|
O poeta repercorre, nessas páginas, tantos momentos
de sua vida, a partir de uma recordação da infância, uma obsessiva
recordação, diria, da cidade de São Miguel dos Campos, berço da sua
família materna. Ele era ainda menino quando acompanhou o pai, que era
advogado, em uma viagem a esta cidade de Alagoas e à vizinha Barra de
São Miguel, localidade litorânea e território no qual viviam, no tempo
do Brasil colônia, os índios Caetés, antiga população da qual descende
Lêdo Ivo.
Os Caetés entraram tragicamente para a história
brasileira após o naufrágio do navio que transportava o primeiro bispo
do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha, que foi capturado e literalmente
devorado pelos índios, junto com os outros membros da tripulação, num
cerimonial antropofágico característico de algumas tribos costeiras do
Brasil quinhentista. A seguir, e por represália, os Caetés foram
perseguidos pelos portugueses e quase completamente exterminados.
Considerados por muito tempo, pela historiografia
oficial, sobretudo portuguesa, como povos bárbaros e selvagens (e
diga-se, a tal propósito, que essa imagem foi funcional à colonização e
justificou tantos massacres, inclusive de grupos que não praticavam a
antropofagia), os Caetés foram “recuperados” pela literatura brasileira
em chave simbólica e mítica, no momento em que todo o passado nacional
era revisto à luz de uma nova consciência, no início do século XX. Os
modernistas, de fato, inverteram a imagem negativa do mau selvagem,
associada quase sempre aos grupos que se opuseram à colonização, e
Oswald de Andrade chega mesmo a propor que o momento culminante da
fundação do Brasil fosse esse em que os índios Caetés, desafiando o
poder político e religioso do Império lusitano, haviam -
iconoclasticamente - comido o bispo.
Justamente nesse espaço cheio de simbologia e
história, diante do oceano, que o poeta denomina “Mar caeté”, havia já
na época da sua infância um estaleiro naval abandonado e em ruínas,
restos de uma arqueologia industrial a decompor-se, expostos, como eram,
à salsugem e à umidade do ambiente lacustre característico da região,
chamado, por isso, das Alagoas, pela presença de lagoas costeiras, onde
estagna a água do mar e onde cresce a típica vegetação dos mangues.
Esse lugar sugestivo, impresso-se na memória em um
momento da infância em que as imagens e os eventos nos marcam com maior
força e nitidez, retornará com freqüência na obra do poeta, como
voltarão os detritos dos navios abandonados, os elementos da paisagem
marítima, os animais lacustres, os peixes e as aves migratórias, as
igrejas carcomidas das pequenas cidades e vilas, os cemitérios e os
manicômios, os lugares degradados pelo tempo e pela ferrugem que ele
ama, como ama as coisas e as pessoas marginalizadas, junto com os seus
ancestrais Caetés, eternizados num rito prodigioso e primitivo que os
levou à morte.
Repercorrendo com a memória tantos momentos da sua
vida, no livro Confissões de um poeta, publicado pela primeira vez em
1976, o autor, referindo-se à sua Maceió e ao estado de Alagoas, afirma:
Quem nasce aqui, respira desde a infância um aroma de
açúcar, vento, peixe e maresia, sente que o oceano próximo cola em todas
as coisas e seres um transparente selo azul. (...) No alto da colina, o
branco farol da minha terra vai iluminar a noite, quando esta vier
esconder as aranhas e lacrais, e os sonhos e os segredos dos homens. Luz
branca. Eclipse. Luz encarnada. Os feixes do farol clareiam os telhados
enegrecidos pelas chuvas, as ladeiras, os coqueirais que cantam e dançam
na noite longa, os mangues onde água e terra se dissolvem, os cajueiros
floridos. No universo redondo, entre os goiamuns ocultos na lama negra
das alagoas e as constelações, entre os fogos de santelmo e os cantos
dos galos, o farol de Maceió guia os navios e os homens.[1]
Todo esse universo, em que mar e terra se misturam e
se dissolvem um no outro, como no início do mundo, esse lugar ligado às
suas origens, à sua infância, à história da própria família, volta nesse
breve poema do regresso, do refluxo, das perguntas sem resposta que o
poeta pôs ao longo de toda uma vida, das respostas que não elucidam e
não satisfazem a dolorosa espera dos homens. Diante do estaleiro
apodrecido e dos navios deixados a languescer no porto, o poeta vê-se de
novo a fixar o oceano sem fim, a dialogar com a noite e com o dia, a
chorar a dor de ser uma criatura mortal com o desejo lancinante de
eternidade, com o anseio de subtrair, à morte, seres e lugares queridos,
com a impotência e a fragilidade que, inevitavelmente, nos marcam.
Não se pode ler este livro sem dor e comoção e,
paradoxalmente, sem a sensação de alegria e beleza que proporciona
sempre a grande poesia, mesmo quando trata de sofrimento e morte. Esse é
o enigma da palavra poética, dor que tem, em si mesma, a alegria do
humano tocado por Deus, ou de Deus tocado pelo homem num momento de
êxtase.
Se as perguntas metafísicas, imemoriais e cósmicas
que põe Lêdo Ivo ao mar, ao vento e à noite não têm respostas, elas são
necessárias e têm razão em si mesmas e no fato que o homem é uma
criatura pensante, uma consciência viva e atenta até mesmo quando
caminha para o nada. O poeta afirma, de fato, que A eternidade passa
como o vento. / Só o tempo é eterno, invertendo, assim, um consolidado
axioma, ligado às nossas concepções de tempo e de eternidade, para
evidenciar que a eternidade não passa por nosso corpo, não a conhecemos,
nossa consciência não a contém em seu núcleo. Contemos o tempo e o tempo
vivido e absorvido verticalmente é a única coisa que, de eterno,
possuímos.
O magma incandescente desse lirismo plasma a sua
forma torrencial, por vezes obsessiva nas imagens recorrentes, nos
versos longos que quase tiram o fôlego ao leitor que desejasse seguir
sua exata amplidão. A linguagem, encantatória e elegíaca, rica de pathos
dramático, mantém o tom coloquial, como na melhor tradição poética
brasileira. A música é de uma harmonia encrespada, como as ondas do mar,
marcada pelas tantas interrogações: Onde estão os loucos de minha
infância, / os loucos que cantavam e dançavam no hospício devastado pelo
sol? / Onde estão os meus navios e a luz do farol?
A vida é vista como um caminho, um percurso
breve e intenso, ao fim do qual ele se vê com menos certezas do que
quando partira. E se o mar e a noite parecem sorver as nossas vozes
individuais, a poesia permanece como um lampejo de consciência difuso,
testemunho de amor, profecia da noite que, mais do que nos abater,
revela afinal que a vida deve ser vivida.
Trata-se, aqui, de uma poesia elegíaca, mas, ao mesmo
tempo, límpida e luminosa, poesia de um amor declarado à amada perdida,
saudação a um tempo compartilhado com os seres queridos, recuperação da
memória, balanço dos caminhos feitos e dos lugares vistos, abraço
fraterno e passional à existência e às palavras que a tornam verdadeira,
despedida da infância, pranto contido e prece.
Réquiem, o título da obra, é a primeira palavra da oração latina, na
liturgia dos mortos, requiem aeternam dona eis Domine, “o repouso eterno
doe-lhes ó Senhor”. O réquiem é uma invocação e é o canto de uma
ausência. Celebrar ou cantar o réquiem é reviver, na memória, a pessoa
ausente, é refletir sobre laços e relações interrompidos repentinamente.
Nesse sentido, o réquiem faz parte daquele processo de elaboração do
luto que é fundamental para que possamos aceitar a separação, a perda
das pessoas queridas.
O pranto pela morte da amada se associa aqui, porém,
à evocação do amor humano intenso e pungente, como é próprio da elegia.
De fato, ao elaborar o luto, Lêdo Ivo celebra, ao mesmo tempo, e
obstinadamente, a vida compartilhada em plenitude, reafirma ainda e
sempre a ternura e o milagre dos afetos, a intensidade do sentimento de
união que ele estabelece com os seres e coisas, mesmo as menores e
aparentemente insignificantes:
Sempre amei o dia que nasce. A proa do navio,
a claridade que avança entre as sombras esparsas,
o longo murmúrio da vida nas estações ferroviárias.
(...)
E sempre amei o amor, que é como as alcachofras,
algo que se desfolha, algo que esconde
um verde coração indesfolhável.
(...)
Sempre amei o que vive na água negra dos mangues.
Sempre amei o que nasce. Sempre amei o que morre
quando a noite desaba sobre as casas dos homens.
O réquiem de Lêdo Ivo assemelha-se curiosamente às
bem-aventuranças evangélicas, ressoa nele o “Sermão da montanha”
(Mateus, 5, 3-11; Lucas, 6, 20-22), tanto na estrutura do texto quanto
em seu significado íntimo, de discurso revolucionário que subverte
preceitos consolidados:
Felizes os que partem.
Não os que chegam aos portos apodrecidos.
Felizes os que partem e não regressam jamais.
(...)
Felizes os que viveram mais de uma vida.
Felizes os que viveram vidas inumeráveis.
Felizes os que desaparecem quando os circos vão embora.
(...)
Felizes os que moram nas ilhas periféricas
e são rodeados ao cair da noite por uma nuvem de tanajuras.
Felizes os sedentários que um dia foram embora.
Afirma o poeta e crítico Ivan Junqueira que, “ao
contrário de muitos poetas cuja produção se amesquinha na velhice, a de
Lêdo Ivo cresce ainda mais”[2], acrescentando ainda que se a
comparássemos ao vinho melhor, que quando mais envelhece mais se torna
precioso, o conceito que daí adviria é o da “maturidade do maduro, ou
seja, o do sabor dessecado de uma passa que ainda soubesse ao frescor da
uva. Um fruto cristalizado. Quase um diamante.” Ao ler e ao realizar,
com o poeta, esse visceral percurso nas palavras e na vida, sentimo-nos
também “felizes”, ou seja incluídos nas suas extravagantes e poéticas
bem-aventuranças, nós leitores a quem foi dado, como uma prodigiosa
oferta, esse seu maduro e denso fruto de poesia. |