuar e, não o fazer é incómodo, até doloroso. O Sr.
Arnaldo queria que eu explicasse à Diretora o que estava em causa antes
de voltar na próxima semana, no dia que lhe fora marcada a visita.
Despedi-me prometendo que faria o que estivesse ao meu alcance.
Julgo que a minha influência no caso da Loti se
espalhou mais do que imaginava e pediam-me que intermediasse neste caso
tão obscuro em que uns julgavam eximir-se às suas responsabilidades,
pela via do dinheiro, e outro aproveitar-se dessa verba para fins
pessoais.
A Tia Valentina veio a nossa casa almoçar no
domingo passado e fez um relato da estada em Israel, dos encontros a que
assistira e explicou:
“... o desejo de os palestinianos terem uma pátria e Israel acatar e
colaborar não se vai concretizar por enquanto. Há muito terrorismo
praticado de ambos os lados. A esperança não estava totalmente perdida -
afirmou - como demonstra a
reunião que houve na cidade de Gaza Al-Rimal, em Outubro de 2012, no
Adam Center para um diálogo sobre civilizações. Continuam os movimentos
para a paz encabeçados por jovens israelitas e palestinianos que
trabalham em consonância.”
As
coisas pioraram já depois da Tia voltar e já se falava numa terceira
Intifada.
Fizemos muitas perguntas e percebemos que ela
vinha desiludida. Depois disse que ia ficar sem a Adelina e que seria
bom ter de trabalhar mais nos assuntos caseiros para aliviar a pressão
que trazia. Achámos todos que ela estava ainda em choque com a viagem e
com a próxima saída da sua ajudante de tantos anos. O Diogo, meu genro,
disse: “Não a estou a ver
carochinha e fada do lar !”.
No final do almoço, quando as conversas começam
a soltar-se, a Luisinha informou: “A nossa filha vai chamar-se Sofia .... Se ela se parecer fisicamente com
a avó será uma sorte...”
O Diogo respondeu logo: “Espero
que sim, sempre ouvi dizer que era lindíssima, mas gostaria que fosse
alegre e confiante em si própria, aliás como o elegante paizinho...”
Levantou-se
da cadeira e amaneirou-se como convinha depois da declaração.
A Tia Valentina afirmou que tinha a próxima
semana cheia e que não se admirassem se parecesse ainda ausente. Eu
lembrei-me que talvez fosse ter o encontro com a tal madre do Convento.
O correio trouxe uma carta de Angola registada.
Como o tempo estava tenebroso de chuva e ventania e com a carta de meu
pai nas mãos, resolvi ficar o resto da tarde em casa. Sentei-me na borda
da cama e abri o envelope. Até aqui só recebera
emails!
Querida
filha
Devia há
muito ter escrito uma carta para que possas compreender o meu
procedimento. Eu próprio ainda me interrogo! A tua mãe foi a única
mulher que amei. Passado pouco tempo depois de teres nascido declarou-se
a doença que acabou por a levar. Havia na altura uns novos tratamentos
para a leucemia que foram experimentados com algum êxito em França. Fiz
alguns esforços para a levar a Paris mas ela recusou-se e os teus avós
também não estavam esperançados nessa via. Comecei a sentir que tudo
escapava ao meu controlo e a tua mãe parecia aceitar com submissão a
doença. Como sabes ela era muito crente e a sua vida espiritual parecia
o único suporte que desejava. Confesso que vivi desesperado e só a
Valentina com a sua coragem e força de caráter me dava ânimo e me fazia
companhia. Ela estava aguardando o Daniel e com o casamento em
perspetiva sentia-se muito dividida. A tristeza de ver a irmã a
enfraquecer, depois a morte da mãe, tua avó, a seguir a reação
intempestiva de teu avô. Para cúmulo estava lá uma empregada a cuidar da
tua mãe que era uma mulher frustrada e, na altura, com um comportamento
malévolo. Não havia clima para a despedir e impor-me. Era eficiente e
carinhosa com a tua mãe. Até que um dia em que estive ao pé da
Valentina, desfeito pelos acontecimentos, essa mulher supôs que tinha
havido um comportamento entre ambos indecoroso. Digo isto agora, porque
és adulta e podes entender. Nunca houve nada entre a tua Tia Valentina e
a minha pessoa.
