REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 01

 

Se nada sou, não me procuro

A

Mário de Sá-Carneiro

Não sei quem sou, nem o que sou, nem porque sou...
Nunca nada está plenamente apreendido ou conquistado,
Toda a posse é limitada e todo o conhecimento é incompleto e vago.
 
O que define o que sou é uma função de onda,
Onde as soluções são Tudo e Nada:
— Sou Tudo quando vivo… Sou Nada quando nada sinto…
 
A vida está onde o corpo se sonha e se ambiciona.
A morte encontra-se onde o corpo se coloca sem respirar…
 
Há dias em que existo, sendo visível no que de mais ínfimo há em mim…
Noutros dias, sou majoração da minha ausência. Nada sou…
Se me procuro, não me acho onde me procuro.
A noite inconsentida antecipa-se à vontade que tenho de encontrar-me...
 
Não sei quem sou, nem o que sou, nem porque sou…
Nunca nada está plenamente apreendido ou conquistado,
Toda a posse é limitada e todo o conhecimento é incompleto e vago.
 
Procuro-me onde me ache, se alguma coisa sou…
Se nada sou, não me procuro,
Por não haver quem procure e por que procurar…
 
Penso nos lugares longínquos onde já estive.
Descubro os lugares onde o meu coração sempre bateu…
Sou Tudo!…  Até, de novo, o Nada me tomar…
 
Não sei quem sou, nem o que sou, nem porque sou…
Nunca nada está plenamente apreendido ou conquistado
Toda a posse é limitada e todo o conhecimento é incompleto e vago.
 
 
Joaquim Carvalho
Paço de Arcos, 26 de Setembro de 2008

 

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
   
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JOAQUIM CARVALHO

 

Realidades e Mitos 

                                                                Joaquim Carvalho      
   

O vácuo que é

não te ter por perto


A

Natália Correia
 

O longe de ti
é perto do mar...
 
Se a imensidão da espuma atravessa o vácuo
que é
não te ter por perto…
Se a clorofila das algas
ata a mim o teu deserto…
nasce a ânsia do vento sul
a recriar-te…
 
O amor que então me embala
toma
o longe de mim
por perto
e a brisa leve dilui tua lonjura no meu mar…
 
Assim teu corpo se torna meu corpo…
 
Os dois existimos unos, habitando a mesma estrela
mãe
da luz de duas luas
reflectidas,
em cada instante nos meus olhos,
nos teus olhos…
com vontade incessante de procurar
a casa
da qual a morte está sempre ausente …
 
Porque encontrámos a casa, não mais haverá epitáfios nem pedras tumulares.

Torres de luz



A

Urbano Tavares Rodrigues

Não, não falo dos grandes rios Douro ou Tejo.
Falo do rio Ardila onde, à noite, gotas de luar
erguem torres de luz,
no breu das lágrimas mais profundas,
choradas pelo céu sobre o seu leito,
acoitado entre serpenteadas margens.
 
O caudal estival, por ser pequeno, permite que as margens
quase se juntem.
O céu que nesse fio de água se reflecte,
reduz-se a apontamentos breves e dispersos
que não desaguarão no Guadiana, por secarem muito antes
do encontro desejado.
 
Nos dias que nascem de noites mais frias
o orvalho, que veste de prata a vegetação que orla o rio,
aquece,
esfuma-se e esvoaça, indo ao encontro de outras paragens.
Ao achar de novo o frio, o vapor condensa em chuva e,
mata a sede das pastagens,
se não se acrescenta ao seu próprio caudal,
ou ao de outros rios guardadores de sedes saciadas.
 
Nos dias mais quentes, nas clareiras de sol espesso
suado sobre os campos,
surgem gaviões audazes, indomáveis,
a celebrarem com cânticos de liberdade
a liberdade dos seus voos!…
 
O eco desses cânticos triunfais
transmuta-se
e ressuscita ânsias de liberdade, guardadas nos corações
das gentes que sempre cultivam campos que não são seus —
Que não têm de ser necessariamente seus: só é dever o trabalho
ser-lhes justamente pago…
 
Campos regados por papoilas de suor e sangue
não alimentam pombas brancas!…
Semear fraternidade por querê-la universal é o caminho
que engrandece tudo e todos…
Sem ninguém a negar ou a ignorar a existência do outro
não mais se morrerá
no antigo triste-sofrido-existir!...
 
