1
É MEIA NOITE.
encontro-me no terraço deste hotel. estou sozinho. ou antes rodeado de
anjos negros. bebo e brindo com eles. bebo um vinho forte. escuro como o
sangue de um touro quando morre sobre a espada do toureiro. bebo.
furiosamente, bebo. sinto um desejo brutal de beber. sinto como o álcool
me percorre o sangue. tremo. digo: este é o começo da grande sabedoria.
estou salvo.
estou salvo! aprendo a odiar e a amar como só os deuses sabem. não, não
me venham com histórias de morais falaciosas. sou livre. livre. livre
como um pássaro que, cego, se desfaz contra a noite.
esta é a
grande sabedoria. a grande sabedoria. a cegueira luminosa. fecho os
olhos. estou cego. mas vejo como nunca. sim, cego para os homens.
encontro-me à altura dos animais. puro. deito-me no chão. rebolo-me.
esfrego-me. rasgo as roupas. estou possesso. possesso. mas vejo. vejo
para lá dos olhos. vejo com todos os sentidos. é o amor. o amor
subindo-me nas veias. fazendo-me tremer as entranhas. rebentando-me os
poros.
ah..! esta
cegueira. é uma cegueira iluminada. amo como só os grandes assassinos
sabem amar.
eu sei, sei
que um dia a morte chegará. mas sinto - me forte para a enfrentar. para
a olhar com a altivez dos sábios. pois sei que amei com quem sabe odiar,
até às vísceras. sei que senti a vida em todas as suas colorações. os
excessos de quem sabe que a vida é só um som. uma sonoridade que logo se
extinguirá. tal como estas palavras que têm a duração de um momento.
feitas para nada. não servidoras. por isso livres. livres e violentas
como este álcool barbárico que me atinge os ventrículos.
ah! sinto-me
iluminado. sou livre. sou um assassino. o assassino de deus. sim,
assassinei deus a partir do momento em que aprendi a pensar. sou impuro.
um animal sujo e impuro aos olhos desse deus. desci ao inferno. ah!
desci às profundezas infernais. mas agora que ele está morto, regressei
e recuperei a minha pureza. assim atingi a grande sabedoria. a ciência
maior: a essência da beleza, o AMOR.
e agora danço
com os anjos e bebo. ( estou puramente louco ). mais leve do que o vento
danço e bebo – bebo até que um
novo deus se purifique, leve e dançante, no meu coração.
2
AINDA
não era manhã. acordei. sei que
acordei. tinha nas mãos um martelo e
pregos. pregos
húmidos. era sangue. o sangue que escorria dos sonhos. eu via os
meus sonhos.
era tudo tão real. tão real. lá dentro, estavam as ânforas de um
encarnado
nocturno com desenhos estranhos. dentro delas ouviam-se as vozes,
as vozes das
mães uivantes com os seus filhos mirrados ao colo.
as mães. os
filhos. as sombras.
os homens
tinham partido à procura da esperança: certo dia, olharam pelas janelas
( sem vidros )
e avistaram a água e seguiram a água. o poderoso curso da água. a luz.
a água. não se
despediram das mulheres. simplesmente murmuraram:
“ um dia
havemos de voltar.”
e abriram as
portas e fecharam-nas com violência e seguiram o poderoso
curso da água.
partiram sem nada. sem nada. só um martelo e alguns pregos nas
mãos. sem
nada. nús. seguiram o curso da água. a luz da água.
“ um dia
hão-de voltar, um dia hão-de voltar “ dizem agora as mães com os seus
filhos
mirrados ao
colo, acocoradas dentro das ânforas.
ouço-as.
vejo-as nas suas ânforas nocturnas. vejo como sofrem. cheiro a sua dor
menstrual.
olho-as e sofro. com um martelo e alguns pregos nas mãos, olho-os e
sofro.
e o sangue
escorre. escorre dos sonhos, alastra-se pelas paredes. o sangue. o
sangue
dos sonhos. e
eu olho as mulheres. as mulheres. olho-as. e sofro. sofro e reviro os
olhos.
e ergo a
cabeça. e enraivecido, cravo, cravo pregos nas paredes:
procuro a luz
do colo das mães, e a noite dos homens que seguiram o curso da água.
