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Não gosto da minha casa. Não
queria que
ela
fosse uma casa. Queria que ela fosse
uma prisão. Um
calabouço sem
janelas e sem
portas, e que
eu nunca
pudesse sair dele.
Mas,
infelizmente, a
minha
casa tem janelas
e tem portas, e uma delas dá para a rua e tem uma chave que a abre
e que eu
carrego no meu
chaveiro. E, mesmo
que
não queira, todas as noites a uso.
Todas as noites as
minhas
mãos pegam nela, metem-na na fechadura, abrem a porta
e eu saio da
minha
casa.
Odeio
as minhas mãos. Eu adoro música, sempre
quis ser músico,
e elas negam-se a
pegar
em qualquer
instrumento e a tocá-lo. As minhas mãos só fazem o que
querem e sempre
me
obrigam a fazer o que
não quero. Todas as
noites
abrem a porta da
minha
casa e me
obrigam a sair. Eu
não quero sair,
não quero ir
a lugar
nenhum,
não tenho nada
que fazer em nenhum lugar, mas
saio. Se não
sair, a porta da
minha
casa fica aberta
e eu não
gosto de portas
abertas.
Principalmente,
portas por
onde nunca
ninguém entra a
não
ser eu.
As
minhas saídas nunca
mudam. São
sempre
as mesmas. Vou sempre pelas
mesmas ruas, dobro sempre nas mesmas esquinas,
dou sempre os
mesmos
passos, repito
sempre
os mesmos
gestos, cruzo sempre
com
as mesmas pessoas,
mas
ninguém me
conhece nem
eu
conheço ninguém. As
pessoas
não param para
conversar comigo
nem eu
paro para conversar com elas. As minhas mãos não deixam. Nunca
cumprimentam ninguém. As pessoas passam por
mim e eu
passo por
elas, mas
é como se
nunca
nos víssemos nem
cruzássemos. Às vezes, tenho a impressão que alguém me olha, mas, se olha, não me vê. Eu passo e elas também
passam. Eu
sempre
passo e elas
sempre passam
também. E, isso
eu
sei, embora a
distância
entre nós
seja infinita, a
cada
noite aumenta
mais. As minhas
mãos não
deixam que
ela
diminua. Nunca cumprimentam ninguém nem
deixam que
alguém
me cumprimente.
Já dobrei três esquinas, a
próxima fica a menos
de cem
metros,
não quero ir mais longe, e
quero voltar. Estou no
meio
do passeio, paro,
mas
não volto. Não
posso. De repente, as minhas mãos
enterram as unhas na carne das minhas
coxas e obrigam-me a
seguir. As minhas
mãos
não gostam que
eu pare e volte.
Tento
tirá-las dos bolsos das calças, mas elas não saem e
as unhas enterram-se cada vez mais na carne
das minhas
coxas. Dói, e sou forçado
a andar. E ando.
Obrigado, mas
ando. Mas
me
pergunto: por
que
é que as
minhas
mãos fazem isto
sempre que
eu paro, e sempre
de repente, e
sempre
entre duas
esquinas? Será porque
elas
não querem que
eu morra,
parado entre duas
esquinas,
ou será porque
elas querem que
eu ande para
poderem ver o que
está além da
outra
esquina? Mas
será que
elas
não entendem que
depois da outra
esquina existe
outra, e depois da
outra
mais outra,
e outra e
outra,
sempre outras?
Por
mais que
pense, não
consigo
entender o que
as minhas
mãos
pensam. E continuo andando.
Baixo a cabeça e olho
os bolsos das
calças. As minhas
mãos,
agora, já
não enterram as
unhas
na carne das
minhas
coxas. Estão
imóveis,
talvez descansando, e não sabem que eu as vigio. Eu
estou andando como
elas
querem que
eu
ande, e elas confiam no
poder
que têm sobre
mim. Mas
eu também
as conheço e sei que o momento certo
de as tirar dos
bolsos
e de as obrigar a obedecer-me há de
chegar.