Era a única
que me dava apoio. Meus pais viviam na altura longe. Tu foste para casa
de uma tia minha apenas uma semana porque o ambiente estava intolerável
para uma criança. A Adelina foi para lá para não estranhares.
Eu fiquei
despedaçado com a morte de tua mãe e com o ambiente naquela casa nos
últimos tempos. O Daniel vinha em breve para casar com a Valentina e
senti desejo de me evadir, o que mais tarde lastimei.
A firma que
herdei de meu pai estava sediada em Angola e havia o escritório em
Lisboa com pouco movimento. A tua mãe ainda soube do meu projeto de
virmos para Angola logo após tu nasceres, por isso estávamos em casa de
teus avós a viver. Nada que te possa dizer explica o meu afastamento. A
vida foi tomando conta de mim e parecia-me de início que a tua vida
orientada pela tia Valentina seria preferível a vires para aqui. A ela
devo ter substituído a tua mãe, criando-te. Sei que não te posso pedir
perdão, apenas que me aceites com as minhas grandes falhas. Agora,
muitos anos já passados em que perdi a minha família, peço-te apenas
benevolência. Achei que devia, embora tardiamente, dar-te a minha
explicação. Ainda bem que tens uma família e a grande âncora que é a
Valentina, foi ela que me salvou de endoidecer quando tua maravilhosa
mãe faltou.
Um abraço pesaroso de teu pai
Quando findei a leitura fiquei com a carta
murcha nas mãos. O tempo
tenebroso de chuva e vento fustigava a janela. Quando o Zé chegou estava
ainda no mesmo lugar, grudada ao passado. O Zé foi chefiar outro
departamento do hospital e penso que vai ficar mais aliviado. Consegui
falar com a Diretora da Instituição. Foi fácil porque é socióloga e sabe
lidar com estes casos embora tenha pedido a minha colaboração.
A tia Valentina chamou-me e não explicou o
assunto. Juro aos meus botões
que fiquei completamente perturbada. Seria porque percebeu que alguém
mexeu no Livro da capa preta? Ou por a Adelina lhe ter dito que eu quis
fazer-lhe perguntas? Ou preparar-me para receber o meu pai? Ou falar dos
meus primos...?
Fui lá depois de uma noite em branco, mesmo com
tília e um serenal. Afinal foi para me dizer que tinha ido falar com a
Madre do Espírito Santo e que gostava que eu soubesse do assunto.
-
Vou-te contar um caso que também
te diz respeito e que afastei de ti por razões que vais perceber.
Transcrevo o que se passou embora com lacunas porque estava um pouco
aérea. A Madre explicou-me que no Convento estava uma pessoa que pediu
muito para falar comigo porque estava a sofrer uma crise grave de
depressão. Já é idosa e diz querer morrer em paz. Para isso queria
expressar o seu pesar por ter há muitos anos provocado uma lamentável
tragédia na casa onde fora para acompanhar uma doente terminal. Ela
dedicou-se à doente, rezava com ela e via o que se passava à sua volta.
Hoje sabe que procedeu muito mal e que, excedendo-se, deu lugar a
problemas que se refletiram em toda a família da doente. Depois
mencionou caso a caso com pormenores. Quando a visitarem ela vai
falar...
A Madre Superiora
ainda contou que Laura depois de sair da casa onde levantou estas
suspeitas, teve uma vida difícil durante vários anos até que moída por
remorsos, complexos de culpa, próprios de uma pessoa que vivera em
clausura algum tempo e sem verdadeira fé e bondade, começou com
depressões graves e a seu pedido recolheu ao convento que a aceitou
antes de ir para o hospital.
