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Mas textos que partem
do reflexo. Que são evidente sinal não diria de sedução
vampírica mas de imersão num mundo que dialoga com os habitantes do
país das trevas e dos nevoeiros. Sem ter considerado que os monstros,
(na minha concepção), vivem todos deste lado e que, quando digo
deste lado, digo que o que os move não é a magnífica revolta, muito
menos a rebeldia, mas a assumpção do pavor e do domínio sobre os
viventes. Mas eles camufladamente têm artes de enganar - que são as
artes da sedução mefítica e despertam nos pensadores, quando calha,
“solidariedades” algo impuras que são todavia filhas dessa boa-fé que
eles arteiramente suscitam para melhor destroçarem os humanos.
Ou seja: estes dois
textos de FG partem de uma hipótese levantina, partem de
pré-concepções que, afinal, negam a própria existência da sua escrita
enquanto lugar legítimo onde a maravilha acontece e onde a quimera
finalmente cobra rosto, voz, figura e realidade. Que, em suma, negam a
poesia (que é a vida das palavras na sua máxima força) enquanto espaço
de liberdade.
Se de facto fosse real
a existência do “realismo absoluto dos simulacros”(sic), isso
significaria que fora estabelecido o relativismo dos não-simulacros, ou
seja: a proposta da assumpção da morte como valor de referência, de
natureza naturante, logo de extinção da escrita como carne pulsante,
nascente e nascida, reconvertida e podendo pôr-se a si mesma em causa
mediante a desconstrução que a poesia é.
Os monstros não podem
criar porquanto são infecundos – um monstro-monstro não é nunca
uma personagem trágica mas sim uma negação que produz
tragédia – que, como se sabe, pressupõe o humano e é a sua melhor prova,
o seu mais seguro sinal com toda a carga absoluta que isso
arrasta. (E a escrita é a busca incessante do absoluto).
O fantasma só existe
enquanto criação dum cérebro (plasmado, quando muito, num
aparelho, numa máquina de engendrar - paleta, livro, câmara de
fotografar ou de filmar - uma vez que o fantasma parte da
indeterminação do espírito e nunca parte ou é parte da carne mas, quando
muito, da sua cessação - logo da materialidade havida,
materialidade que é a única substância que pode forjar
“imaterialidades”: pensamentos, desejos, intuições fantasmas.
Precisamente por isso é que as encenações engendradas por Lovecraft
podem ser classificadas por outrem, por diversos críticos (ou o foram
por ele mesmo) como “absolutamente materialistas”. Porque
ganharam corpo na escrita, tão simplesmente. Os fantasmas, a
existirem mesmo, não seriam pois mais que realidade, logo matéria não
ficcionada. Como canonicamente desaparecem assim que são trazidos à
luz da Vida, só a escrita lhes serve de comprovação, de registo que nos
assegura que efectivamente existiram. E é este o supremo paradoxo: só
existem civilmente, reconhecidamente, se já não existirem (se tiverem
passado para o mundo dos relatos que os certificam) só existem aos olhos
dos mortais se forem matéria de memória – oral ou perpetuada em
narrativa escrita, desenhada, filmada. Porque os fantasmas, de acordo
com a tradição, não são espectáculo de multidões a não ser na Arte
(pintada, escrita, filmada), são experiência de um ou alguns poucos.
Leia-se: matéria de embuste, simulação, aparência intimidada que procura
ser intimidatória.
Vejamos agora o título
proposto por FG para o seu texto “Os
deuses estão entre nós”.
Não tomemos a frase
pelo valor simbólico que poderá veicular. Tomemo-la à letra. Para
efectuar o contraste - como se procede para aferir que algo é de
ouro ou de prata – sujeitemo-lo a uma pedra-de-toque. Por exemplo – uma
vez que a única citação directa que o trecho transporta é a frase
de Holderlin “os deuses já estão entre nós”. Então, teríamos como
contraste “os deuses já não estão entre nós” e, a seguir, “os
deuses sempre estiveram entre nós”, “os deuses nunca estiveram
entre nós” e, adicionalmente, como matéria vinda do país do humor
negro e da ironia sibilina, “os deuses estão e/ou não estão um
bocadinho entre nós”.