3
ESTOU
mais perto dos mortos que dos vivos.
o meu centro
são as margens. as vastas margens.
entre os meus
companheiros encontram-se:
enforcados,
prostitutas, assassinos, chulos, homens de condição baixa.
venho de facto
de uma raça baixa. uma raça canina. feroz.
uma raça de
olhos azuis e cabelos espetados.
os meus
antepassados traziam sempre consigo
uma navalha de
ponta e mola. uma navalha bem amolada.
consta - se,
no entanto, que entre esses antepassados
havia um homem
nobre, muito belo,
um sábio ou
filósofo que morreu louco. sim, louco.
há deveras na
minha raça uma propensão para a loucura.
por vezes, eu
mesmo enlouqueço. enlouqueço.
nessas
alturas, vejo-me agarrado ao meu tio que morreu num hospício.
o meu tio e
eu. agarrados um ao outro. duas cordas possantes.
os olhos azuis
frente a frente... e tudo é azul. tudo é azul.
o meu tio e eu
dentro de um espelho, de um espelho negro. abraçados.
o meu tio e
eu, somos o mundo. o mundo. o mundo.
e choro. e o
meu choro é um sismo, um rio, uma avalanche
um abalo em
todos os espelhos. e tudo estremece:
os móveis . as
paredes. os homens. os animais. as vísceras.
sim, estou de
facto mais perto dos mortos que dos vivos.
sou talvez o
último exemplar da minha raça.
uma raça suja,
cruel, baixa, sem dúvida , mas independente e corajosa.
de mim
certamente pouco restará, sim, pouco restará,
a não ser
talvez um punhado de poemas, um punhado de poemas
escritos numa
casa em ruína; uma casa muda. uma ruína.
4
UM DIA
fechei-me num quarto. determinadamente fechei-me.
precisava
estar só. só.
era um quarto
enorme, um quarto sem janelas, escuro. enorme.
não havia
móveis. nem jarras, nem flores. reinava somente a escuridão.
à minha volta
o medo, a escuridão, o medo.
o abandono de
quem se procura a si mesmo,
de quem
procura os restos de uma biografia,
algures
perdida. a identidade?
fechei-me .
durante dez dias fechei-me naquele quarto.
e ali fiquei,
sentado no chão, sem comer, nem dormir, nem beber.
cresceram-me
as unhas, a barba e os cabelos.
comecei a
cheirar mal. deitava bichos pela boca e escarrava muito.
as moscas
varejeiras pairavam à minha volta.
eu era um
deserto. um animal abominável, ferido, num deserto.
descobri que
não havia soluções, nem respostas. só o
medo e a
escuridão. o medo e a escuridão.
mas não queria
morrer. só precisava de solidão.
eu era o
grande doente. o grande doente solitário à procura da luz.
não da luz do
sol, mas da luz que dorme dentro das sombras.
5
OLHAVAM
os animais esfolados, estremecentes,
nas mãos
ensanguentadas
das avós ( aquelas mesmas mãos suaves
que nas tardes
frias da beira alta os
acarinhavam ).
a luz acendia
o sangue. as varejeiras brillhavam, alucinadas,
ao redor.
sentiam
uma tremenda repulsa e compaixão. um tremor.
comungavam
daquela mortandade amorosa.
6
TRAZEM
nas mãos as flores do exílio. o seu cântico
é sujo e
canino: cheira a fezes e urina.
delirantes,
inscrevem no próprio corpo o texto dos
açougues e das
zonas periféricas.
iluminam-se ao
cimo da transgressão.
7
METEU
o dedo nas vísceras
do animal
deslumbrante
sentiu a
volúpia do calor húmido
subindo-lhe na
alma
( como quem
penetra a astúcia dos espelhos )
era uma
transcendência
um acto de
comunhão
com a morte
viva naquele corpo ainda quente.
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