Não mais haverá gente que de seu só tenha a fome
e vontade de a não ter!
 

A Velha Casa


A

Luiz Pacheco

A Velha Casa,
 
são as ruínas de que é feita a alma que nunca tive.
Havendo-a tido não haveria ruínas. Ao invés,
haveria o que nasce dos sonhos ausentes —
construções de nada, impérios de vazio:
as mais puras formas descontaminadas de dor.
 
Edificada com tijolos imperfeitos e pedras não aparadas,
a Velha Casa é feita da realidade, com verdade nua e crua
semeada e colhida na hora —  sem programação precisa ou imprecisa — ,
simplesmente porque a programação não existe!...
Nela, o sol sempre me faz confrontar com minhas próprias sombras.
Que sempre são maiores do que Eu...
 
A vida que me é consentida, é de sombras que se ergue!,
desenhada sobre caixões por não-luz emitida por humanos seres.
Seres que ignoro para desmotivar que, por puro engano, me concedam a mercê
de poder ser celebrado!... Antes ser Ser anónimo no meu pressago!
 
Todo o sítio aonde chego está precocemente ocupado pelas sombras que projecto.
O sol incide sempre nas minhas costas, sem nunca me enfrentar.
Talvez por temer que meus olhos, quais buracos negros,
lhe captem toda a luz e o apaguem!...
 
A alma não me habitou nunca! Por isso habituei-me a ser
— e sou! —,
casa desarrumada!..., livre, na vontade genuína e rude que tenho de prevalecer.
 
Sem ter encontrado as mais puras formas descontaminadas de dor,
desde o primeiro fôlego que caminho para poente,
enfrentando a escuridão das sombras que a razão e os meus olhos abarcam.
 
A morte desenrola-se, por fim…
 
A arrumação do Mundo que me coube percepcionar,
foi bem pior do que aquela que me tocou ter!
 
Casa Velha desarrumada fui...
 
Se Cristalizar e, ao terceiro dia ressuscitar, como filho anónimo
do mesmo Deus distante,
 
outra vez quererei sê-la!
 

Carro verde ou…

A

José de Almada Negreiros

O carro verde roda na relva,
O carro verde rola na erva,
O carro verde desliza na selva…
 
 O carro é verde!
 Sempre,
 O carro é verde!
 
Ó… tanta chuva!

O carro verde atola-se na lama sob a relva,
O carro verde atola-se na lama sob a erva,
O carro verde atola-se na lama sob a selva…
 
Ó… onde está o carro verde?
 
O carro verde já não é verde,
O carro verde já não é…
O carro verde,
O carro…
 
É lama prenhe de carro verde,
É lama sobre carro,  
É lama verde,
É lama!
 
Ó… tanta chuva!... Tan-ta-chuuu-va!...
 
Por quê?... Pa-ra-quê?!
 
Para devolver o carro verde à relva,
Para devolver o carro verde à erva,
Para devolver o carro verde à selva!
 
Ó… a chuva parou!...
 
Por quê?... Para quê?!
 
Para eu poder sair do carro verde e não me molhar,
Para eu poder sair do carro e não me molhar,
Para eu poder sair e não me molhar,
Para eu não me molhar,
Para eu…,
Para…
— Que tens tu com isso?!

Sete sons perfeitos soam!...


A


Artur do Cruzeiro Seixas
 

Os olhos deixam adivinhar, do alto da tua vontade,
O quanto está longe aquilo que buscas.
O lado de lá do infinito, virgem de ti,
Espera enfeitado de sete sois, a seduzir-te!
 
Cá, sete patas de sete cavalos alados,
Percutem sete cordas de sete femininas guitarras:
Sete sons perfeitos soam!... Toda a música pode ser criada!...
 