Levanto a cabeça e olho em frente, e
continuo andando como se
andar,
mesmo obrigado
pelas minhas
mãos, fosse um
prazer. É necessário
que
elas continuem pensando que eu não sei o que elas pensam. Se conseguir
iludi-las, elas continuarão confiantes e eu
poderei dominá-las. Não sei quanto minutos
passaram, não posso
olhar
o relógio,
mas
não me
importo. O importante é que as minhas mãos continuem imóveis
e eu possa tirá-las dos bolsos e olhá-las, e elas
saberem que
eu
as vejo e sei que poderei
dominá-las.
O
dedo indicador da mão
direita mexeu-se. É
agora. Deixo-o mexer-se mais um pouco e, de repente, num gesto
rápido, tiro-as ambas as mãos dos bolsos.
Apanhadas de surpresa, as minhas mãos não têm tempo
de reagir e
não
conseguem travar a
rapidez
do meu
gesto. Deixo-as caídas ao longo
do corpo, paro e sorrio,
satisfeito, gozando o prazer
da minha
vitória. Com elas, agora,
sujeitas à minha
vontade,
começo a andar.
Mas o meu
andar já é diferente. Agora
eu ando porque
quero, não
por
que as minhas
mãos querem que
eu ande.
Calmo, tranquilo, como se as minhas
mãos não
existissem, penso
sem
pressa e resolvo o
que
fazer. Agora,
o comando é
meu
e as minhas
mãos
farão o que
eu
quiser. Paro, tiro o cachimbo do bolso,
encho-o de fumo,
devagar,
serenamente, pego
na caixa de fósforos,
acendo um e
olho
a minha
mão
direita. Sem
medo, como se
ela fosse apenas
um lápis
ou um
revólver. Ela
ainda treme,
talvez
furiosa por
não ter
conseguido escapar ao
meu
controle, mas
está aqui bem
na minha
frente,
totalmente dominada, e eu posso olhá-la e vê-la,
segurando o fósforo
aceso. Sei que é a
minha
mão direita,
porque é ela
que sempre
segura os
fósforos
acesos quando
acendo o meu
cachimbo.
Mas, mesmo
sabendo que é a
minha
mão direita,
e vendo-a totalmente dominada,
fico pensando: será que as minhas mãos, sempre me
obrigando a andar pelas
ruas, de esquina
em
esquina, sem
eu querer, também terão mãos
que as obriguem a andar
como eu
ando, carregando os seus próprios fósforos
e acendendo os seus
próprios
cachimbos? Não
consigo encontrar
uma resposta
que
me satisfaça, mas
não me
importo. O importante, agora, é que as
minhas mãos
já me
obedecem.
Odeio
as minhas mãos. Tenho certeza
que, se não
as vigiasse constantemente, elas me
matariam. Muitas vezes, sem eu querer, nem mandar, elas começam
se agitando. Imediatamente,
guardo-as nos bolsos, como guardo o cachimbo,
a bolsa do
fumo, a caixa dos
fósforos
ou a carteira.
Mas elas
ficam furiosas e, em represália, agitam-se ainda
mais. Por
mais esforços
que eu
faça, não
consigo
imobilizá-las. Elas
só
param quando querem. De repente, sem o menor aviso, mesmo
que eu
pense que
ainda
vão continuar,
elas param. As
minhas
mãos só
deixam de se agitar
quando
acham que devem. E, às vezes, ainda
cravam as unhas na
carne
das minhas
coxas,
como fizeram há
pouco.
Por isso
é que eu
tenho certeza
que
se não as vigiasse
constantemente,
elas me
matariam.
Eu odeio as minhas mãos, mas elas também me
odeiam. Eu sei
que
elas me
odeiam. Quando
não
estão guardadas nos
bolsos
das calças, as
minhas
mãos andam sempre
na minha
frente.
