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Não me sinto bem. Um enjoo, uma falta de ar, um não sei quê
estranho que não consigo determinar. Não devia ter empreendido esta viagem,
mas ficar em casa só porque não ando na melhor forma? Nem pensar,
quero participar no Encontro de Poesia. Acontecimento internacional,
vou dizer poemas e debater o estatuto do poeta na sociedade contemporânea, numa das mesas redondas. Não
podia falhar. Uma anemia não é nada
de extraordinário. Nada, ninguém morre por causa de uma anemia, mas, se tiver de
partir, olha, é só uma sequência natural das coisas, em viagem já eu vou. E
de viagem venho, de Espanha, onde estive na VI Bienal de Poesia Andaluza...
Os poetas estão sempre em movimento, são eles que asseguram a dinâmica
necessária à vida cultural de um país. Com poucos apoios, só algumas Câmaras
são receptivas e lá vão ao menos patrocinando o alojamento e as refeições...
Salário, nem pensar! A actividade de poeta não é reconhecida como trabalho,
todos os autores são pagos, excepto os poetas... Esquecem-nos, sorriem,
brincam, troçam de nós, ah!, anda a escrever um livro de poemas? Sempre está
entretido... Não nos levam a sério, escrever poesia não é trabalho, é
entretenimento... Por isso não nos pagam, não nos publicam, e troçam... Mas
quem leva alguma colher de cultura à boca das cidades de província, quem
garante que as cidades, mesmo importantes, não morrem de anemia das Letras?
Os ficcionistas? Os ensaístas? Não, esses fazem um congresso de quando em
vez, nas grandes capitais ou nos mais famosos centros turísticos, mas não
caminham como nós de castelo em castelo, mochila às costas, como os
trovadores na Idade Média, para levarem às terras mais longínquas o pão da
poesia... |
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Sinto-me cada vez mais fraco. Vou para longe e deixo para trás a Sylvia com um bebé de quinze
meses. E os meus livros, quem tomará conta deles? Se calhar, atiram-nos para
o lixo... E os cadernos com tanto poema para rever, grupos inteiros deles
que já se organizam em livros... E a mochila que tenho levado para Amsterdam?
O problema nem é atirarem-na para o lixo, sim deixar eu atrás de mim tanto
motivo de preocupação para quem se ocupar dos meus despojos... Arrumar
tudo... Aliás, tudo está naturalmente onde poderia estar, não há assim tanto
espaço nem móvel na casa... Se houvesse estantes, os livros escusavam de
andar às voltas em
cima da cama... Alguém vai deitar mãos à cabeça ao ver livros e papéis na
cozinha, na casa-de-banho...
Morrer traz incómodos aos
vivos, bem queria evitá-los. E tenho evitado, na verdade: além dos livros,
nada mais possuo, fui-me libertando a pouco e pouco do supérfluo. Só os
livros são essenciais. Não devíamos possuir bens, para podermos partir sem carga... A carga
dessa carga, preciso de esvaziar as gavetas, deitar fora papéis que só
servirão para causar perplexidade a quem os ler... Mas, meu Deus, morrer
aqui, a caminho de Silves, essa cidade onde viveram tão belos poetas árabes,
e que me garantem inebriar com o perfume das flores de laranjeira? Não posso morrer aqui,
ainda vamos
no Alentejo, segundo o médico sentado à minha frente. Percebi isso, fala-se em
inglês, a carruagem vai cheia de turistas a caminho da praia.
Deixa ver o que tenho na carteira... Passaporte europeu, com local
de nascimento, na Holanda... Nem morada nem telefone... Uns cartões de
visita, este é do Juan Molinos, escritor da Andaluzia... Passei estes
últimos quinze dias em casa dele... Se morro aqui, vai ser um problema
para os portugueses contactarem os meus familiares na Holanda... Pegam no
telemóvel e desatam a ligar para todos os contactos, e quem, na lista,
responderá numa língua minimamente acessível como o inglês?
Ai, sinto-me mesmo mal, uma fraqueza... Suores frios...
Nada na carteira que permita a alguém avisar a minha família... Só
por aqui vejo uns papéis com o endereço do Juan Molinos... E
que família? A Sylvia? Não somos casados, ela é só a mãe do meu filho. Foi um
acidente, como posso eu garantir a criação do Conrad? Adoro o Conrad, é a minha
cara, mas sou um... Sou o quê? Como é que a sociedade me classifica? Um
irresponsável? Um desempregado crónico? Um vagabundo? Um marginal? Um mendigo? Aceita a
sociedade que eu seja um poeta?