Consideremos, antes de
passarmos adiante, que Holderlin, o grande poeta contemporâneo de
Goethe, esteve são durante um período da sua vida e louco
durante outro. Perguntemo-nos, então: a frase foi concebida no período
de sanidade ou de loucura? No primeiro caso, perguntemos mais, ainda:
quanto de loucura nela se misturou? No segundo caso, quanto de sanidade?
E isto muito simplesmente porque a escrita pressupõe a possibilidade de
contaminação (alguns diriam: implica-a) da vida, assim como a
vida pressupõe a contaminação da escrita, tal como no resto do
texto é sugerido, proposto, assumido mesmo.
Continuando a usar a
pedra-de-toque, ponhamos: os deuses sempre estiveram entre nós.
Tal significaria que fazem parte tanto do mundo dos sonhos como do mundo
da realidade que nos é apontado. (A primeira e mais poderosa
característica dos deuses, de acordo com os cânones, é a sua ocupação
total do mundo no qual os homens se movem apenas por concessão do
alto. Os deuses são a totalidade, de acordo com os pensadores
fideístas ou com os que os citam cabalmente). Mas neste caso não
existe nem nunca existiu a soberania autónoma (mesmo que mitigada) do
homem, logo não pode existir ou ter existido a escrita “absolutamente
materialista” de Lovecraft ou outro. Na melhor das hipóteses não
passaria de equívoco (visto o autor, como todos nós, não passar
de “símio dos deuses”) quando muito mera função objectual, cobaia
ou marioneta para indescerníveis andanças divinas, sujeito de obscuro
propósito não desvelado/revelado, reflexo ou pretexto para actividades
não susceptíveis de conhecimento humano. Porque a característica
dos deuses é serem os seus manejos incompreensíveis para o homem,
que de acordo com esta proposição se deve limitar ora à aceitação ora à
expectativa.
Nesta conformidade, o
presuntivo materialismo absoluto da escrita lovecraftiana não
passaria de imagem virtual, direita ou invertida, dos propósitos
inconcebíveis, incompreensíveis, inscritos no livro dos deuses
equacionados.
Vejamos agora a outra
premissa: os deuses nunca estiveram entre nós. Se assim é, porque
são convocados/invocados? Isso corresponderá a um desejo de que o venham
a estar? Ou por tal ser uma sensação/encenação que permite o engendrar
duma escrita, de pensamento ou lucubração num continente onde um
determinado tipo de imaginário não aparece como inverosímil, não só
possível mas também credível? Porque, pertencendo pois a soberania ao
homem, este pode entregar-se sem amarras à criação e a todas as suas
contaminações?
Ou seja, poder ele
inclusivamente erguer a frase positiva, a negativa e a irónica, uma
vez que tem acesso ao lugar absoluto da liberdade. A todas as
congeminações e criações, outorgadas ou inerentes, ou conquistadas.
Passemos agora a outro
ponto, vejamos os pressupostos em actuação: se não há, do ponto
de vista da criação, verdadeiras diferenças entre escrita, cinema
e vida (sic), porque é que há da sua forma própria vida,
cinema e escrita? Poderia haver só escrita ou só vida ou só cinema… No
entanto sempre houve vida, a dada altura passou a haver
escrita e, muito mais tarde, passou a haver também cinema.
Então, de duas uma: ou os sinais são o mesmo operativamente ou
têm equivalência quando considerados. Se são o mesmo, tanto faz viver só
no celulóide como só no quotidiano, viver só na folha de papel ou só na
película – o que é uma inviabilidade provada pois é a vida
quotidiana que vai ao cinema, que o faz, que produz escrita – sendo por
seu turno contaminada por estes desde sempre a partir do
surgimento deles.