Assim
que entrou no convento pediu para me chamarem porque desejava ser
perdoada. Só assim poderia confessar-se. Continua muito perturbada
porque sabe que foi a causa de muita mágoa e de instabilidade na
família. Levou o pai da criança a afastar-se. Conta que muito se
enervava porque a Verinha queria sempre espreitar à porta do quarto da
mãe ... enfim ocasionou um drama com graves consequências... Laura vive
consumida em remorsos, essa é a verdade. Pede para lhe falar e pedir
perdão. Ouvimo-la várias vezes até que tomámos a iniciativa de contactar
a senhora. Desculpe fazer-lhe este pedido.
Ouvi o relato da Tia Valentina e não conseguia
falar. Parecia uma história da Idade Média.
Então a Tia Valentina, pondo o seu braço por
cima de meus ombros, disse-me sentando-se a meu lado:
- Esta mulher é a pessoa que eu desejaria nunca mais ver. Teu pai, se não
estivesse com a cabeça perdida com a morte de tua mãe e pela calúnia que
a Laura levantou, nunca teria tomado a decisão de partir imediatamente
para Angola. Eu estava à espera que chegasse Daniel para casarmos. Tu
eras uma sobrinha que eu adorava e, com a fatalidade da morte de Sofia,
precisava de organizar-me com a Adelina e dar-te estabilidade. Tinha
perdido a minha mãe e meu pai ficou apenas acompanhado com a empregada
mais antiga, na casa onde vivemos por algum tempo todos juntos. A
Adelina foi para a minha casa ajudar a criar-te. O Daniel chegou
entretanto e casamos numa breve cerimónia. Foi um tempo difícil.
Quando a Tia acabou tão extenso relatório sobre
aqueles anos onde tudo me foi encoberto desatei a chorar. Acho que nunca
chorei tanto. Era o desgosto de minha mãe, de minha avó, de meu pai me
ter abandonado. De eu ter abusado da confiança da Tia Valentina lendo o
Livro da capa preta e ter-me permitido desconfiar dela sobre certos
aspetos que não percebia.
A Tia Valentina deve ter ficado também em estado
de choque. Todo o passado aparecia desfocado mas intenso. Ambas
resolvemos que não podíamos eximir-nos ao encontro. Como o meu pai
chegava em breve resolvemos ir ao convento.
Escusado dizer que tudo que fui fazendo até lá
funcionava como passagens aceleradas para a data do encontro.
Preciso escrever o que vi, o que ouvi, as
reações de cada uma de nós perante um passado que nos marcara e que não
se podia extirpar das nossas vidas.
O convento situa-se numa zona alta da cidade e
tem um aconchegado claustro onde há canteiros de flores muito bem
tratadas. Dirigimo-nos as duas para uma porta com aldrabas pesadas.
Passamos pela capela onde as monjas iam orar, subimos umas escadas
seguindo a pessoa que a Madre do Espírito Santo indicou para nos
conduzir até ao quarto onde a doente se encontrava.
Estava numa cadeira de repouso com uma manta
cinzenta sobre as pernas e ao ouvir-nos entrar virou-se. Numa pequena
janela de peitoril de pedra grossa num solitário de vidro estava uma
rosa vermelha, já seca. A irmã saiu e sentámo-nos nas cadeiras
disponíveis frente àquela criatura que parecia saída de um caixão no dia
seguinte ao seu funeral.