Sempre. Mas
eu sei que,
mesmo andando
sempre
na minha
frente,
mesmo vendo
coisas
que eu
não vejo, mesmo
escutando conversas
que
eu não
escuto, as minhas
mãos
não conseguem,
ainda, separar-se de mim.
Por
mais que
se afastem, por
mais
longe que
possam ir, por
mais
independentes
que sejam, são
sempre obrigadas a
voltar, e é por
isso
que me
odeiam.
Eu nunca adormeço antes
das minhas
mãos
adormecerem. Nunca.
Depois
que descobri o
que
elas são
capazes de fazer,
se não as vigiasse
constantemente
e, alguma vez, adormecesse antes delas, tenho certeza
que nunca
mais acordaria. E é essa, eu sei, a única
razão que
ainda me
mantém vivo,
embora
passe noite
e noites
sem
dormir, esperando que
elas adormeçam.
Mas
há muitas noites
em
que elas
não adormecem, olhando
para
mim como
eu olho
para elas. Ambos acordados.
Mas elas também se
vingam dessa minha
vigilância. Todas as noites
abrem a porta da minha casa e me
obrigam a sair. E,
rua
após rua, esquina após esquina, só pelo prazer de se vingarem da minha vigilância,
as minhas
mãos
me violentam.
Além
de cravarem as unhas na carne das minhas
coxas, ainda
me forçam a conhecer
a presença das coisas
que me
cercam. É por
meio
das minhas
mãos
que eu
conheço tudo
que
me cerca:
as paredes dos
edifícios, os automóveis
estacionados junto das calçadas,
as cascas rugosas das árvores, os bancos
onde me
sento ou
até
o vidro
mal
lavado dos copos
onde
tomo os meus
conhaques. A
única
coisa que as minhas mãos não me obrigam a
conhecer são
as pessoas
com
quem cruzamos nas
ruas
ou nas esquinas.
As minhas
mãos
não cumprimentam
ninguém. De resto,
tudo
eu conheço
através
delas. E eu sei
por
quê. Elas
fazem isso
porque
sabem que,
cercado
de volumes, o
meu
mundo interior
fica menor.
Quando volto e entro em casa, eu só sei que estou na minha
casa porque
são elas
que pegam a chave,
a metem na fechadura e abrem a porta. Por isso as odeio. Se não
fossem as minhas
mãos, tenho certeza,
o meu
mundo seria outro.
Bem mais espaçoso e bem mais condizente com
o que eu
sou. Nele não existiriam volumes. Paredes,
cascas de árvores,
automóveis,
cachimbos,
copos, nada
a não ser eu. Nem sequer a casa
de onde
me
obrigam a sair todas as
noites.
Mas eu também me vingo. Há muito
aprendi a vingar-me. Mesmo sem vontade de fumar, tiro o cachimbo do bolso,
encho-o de fumo e acendo um fósforo. Como agora. O cachimbo está na minha
boca, o fósforo
já está aceso,
mas eu
sei que
não
vou fumar. Tudo
que fiz até
agora, tirar
o cachimbo do
bolso, enchê-lo de fumo,
metê-lo na boca e acender o fósforo, tudo isso não passou
de um
pretexto
para me vingar. Deixar o fósforo arder até ao fim e queimar os dedos das
minhas mãos.
Castigá-las. Mas
elas
não sabem disso.
Felizmente, as minhas
mãos
agem sempre
como
se tudo tivesse,
obrigatoriamente, uma sequência lógica.
Para
elas, tirar
o cachimbo do
bolso, enchê-lo de fumo,
metê-lo na boca e acender um fósforo, só pode ter um significado lógico: eu querer fumar. Mas, para mim, não. Eu posso, perfeitamente,
tirar o cachimbo
do bolso, enchê-lo de fumo, metê-lo na boca,
acender um fósforo e não fumar.
Na
realidade, a única vantagem que eu tenho sobre as minhas
mãos é nenhum
dos meus
atos
ser, obrigatoriamente, um
ato lógico.
Não fosse isso,
já há muito
estaria morto.
Agora, como sempre, foi
a minha
mão
direita que
acendeu o fósforo. E eu tenho certeza
que ela
está pensando que
este
fósforo que
está ardendo e já
quase
queima os dedos
dela, foi aceso
para
acender o meu
cachimbo. Nenhuma das minhas mãos, nem a esquerda,
que segurou a caixa,
nem a direita,
que acendeu o
fósforo, sabe que
não
vou fumar. Da forma como procederam, com
a tranquilidade com
que
agiram, para as
minhas
mãos, se o que
elas fizeram foi
lógico,
eu também
só posso agir
com lógica.
Se tirei o cachimbo do bolso, se o enchi de fumo,
se o meti na boca e se acendi um fósforo, eu só posso querer fumar. Por isso elas não estão
preocupadas e fazem o que eu quero com a maior boa vontade.
Mas eu
não vou fumar.
Vou castigá-las. Eu sei que, quando a chama do fósforo
começar queimando os dedos
das minhas
mãos,
eu também
vou sentir dor.
Mas elas
vão sentir a dor primeiro do que eu, e esse será o seu
castigo.
Estou
com raiva. Há instantes,
logo que
comecei andando, as minhas mãos, tenho certeza,
para se vingarem da minha
vitória sobre
elas, me
agrediram. Mais uma
vez
me violentaram. De
repente,
sem o menor
aviso, sem
eu
ter tempo sequer de as guardar nos bolsos, elas me
obrigaram a conhecer
mais
uma coisa. Outro
volume. Aquele
automóvel que
está estacionado ali atrás. Especificamente aquele.
Eu posso imaginar,
perfeitamente, um
automóvel. Sei o que
é um automóvel
porque tenho um
e o dirijo, e posso
imaginar
como serão
os outros
automóveis,
mesmo que
sejam diferentes do
meu.
Mas aquele,
especificamente aquele, XQ - 51 -
83, só existiu para mim quando
tomei conhecimento da sua presença. Quando as minhas
mãos o roçaram
com
a polpa dos
seus
dedos. Se as
minhas
mãos não
o tivessem tocado, não lhe tivessem tateado a placa,
ele, para mim, não
existiria nem seria
mais
um volume
cuja presença
me sufoca.
Eu sei que as coisas
existem. Sempre existiram.
Existiram antes de mim,
existem comigo e continuarão
existindo depois de mim. Mas só quando as minhas
mãos as tocam é
que
eu as sinto e a
sua
presença me
sufoca. Enquanto
eu,
simplesmente, as imagino, são elas que existem em função de mim, não eu em função
delas. Se eu
não
imaginasse nada, nenhuma
coisa,
nenhum volume
existiria. E se as minhas mãos não
tocassem em
nada,
nada me
sufocaria. Mas, no
momento
em que
sou obrigado a
ter
consciência das
coisas
que as minhas
mãos me
obrigam a conhecer, sou
também
obrigado a reconhecer
que eu
só existo em
função delas. E é,
justamente,
isso que
me angustia, que
me sufoca. Eu
só existo porque
o volume
que
me cerca
também existe.
Por isso é que as minhas mãos, só porque me odeiam e conhecem a minha
angústia, me
fizeram conhecer a
presença
daquela automóvel.
Até
que elas
o tocassem e eu sentisse o seu volume, ele, para mim, não
existia. Até
àquele
justo momento
só eu
existia. E é por essa razão que as minhas mãos
estão sendo castigadas. Eu não existo em função de mim. Eu existo em função do volume
que me
cerca. O fósforo
já está queimando os meus dedos, mas eu tenho prazer em sentir a dor. As minhas mãos a
sentiram primeiro do
que
eu e sofreram
antes
de mim.
CUNHA
DE LEIRADELLA
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leiradella@sapo.pt
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