É necessário, para
chegarmos a algo num continente não-fantasmal, que concluir: os
sinais têm equivalência. Mas a equivalência (como e qual?) não é nem
significa identidade, antes pressupõe a diferença. É
porque estão separados absolutamente que há cinema, vida e escrita. É
por isso que a escrita e o cinema – a Arte – multiplicam as vivências;
se estivessem juntas, em identidade, estariam sempre mergulhadas num
universo extático, num limbo gelado, infecundo, espectral e portanto
proto-vampírico.
Há um dado ponto,
como os surrealistas antes e depois da letra descobriram ou constataram,
em que várias realidades (sublinho, realidades) se unem. Por
outras palavras: a poesia une-se à vida. Nalguns pensadores tal
facto parece-lhes ser a existência de uma matéria contendo sinais
contrários tendo o mesmo valor operativo. Em termos morais: o mal
igual ao bem, o mal ser o bem ou o bem ser o mal. Ou seja: existir uma
matéria una, múltipla, constituída pelos dois polos.
Todavia, a prática
alquímica ensina-nos que as coisas se passam de maneira bem
diferente: existe a matéria afastada contendo em potência,
desordenadamente, o mercúrio filosófico e o enxofre filosófico.
Convenientemente excitados pelo sal tratado pelo duplo homem
igneo, transfiguram-se. Depois de várias operações que não interessa
trazer a capítulo e subidos vários degraus da Obra, acaba por se
entrar na posse da matéria próxima que a seu tempo iluminará o
vazio mediante a sua própria iluminação.
Noutro plano: a palavra
só tem poder transmutatório se se reconverter tornando-se outra coisa –
palavra livre em conjunto, forjando uma frase livre ou seja, real
e coerentemente ligada à sua figura com reflexo no espelho da
existência (ao contrário do monstro, que não tem reflexo por não ter
vida).
E é por isso que não há
incarnação doente, mutante, produtora de seres híbridos e impuros
(sic). O que há, neste plano, são projectos de incarnação que só
podem existir por terem seguido a “via mala” no meio-caminho
entre a vida e a morte; seres de mistura e de desordenamento
como o dragão escamoso dos sábios. Note-se, entretanto, que pode
haver sobre eles uma luz, mas é a da falsa estrela que os
alquimistas bem conhecem e que aparece pouco antes do derradeiro
tour-de-main, armadilha colocada aos incautos pela Senhora da Luz
para lhes testar a sabedoria, passo final antes da suprema iluminação
que os levará aos confins do tempo e do espaço, à poesia das coisas e do
que vive no seu interior, uma vez que o que está dentro é como o que
está fora, atingido desta forma e só desta forma o milagre de
uma coisa só. Se o operador (o poeta, o pensador, o
alquimista) se deixar embalar nessa falsa certeza, pese às aparências
mundanas irá dar a um lugar onde só há choro e ranger de dentes,
onde só existe frio e escuridão.
Reparemos num detalhe
que convém recordar: de acordo com a tradição, o vampiro é o produto do
esperma masturbatório que caíu num solo absolutamente
infecundo, logo impuro. É por isso que ele é não mais que simulacro
não criativo, aparência de vida, mentira absoluta e absoluta violência.
Repare-se ainda que o Engendro de Victor Frankenstein, segundo
Mary Shelley, é formado por fragmentos de mortos, juntos (e não
unidos harmoniosamente) pelo poder da electricidade (de fora para
dentro, enquanto na vida a força vem de dentro para fora). Ou
seja: pelo poder da tecnologia, que no Frankenstein moderno aparece -
ainda mais reveladoramente - através das multiplicações
produzidas pelos computadores. Dizendo de outro modo: pelo poder da
nova diplomacia, que detém tanto o poder de criar monstros
(ultimamente, os livros e filmes de vampiros para adolescentes) como de
criar novos engendrados literários que só produzem uma escrita
morta, deturpada e medíocre.