Vou apenas escrever aqui o que me lembro porque
a extrema emoção não me permite contar com exatidão. A tal Laura
agradeceu a nossa vinda que apelidou de grande generosidade. Disse que a
sua vida quando saiu do convento por lhe parecer não estar apta para
seguir a vida conventual foi difícil e precisava empregar-se. O pai,
alcoólico inveterado, já tinha morrido e a mãe nunca lhe perdoou tê-la
deixado numa altura em que tanto precisava do seu auxílio. Quando o pai
de Valentina e Sofia a contratou ela achou que deveria cumprir com
desvelo o seu trabalho. Depois disse:
“A D. Sofia era um encanto de beleza e bondade e
contei-lhe a minha vida. Tentei que ninguém a perturbasse, que tivesse
medicamentos e refeições a horas e defendi-a de tudo que se passava à
volta. Sei que me excedi e aborrecia-me sempre que a Verinha passava a
correr à porta do quarto e atirava com qualquer brinquedo para dentro.
Preocupava-me com tudo que lhe dissesse respeito. Se as refeições que ia
buscar à cozinha não estivessem quentes ou em atraso...preferia que o
Sr. Álvaro não a visitasse demasiado porque ficava alterada.... - a
D.Valentina desculpe - mas receava qualquer interferência ...”
A Tia Valentina que, como eu, se mantivera
calada, esperando que tudo acabasse depressa ainda lhe perguntou: “Não
percebo o que podia recear de mim...” ao que ela respondeu que supôs que
o marido da sua doente estivesse talvez... a ligar-se demais à cunhada e
que a D. Sofia se apercebesse... não sabia que estava noiva do tal
senhor que depois chegou de Israel...enfim ...
A tia Valentina estava tensa e ereta na borda da
cadeira como se quisesse a todo o momento levantar-se e abandonar o
quarto-confessionário. Acho que fui eu que, pondo-lhe uma mão nos
joelhos, a compeli a aguardar até ao fim. - “Viemos escutar uma doente
terminal” - disse-lhe ao ouvido.
Laura pediu desculpa entre lágrimas por ter
atuado com pensamentos tão maldosos, percebeu e lastimou o mal que veio
a proporcionar. Soube, mais tarde das consequências e tapando a cara com
as mãos esquálidas desatou a soluçar pedindo perdão...
Quando íamos a sair do quarto ainda disse,
olhando para mim: “Como pôde o seu pai partir e deixá-la, menina Vera.
Perdoem-me...queria sempre ver a mãezinha...”
Quando nos vimos na rua, depois de uma despedida
breve à Madre Superiora, continuámos até casa da Tia Valentina sem
palavras.
Em pouco tempo a minha vida tinha regressado
atrás e percebi que atirava brinquedos para ver minha mãe...a Laura era
um cão de guarda e nada mais.
Levei a Tia Valentina a casa e quando saiu do
carro disse: “O meu amigo David chega no mesmo dia que teu pai vem e
partiremos logo para a Galiza, vamos participar num Movimento para a paz
israelo-palestiniana que se iniciou recentemente”.
Achei que precisava de ir para casa. Nada havia
para dizer sobre a desgraçada criatura que parecia estar a consumir-se
com memórias de um mau passado. Estava apenas à espera deste encontro
para ir para o hospital. A Tia Valentina dera-me esta notícia da sua
partida com David de chofre.
Cheguei a casa, felizmente a Guilhermina já
tinha saído e o Zé só voltaria tarde. Mergulhei no sofá das
“convalescenças”, como sempre é conhecido e esperei que o tempo
passasse. As memórias andavam pela casa dos avós e com os olhos fechados
percorria toda a casa e via com nitidez alguns móveis que julgava
esquecidos. O sol a esconder-se para lá da
bow-window da sala refletia os
seus raios na estante de livros e punha uns tons rosados que pareciam
despedidas.
Queria curar as mágoas e não contagiar os outros
com as feridas por fechar. Teria de fazer aquilo que se faz para haver
paz, harmonia, respeito pelos outros. Deixar sarar e continuar. O
passado é sempre irreversível.
Sei que depois destes acontecimentos vou
enfrentar a minha vida de outra forma saberei
acolher o meu pai. Ninguém é herói.
(M.G., revisão terminada a 10 de novembro de
2013)
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