REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 40 | agosto-setembro | 2013

 
 

 

 

 

RAIMUNDO GADELHA


Traje a rigor

 

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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Ele sequer sabia o motivo, mas precisava chegar àquele endereço na Zona Norte de São Paulo. Porém, sempre limitado ao seu próprio bairro, não tinha ideia de como fazê-lo. Em sua solidão, estava inteiramente despido.  Isso, no entanto,  não era percebido por ele ou pelas pessoas que transitam apressadamente pelas ruas.  

Pouco antes de chegar à parada de ônibus pediu informação a uma senhora que, naturalmente, o orientou a pegar o 724 e descer na penúltima parada. No ônibus quase lotado, seu corpo nu encostava em pessoas vestidas nos mais diferentes estilos. Algumas dormiam, outras liam, poucas conversavam e a maioria parecia apenas seguir pensando no futuro ou em qualquer outra coisa ainda mesmo importante... O homem era visto como uma criatura normal. Em nenhum momento foi ignorado; sua nudez, sim!

Desceu na penúltima parada do longo trajeto e, mesmo com o endereço anotado em um pequeno pedaço de papel, continuava sem saber para onde ir. Aproximou-se de uma jovem com uma criança no colo e, mais uma vez, solicitou ajuda, lendo em voz alta o endereço: Rua da Esperança, 797.   Ficava a poucas quadras de sua casa – a mulher respondeu -  e, complementando, disse que poderiam seguir juntos.

A menina, dois ou três anos, que a mãe levava nos braços o observava de cima a baixo. Seu olhar parecia ir muito além de sua pele desprotegida pela ausência das roupas.

Ao chegarem à casa, a mulher, mesmo após informar que o endereço buscado estava na primeira paralela abaixo, bastando dobrar na primeira rua à direita, na seguinte à esquerda e caminhar mais meia quadra, convidou-o a entrar. Havia duas outras crianças na casa.  Dois meninos. O menor, talvez com uns cinco anos; o outro com uns sete. Todos descalços, mas vestidos. Ele, nu, caminhou por todos os cômodos da casa, parando nos fundos, próximo do pequeno quintal. De lá avistou todo o bairro que se esticava, inteiramente desconhecido.

Partiu tentando ser fiel às instruções recebidas, mas como se não apenas as roupas lhe faltassem, a memória o traía... Dobrou na segunda rua à direita, quando deveria ser à esquerda... Avançou por três longas quadras acompanhado de sua impune nudez, até que, inseguro e sentindo-se perdido, decidiu retornar. Entrou, pela segunda vez, na casa da mulher das três crianças e novamente percorreu todos os seus cômodos. Parou próximo ao quintal  e, desta feita, já não achou o bairro tão desconhecido.

Enquanto repassava as informações com a mulher, seus três filhos, mais uma vez, o observavam e o examinavam meticulosamente. Sentiu um calor estranho sobre a pele, algo cortante que, mesmo sem produzir qualquer ferimento, a penetrava e, depois, corria solto dentro de seu corpo. Caminhou, tenso e suando muito,  até a porta. Despediu-se da mulher, ainda sob o severo olhar das crianças e, pouco antes de partir, viu um homem se aproximar e parar ao lado dela. Este o olhou atentamente, não como as crianças, mas o olhou muito, muito inquisitavamente.

Quase correndo, alcançou a esquina e dobrou à direita. Na seguinte corrigiu o erro anterior e entrou à esquerda e, pouco depois, chegou ao número 787 da Rua da Esperança, mas o número 797,  anotado no pequeno pedaço de papel, não existia. Concluiu que, na anotação, o número oito fora, por engano, trocado pelo nove e que o endereço buscado era mesmo aquele: Rua da Esperança, 787. Tocou a campainha; bateu palmas; gritou... Nenhuma resposta. Minutos depois uma vizinha, de sua janela com floreira, falou que há muitos anos a casa estava vazia. Nua por dentro, ele pensou. E mais além: Se ele era um corpo sem roupa, a casa era uma roupa sem corpo e sem alma. Pensou em entrar, vesti-la e em seu interior, quem sabe, também vestido ser. Desistiu. Algo lhe dizia que o endereço, ainda em suas mãos, já não tinha qualquer utilidade. Quando teria sido escrito? E quem o escreveu,  para onde foi e que roupa vestia? Ele em frente, permanecia desnorteado naquele ponto ermo da Zona Norte. Desnorteado. Imóvel e nu. 