Tenho comido tão pouco, custa-me sobrecarregar a
Sylvia.
Vamos falar com a claridade absoluta dos teus poemas, Clovis: passas
fome. Por isso o médico te diagnosticou anemia. Andas mais magro que um cão vadio,
Clovis, a pele
amarelada, e cheiro a não sei quê adocicado, Clovis. Sinto-me mal
disposto... Precisava de levar alguma
comida à boca, mas fico sem dinheiro se vou ao bar, e a carruagem do bar
é das primeiras, não a conseguirei alcançar...
Oiço zumbidos dentro dos ouvidos, as pessoas
perguntaram alguma coisa mas não compreendi... Está tanto calor e
custa-me respirar, vou à casa-de-banho...
Não convém fechar a porta, era um berbicacho terem de
a arrombar se morresse trancado aqui dentro... Que ninguém morre de anemia, mas lá que
me sinto fraco, sinto... E cheio de calor, vou ao menos tirar as
peúgas... O comboio anda aos tombos, roda à volta de mim numa zoeira...
Quem serão estas pessoas que me amparam e me levam quase no ar para fora
do WC? Alguém esperava que eu saísse, uma senhora de rosto redondo e
olhos pequenos. Sorriu, não percebeu que sou um poeta de palavras fortes
mas de pernas fracas...
É o casal de médicos que ia comigo na carruagem...
Mandaram parar o comboio por minha causa? Oh, não esperava que me
atribuíssem
assim tanta importância... A mão de alguém mexeu-me nos bolsos,
tiraram-me a carteira... Não, não foi para me roubarem, o médico folheia
os meus papéis e um homem fardado escreve numa agenda...
- Do you live in Spain? - pergunta o médico. E
mede-me as pulsações pelo relógio, enquanto eu olho para o céu quase
branco, tanta é a luz, e tanta a efervescência no meu sangue... Estou
deitado no banco de pedra daquela estação de nome tão maravilhoso, que
nome era? Fixei, eu fixei o nome da estação, apesar de a língua ter um
sabor tão estranho: Santa Clara Sabóia... Santa... O céu é um sorvedouro
branco, sinto-me atraído por ele, e mergulho, mergulho num torvelinho de
cintilações prateadas... Reajo, tenho
de me levantar e levanto-me, o médico é uma projecção de sombra à minha frente, não
lhe distingo as feições, só a voz distante, de enxame de abelhas:
- Do you live in Spain? - quero responder, sorrio
antes da resposta, erguido a mais do que a altura dele, olho-o de cima,
sem sobranceria mas com o orgulho dos bons... Sou um grande poeta, todos
o sabem... Não queria causar aborrecimentos a ninguém, mas é
verdade que o comboio está parado por minha causa, há tanto tempo, tanto
tempo... Mais de vinte minutos, comenta alguém... Percebo que chamaram uma ambulância, o médico continua a falar
comigo, vai chegar a ambulância, promete, os passageiros do comboio sairam para o
bosque, não posso dizer que sairam para a rua, não é verdade? Isto é um
lugar de fronteira, nem cidade nem campo, pronto, sairam para a poeira, outros espreitam por cima dos ombros de quem está à frente para
me observarem e então, numa fração de corisco, uma faísca atravessa-me e
sinto-me desabar no chão, estou morto, o médico ajoelha, põe-me a mão
sobre o coração e com a outra faz força, fica ali tanto tempo a dar
massagens ao coração, coitado, deve estar cansado, olho de cima para
aquela cena, um grupo de pessoas chocadas, há uma, dentro do comboio,
que solta gargalhadas, decerto em reação nervosa, está roxo, que quer
isso dizer?, que não vale a pena, é só por descargo de consciência que o
médico insiste na massagem cardíaca, o homem está morto há mais de três
minutos, oiço, lá em cima, no céu de almofada de penas, lavado, claro,
tão nítido, e depois a música alarmada da ambulância que chega, e há-de
levar-me, só incómodos para os portugueses, desculpe, sorry, sorry, peço
perdão por ter morrido,
só queria participar no Encontro de Poesia, não era desejo meu
causar-vos tanto atraso e tanta perturbação... |
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Maria Estela Guedes
(1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS.
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa –
Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa,
1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A
poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de
papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos
portugueses”, São Paulo, 2010.
ALGUNS COLECTIVOS.
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia
de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com
poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do
olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008;
“Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério
dos Livros Editores, 2009.
TEATRO.
Multimedia “O Lagarto do
Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE,
com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela
Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à
cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos
Avilez, cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |