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Ó corpo desconhecido, corpo meu! Ó corpo crucificado,
ó corpo sacrificado! Santificado?
Falo-te de um tempo em que a cruz se interioriza. A
cruz é corpo, imobilizada em carne, músculo, ausência de osso. Perdeu a
nobreza do sacrifício, é múmia, é mole. Deixou de ser crisol.
Com uma cruz amolecida no corpo/fosso em que me
ofusco e afundo pela ausência de osso, como orientar-me no espaço se o
meu tempo é o da morte em vida? Se a rotação do mundo já não a sinto no
eixo... proibido me foi o rodar, proibido me é o virar o pescoço para
olhar o sol!
Como orientar-me no tempo se os braços da cruz já não
apontam o este-oeste onde o sol se revela e esconde, mas pendem, débeis,
inertes, depenadas, para o chão, pela ausência de ânimo... e de osso!
Arredado me tem sido o centro, perdido ando em múltiplas periferias, sem
norte... perto da morte...
Já não debico o milho, não parto do corpo para chegar
à semente, em vegetal eu tornado. |
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E não tenho mais garganta para o canto. Assim mesmo,
dou-te a voz que não tenho, para o pranto.
Choro a mim mesmo e choro o homem. Aquele que me
polui o sangue e depois me devora, o seu lixo. Qual mais sofredor? O que
consome o próprio erro assimilando, de imediato, o castigo, ou... o erro
ele mesmo? Quer dizer, o mesmo eu, já outro. E à minha volta tantos...
Como eu. Que penso.
Com que corpo ou com que não-corpo penso eu?
Encorpado sou, incarnato fui, mas... em que carne me tornei? Que
desconhecido corpo-réptil é o meu?
Animal alado, dizes tu?
Bastará ter asas para ser alado? Basta ter asas para
ser um ser? Em que ser me destornei?
À minha volta outros como eu. Com que patas nos
sustentaremos? Que corpo desequilibramos nós? Falam-me de outros seres.
De antes. Passados. Antepassados tão remotos os sinto!
Consubstanciado sou... como chamar a uma massa de
músculo, gordura, hormonas e pele?
Com que substância sou ou não sou? Com que corpo
sustento ou não sustento o corpo, a alma?
A cruz que antes foi crisol, vaso em que materiais
preciosos se fundiram é agora depositório hormonal, slotmachine de
dinheiro rápido, diabólico laboratório onde se experimenta; é,
finalmente... simulacro de frango à velocidade da luz amadurecido e
novamente rejuvenescido. Todas as idades do mundo em mim,. Em massa.
Informemente. Eternamente. Para a riqueza de alguns do século e
embrutecimento da outra massa disforme a que chamo desumanidade. Em nome
da fome da humanidade. Amen.
Deus criou o homem à sua imagem. Dizem. Não o vê o
homem, nem se revê na imagem. É míope. E vingativo. Mas precisa de
espelho.
O homem do século XX tenta então recriar o animal à
sua imagem de animal acossado, manietado, reptilizado. E cria, entre
outros infelizes, o frango de aviário. O animal massificado, manipulado,
transformado. Global. E incompleto. Retira-lhe, rouba-lhe, os
ingredientes da essência, o enxofre da alma, o mercúrio do espírito,
deixou-lhe (falo de mim) o sal do corpo.
É um facto que sinto a pulsação da artéria, mas o meu
coração já não é o sol do microcosmo que já não sou, as funções
orgânicas não são já desencadeadas por esse sol volátil que já não
possuo, mas por outros misteriosos mecanismos que introduzem em mim
desde que fui ovo e ainda acreditava que tinha um centro, o ponto
vermelho da intersecção da cruz na gema a partir da qual, antes, toda a
vida deste universo surgiu, a quintessência, o pinto.
Faltou a esse desajeitado homem moderno, pretenso
aprendiz de feiticeiro, a arte dos construtores. Estes sabem que criar é
construir templos e que o templo é uma catedral de música. Soube-o Deus
quando desceu três oitavas (e não mais) para insuflar o sopro na mulher
e no homem.
O homem desceu uma eternidade de oitavas para criar
esta pobre pintessência, pobres, tristes, desbotados pintos. Não
contente, fecha-os em subespaços onde o sol já não chega ao coração,
onde este já não cumpre um eixo angular de 23º como sempre fez, copiando
o eixo da terra em relação à órbita do sol.
Expulsou de mim os deuses, amoleceu-me os ossos para
que a carne seja tenra e os dentes dos humanos tenham a ilusão de
mastigar nuvens. O apelo do transcendente na ponta dos dentes, que
melhor não sabem estes pobres seres. Um dia saberão.
Por enquanto, serás, homem, o teu alimento. Longe vai
o tempo em que o animal era teu adversário. Digno. Com nobreza para
ambas as partes. Mesmo quando o comias. Porque às vezes os papéis também
se invertiam. Risco que corrias. O risco que corres agora é muuuuuuito
maior! O perigo imenso de teres uma vítima à mercê, sempre, sem defesa,
até ao momento em que... a ingeres, quando, engolindo a tua vítima,
passas a ser um com ela. Até que o futuro te detenha, louco!
Será nesse momento que, de incómodas vitórias,
gloriosas derrotas te salvarão! |
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Risoleta C Pinto Pedro (Elvas, Portugal)
Publicou até hoje: A Criança Suspensa, Prémio
Ferreira de Castro, O Corpo e a Tela, Hugin, O Aniversário, Prémio
Revelação APE/IPBL 1994, Difel, O Arquitecto, Hugin, Venite In Silentio,
Unicepe, Porto, 2004, O Sol do Tarot de Sintra, Indícios de Oiro, 2009,
Adelaide Cabete e a Palavra encontrada, Padrões Culturais, 2010, entre
outros. Foi também premiada na poesia pela SLP, tem escrito teatro,
canções, libretos de ópera, cantata, musical, texto para bandas
desenhadas. Fez crónica (“Quarta-Crescente”) para a Antena 2. Continua a
publicar crónicas em periódicos generalistas,
literários e de artes plásticas.
(http://aluzdascasas.blogspot.com).
risoletacpintopedro@gmail.com |