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Mesmo no caso da
indústria livreira, tal como na discográfica, trata-se de indústrias que
usam (sem discutir o mérito democratizante, sem perda do carácter de
negócio que são) como matéria-prima a literatura e a música enquanto
artes. Mas não são arte; a parte industrial é a da reprodução e
circulação das cópias registadas, não o produto original, enquanto
criação: a música (na pauta ou nos acordes da orquestra) e a literatura
em si (o texto “inventado”, mesmo na “série repetitiva temática” de um
autor como Paulo Coelho) não são uma indústria porque acto singular de
criação. Quanto à televisão, então, nem pensar! Ela não é, nunca foi e
estou convicto de que nunca poderá ser, por si e em si uma arte ou
sequer um bem cultural: é um canal que pode (e devia) escoar cultura,
aliás no cumprimento de um serviço público, mas, no caso português (e
não só), a não ser por distracção certamente, tem estado mais dedicada a
escoar apenas subprodutos e diversas toxinas da ficção nacional e
internacional, algumas das quais são tão devastadoras no plano da
inteligência dos tele-espectadores, quanto criminosas na
responsabilidade dos seus “inventores” ou servidores de topo na cadeia
da concretização desta ou da dita informação noticiosa.
Todavia, é algo difusa a
compreensão plena do facto na questão do livro e do disco. Ao abordá-la
entramos num capítulo mais complexo em que falar de indústrias da
cultura pode fazer sentido, mas, mesmo assim, não é indústria
cultural. É uma indústria que parte de um bem cultural, mas não é
aplicável a adjectivação ao substantivo. Isto não é apenas semântica e
mesmo que o fosse era decisivo na diferença, que é o que para a
semântica serve: não se trata de todo de indústrias culturais, mas, como
se disse, de indústrias da cultura. É que a primeira designação
diz-se de uma coisa e na segunda outra se diz, que me abstenho de
“explicar” mais porque os que sabem ou querem saber já o sabem ou
facilmente compreenderão e não precisam que o repita; e os que não
compreendem ou não querem compreender, e julgam uma mera nuance
despicienda, nunca o irão saber.
Entretanto, ao
deslocarmo-nos para as artes performativas (efémeras) ou o património
edificado (perene), então nem em indústrias da cultura podemos
com rigor falar, mesmo se um monumento serve para recolha massiva de
bilhetes de entrada e se integra nos roteiros do turismo cultural (termo
aceitável, já se verá porquê), tal como uma peça de teatro
“franchizada” a partir da Broadway ou do West-End. Trata-se,
outrossim, de objectos comerciais, o que não implica sempre e
obrigatoriamente uma desclassificação artística, entenda-se, mas não
são, pela sua própria condição arquetípica, coisas industriais. Na sua
natureza, que não na substância necessariamente, mas enquanto processo,
trata-se mais de artesanato: coisa díspar e inconfundível, como o são um
boneco feito à mão pela Rosa Ramalho ou as bonecas Barbie feitas
em série num molde.
Esta diferença ignorada
ou esquecida com que muitos “engolem” a coisa, não é, todavia, na
matriz, uma ingenuidade ou coisa inócua. Serve objectivamente às mil
maravilhas um propósito de quem mete no mesmo saco – com fins que
ressaltam óbvios, mas que vão muito bem embrulhados para esconder as
finalidades últimas, coladinhas aos fenómenos económicos de cariz
ultra-especulativo e tóxico como o da banca em “overgambling” – a
cultura com a sua distribuição e formas de indústrias criativas,
que é outra coisa, onde, por exemplo, se incluem a publicidade, o
design, a moda, a joalharia… E cuja importância ou intercessões não são
desprezáveis, mas é real e definitivamente uma outra coisa e outro
sector. Tal como o são o turismo e a cultura, mesmo havendo turismo
cultural, se e quando o destinatário comercial opta pelo consumo de bens
e serviços culturais: aí sim, é apropriado o termo porque é o turismo
que como tal se classifica e não a cultura que é uma face da indústria,
como o sugere o termo “indústrias culturais”. De resto, ao nível de
indústrias criativas, como as já citadas, nada impede que nelas seja
incorporada mesmo uma criatividade genuinamente artística no conceito,
mas não no processo de produção.