No segundo texto de FG
refere-se, citando Nodier, que o homem dum tempo a vir viveria
simultaneamente duas vidas, a diurna e a dos sonhos. A primeira
seria então permeabilizada pelo vampirismo existente no mundo onírico ou
das imagens insubstanciais. Essa, real e material, onde se pode
escolher, onde existe o espaço de liberdade (cf. Cesariny, que dizia
lucidamente num poema que em vigília é possível optar mas se é sonho
tem de se ir mesmo...) ficaria inteiramente preenchida pela
fantasmagoria dos sonhos que se têm a dormir, dos sonhos que fornecem
por vezes encantamento mas não têm poder criativo no seu próprio
plano. (Aqui, recorde-se o ditame “Os que sonham de olhos abertos
têm possibilidades de achar coisas que os que só sonham de olhos
fechados nunca encontrarão”). Por outras palavras: a substituição da
vida onde é possível criar objectos, relacionamentos, arte e o acesso à
sabedoria, pela vida obrigatória dos sonhos - similar ao
entorpecimento provocado pelo ópio, pelos diversos ópios, que parte de
projecções que a dado passo são pesadelos.
A vida do quotidiano,
com a liberdade de criar a que se tem inteiro direito, deve pôr-se em
guarda contra a contaminação de um pretenso sonho figurado que tenta
ocupar o espaço real e que é constituído por todas as imagens dadas como
uma realidade, mais, uma verdade actual e performante. A mais
pura liberdade vive entre, por um lado, o espaço constituído pelo
direito de o escritor ou o artista por extenso, o homem, criar
encenações que finjam ser a verdadeira vida e, por outro lado, o
direito de se recusar a ser ficção como se existisse apenas
nelas.
Porque, de facto, o
homem não vive duas vidas – e sim uma, mas por mor da sua soberana
imaginação pode visitar o outro planeta (a escrita, o cinema,
toda a arte), sem que dele ou dos deuses que o habitam constitua mero
símio ou mero reflexo.
A não ser assim, corre
o risco de - por obra da armadilha aludida atrás - se tornar
carne para os monstros, quando não carne dos monstros. Tanto a
arte como a vida – como a literatura – estão longe de ser mera encenação
para acatitar monstros ou deuses. E muito menos são um sonho
passivo ou enlouquecido – de simples mortos-vivos difundindo a epidemia
dos que tentam aguardar nas trevas a figura impoluta do homem
para eficazmente a devorarem, tal como se passa no mundo que os poderes
discricionários buscam ainda hoje dominar inteiramente.
Post Scriptum
- A hipótese central e imaginativa/argumentada posta por Lovecraft em
“O caso de Charles Dexter Ward” é clara por diferença na sua
constatação: não são
mortos
que voltam numa condição mutante/mutada mas sim
não-seres
que tentam apoderar-se de vida mediante práticas de permanência
espúrias; não uma outra espécie a vir presente futura, mas simulacros,
tentativas de um reflexo condenados por isso ao inevitável
desaparecimento.
O livro, sublinhemos,
chama-se por isso “The case of Charles Dexter Ward”(e não “Os mortos
podem voltar”) ou seja: o caso de um vivo, de um indagador que,
por armadilha de um simulacro, foi colhido no caminho para a
sabedoria, para o conhecimento. Morreu porque tentava compreender
ingenuamente (isto é, sem se precaver), porque não conseguiu escapar ao
retrato em que se plasmava Joseph Curwen. A meu ver, por esta
soma, o título dado na primeira edição portuguesa não é justo, porque o
que tenta reflectir é uma acção postergadora dum direito evidente,
existente, soberano e inscrito na espécie ela mesma: não voltar.
Esse título acontece por mero detalhe editorial, eventualmente por
pequeno sensacionalismo da época.
Adicionalmente,
diga-se que a morte (a calcinação, quarto degrau alquímico,
negrume do corvo místico) é referida duma maneira cabal e
esclarecedora por, entre outros, Bernard Trevisan e Fulcanelli. No caso
português, em José Anes e em textos avulsos de modernos alquimistas que
têm difundido a sua obra através dos meios editoriais normais. |