Seus pensamentos foram subitamente interrompidos por uma multidão que, frenética, gritava: Canalha! Pervertido! Criminoso! Só lhe restava fugir, mesmo não sabendo para onde. Tinha que se proteger daquela horda, formada pelas mesmas pessoas que lhe deram informações, pelos passageiros e motorista do ônibus, pela mãe das três crianças e seu marido, e pelos curiosos que a ela foram aderindo.  Todos partiram, furiosamente, ao seu encalço.  

Agora ele era visto como sempre esteve: nu. Agora ele próprio se percebe nu... Mas por que somente agora? O que teria acontecido antes?  

Exausto, finalmente, ele foi capturado. A massa, ensandecida, por pouco não o linchou; policiais chegaram, providencialmente. Foi preso em flagrante, sob a acusação de atentado ao pudor e recolhido ao 39o. Distrito Policial da Zona Norte. A multidão do lado de fora já ostentava faixas e cartazes pedindo justiça, punição para aquele que,  a essa altura, já era taxado de “o tarado da Zona Norte”. A imprensa fazia plantão diante da delegacia com boletins ao vivo, reportando inúmeros crimes atribuídos ao frio criminoso. Incomunicável, o monstro, não tinha como se defender. Fora o seu próprio corpo, a única coisa que lhe restara era o pequeno pedaço de papel como o endereço que o fez ir até ali. Olhou o endereço mais uma vez e foi tomado de espanto: Rua da Esperança, 797. Aquele era endereço de onde agora ele se encontrava. O endereço da delegacia! Seu corpo nu,  depois de percorrer um longo caminho, chegou à Rua da Esperança e lá ele praticamente foi vestido por um pequeno cubículo de 2 x 3 metros de concreto.

Cansado, deitou-se no duro catre. Amassou o papel até transformá-lo em uma pequena bola, a encerrou em sua mão direita e dormiu. Dormiu profundamente. 

Acorda confuso e com uma forte dor de cabeça. Está em casa, em sua própria cama. Bebeu tanto na noite anterior que, ao chegar,  jogou-se sobre o edredom  sem sequer tirar o terno e a gravata. Levanta-se e livra-se inteiramente de suas roupas. No banheiro lava o rosto com água gelada. Lembra, sem qualquer arrependimento, dos excessos da noite anterior. Rosto pingando, olha-se no espelho e ri do seu próprio sonho.  

Banho quente e demorado. Exibindo para ninguém um sorriso meio maroto, começa a escolher as roupas que vai usar. Pronto. Olha-se no espelho e se vê devidamente vestido. Dispensa o café e, mecânico, parte para mais um dia de trabalho.

 
  Raimundo Gadelha é formado em Publicidade e em Jornalismo pela Universidade Federal do Pará, com especialização na Universidade de Sophia, em Tóquio, Japão, onde viveu durante três anos, depois de ter estudado em Nova York. Poeta e fotógrafo, sua obra percorre o romance e a poesia, geralmente associada à Fotografia. Trabalhou durante três anos como editor da Aliança Cultural Brasil-Japão e, em 1994, fundou a Escrituras Editora. É autor de diversos livros, entre eles: Tereza, perdida, Tereza (contos, 1978), Colagem Trágica (poemas, 1980), Este circo tem futuro (Teatro, 1982) e Cristal (CD de Música Popular Brasileira, gravado em parceria com Cláudio Vespar, 1984), Um estreito chamado horizonte (1992), que o transformou no primeiro brasileiro a escrever em Tanka, a forma poética mais tradicional do Japão, Em algum lugar dentro de você mesmo (poesia, 1994, português-japonês), Brasil Retratos Poéticos 1 (fotografia/poesia, 1996, 7a edição), Para não esqueceres dos seres que somos (poesia, 1998, CD com participações especiais de Chico César, Marisa Orth, Celso Viáfora e Ná Ozzetti), Brasil Retratos Poéticos 2 (fotografia/poesia, 2001, 3a edição), Histórias do olhar (contos, 2003, com outros autores), Brasil Retratos Poéticos 3 (fotografia/poesia, 2003, 2a edição), Brasil Natureza e Poesia (fotografia/poesia, 2004), Vida útil do tempo (poesia, 2004), Brasil - Livro e Postais (fotografia, 2005) e Em algum lugar do horizonte (romance, 2000), publicado em 2007 na Grécia e no México. Em 2007, Raimundo Gadelha assumiu o controle acionário e administrativo da Arte Paubrasil (www.artepaubrasil.com.br), uma das mais reconhecidas livrarias virtuais do País.
 
 

© Maria Estela Guedes
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