Pode parecer excesso de
rigor o cuidado em demarcar territórios, mas é fundamental. É que nem
toda a criatividade é cultura, nem toda a cultura criativa. A Vénus
de Milo é um bem cultural e não carece de incorporar nova
criatividade para o ser. Mas exigiu-a para o ser, obviamente. Todavia
uma criatividade certamente muito diferente dos que fizeram espectáculo
de entretenimento o Circo Romano, por mais aguçada que a perversidade da
imaginação e do prazer obtido pelo receptor tenham, inegavelmente,
existido. Mesmo que no interior de um objecto de arte, que como tal
permanece (o Coliseu) acho que é fácil distinguir o fim e resultados das
coisas.
Aliás, ao termo
“cultura” não existem só os que reagem “rapando da pistola” de forma
radical; há sempre também quem esteja disposto a usar cortinas de fumo
sobre o assunto na duplicidade do uso do termo: no campo da antropologia
e no da arte – complementares, dialécticos, mas carentes de focagens
diferentes ao abordar certas questões, que importa, no interesse mútuo
de cada um dos planos da observação e uso do termo, ressalvar. É que
naquilo do que estou a falar, em termos de objectos, bens produzidos ou
serviços desfrutáveis, há diferença entre cultura artística e tradição
cultural: a primeira “reinventa” (ainda que na releitura de um monumento
existe um móbil de sentimento e/ou pensamento transformador do tempo que
antecedeu o contacto com ele) e na segunda permanece a repetição do
adquirido, sem necessidade ao recurso da “redescoberta” do eu. Quando
não, do mesmo modo que as touradas são elegíveis como cultura (no
sentido de par da escultura, da música, do cinema, do teatro e assim),
porque não, em certas regiões de África, não pôr sob a mesma tutela a
expressão cultural, muito mais antiga e abrangente até, da excisão do
clítoris?
Do mesmo modo se gera
com facilidade a confusão entre o que é (legitimamente e a montante do
valor técnico e formal que possa possuir) cultura, no sentido já atrás
empregue fora da visão antropológica, e entretenimento, na área
confluente entre actividades, de forma idêntica, mas cuja fronteira é
simples: a primeira acrescenta alguma coisa no que o Homem se distingue
das demais criaturas do planeta, pela emoção, sentimento ou razão; a
segunda nada acrescenta para lá do prazer imediato que suscita o seu
exercício ou recepção.
Assim, quando muito,
nesta distinção entre as tais indústrias criativas e esse jargão de
“indústrias culturais”, o que pode acontecer é constituir-se
“industrial” alguma forma de expressão “artística”, nesse sentido de
entretenimento puro, como “cultura industrial”, no sentido que serve de
produto para consumo massivo sem olhar à génese do seu contributo para a
inevitável transformação que um acto cultural provoca no Homem, mesmo
quando pela negativa, é realizado junto dos que, não detendo os códigos
para a sua compreensão, o rejeitam ou torcem na leitura (facto a que as
artes performativas, porque efémeras, devem prestar maior atenção). Mas
o porquê da nossa “preocupação” é simples, porque uma e outra se
distinguem qualitativamente: a indústria busca o consumo, a cultura o
usufruto; o destinatário da indústria (inclusive a da distribuição
cinematográfica) é um cliente, o da cultura (inclusive na parte
respeitante à criação artística no cinema) é um fruidor. E isto, que
pode à espuma das palavras ditas parecer irrelevante, é,
substantivamente ao nível da linguagem, tudo. Pelo menos tudo o que
importa distinguir neste campo, cujo étimo mais profundo de negócio (negotium
de neg-, otium = negação, contraposição ao ócio)) remonta
precisamente à negação do ócio, que é o que, a par do aumento de
conhecimento(s), justifica a necessidade humana das artes e da
literatura.
“As Artes Entre As
Letras”, 30.Junho.2011 |