Que motivação maior terá de haver para ficares?!
Todos os voos serão possíveis!...
 
As asas que a ti se prendem,
Deixar-te-ão voar se, pelo menos uma amarra, te segurar ao sonho do voo,
Sem perderes a ligação ancestral à Terra, que sustentas no teu dorso.

Sonho/ Realidade


A


Fernando Pessoa

 
I

Está prestes a acontecer o tempo perfeito
Que releva todos os tempos imperfeitos:
— As luzes da procissão esperada
Estão já acesas a recriar o atemporal luar
¾ Os anjos da respiração matinal
Entoam já o atonal som do mar!...

O gáudio que se sente é triunfo por estarmos vivos
Na galáxia onde tudo e todos fomos feitos:
— Porque tudo e todos, se cumprem, são glória!...
— Porque tudo e todos, se cantam, são bandeira!...
Nem a multiplicidade se chora!
Por se incorporar na vitória das partes que se cumprem e se cantam...

II

Acordo... Tristemente, acordo!...
Os cânticos, afinal, são gritos!

O eco da dor que me fere
Confunde-se com a dor de setas, de lanças, de punhais...
Confunde-se com a dor reflexa do uivar dos lobos em festim de carne viva…
Confunde-se com a dor da ingestão de venenos ferventes… De ácidos letais!...

O som dos rios que ainda correm é vermelho! O odor do sangue é salgado!…

Todos os cantores que se escutam cantam amores impossíveis…
Todos os amores que rumorejam são abruptamente acabados!...

Nunca as verdades me traíram tanto um sonho!...
Nunca as verdades me sangraram tanto a alma!...

De tudo o que em mim começa ou de mim se abeira
Nada e ninguém é glória... Nada e ninguém é bandeira…
Só impérios de tristeza se vislumbram…
Só impérios de morte nos esperam…

Afinal tudo é imperfeito e passageiro!...
Nada e ninguém se canta… Tudo é sofrimento e nevoeiro!…  

Rosa atonal


A

Clotilde Rosa

Força telúrica sempre grávida de sons!...
Mãe perene!, mãe eterna!, mãe infinita!
Sempre mãe!...
 
Escuta o som das dunas silenciosas,
Como quem ouve o som da harpa de Deus…
Escuta o som do vento,
Como quem ouve o som matinal, na alma dos que cantam a natureza de todas as coisas…
Escuta o som do mar, como era o som do mar no princípio… Som primordial…
Único som… Som composto de todos os sons…
Verdadeiro e inteiro, primaveril espaço atonal…
 
Em cada manhã, acorda os sons complexos do Universo mais antigo…
Cada som isolado no seu pensamento é vibração de frequência perfeita…
Do seu rosto, velado por luz cativa em sua alma,
Transparecem sons,
Simultaneamente modernos… e ancestrais…
A um tempo, doces e ternos… a outro tempo, fortes e mágicos…
Esses sons cantáveis pelos instrumentos que a sensibilidade lhe dita,
Inscreve-os na pauta viva que são todas as linhas do seu rosto,
Criando sonoridades surpreendentes, onde a liberdade é cerne de cada som…
 
A sua música germina no universo dos sons cantados
Por Veladoras de sonhados marinheiros…
Por Faunos escondidos em bosques…
Por Sereias…
Por Amores enlutados...
Por Amores impossíveis… Por possíveis Amores de gente comum…
Por todos os Amores…
 
Acredita em Deus e questiona-O… Há momentos em que O não entende…
Desespera!… Grita!… Chora!…
Por buscar a eternidade, lembra-se das borboletas que se esquecem de morrer
No final de cada verão…    
Logo um sorriso largo lhe seca os olhos a plantar um jardim florido no seu rosto!…
Jardim de rosas bravias e meigas….
Rosas de si…
Rosas!...
 
Se lhe chamam rainha de reinos onde não reina, sofre!
Sofre por querer ser apenas Rosa!…
Rosa primaveril… Rosa estival… Rosa outonal...
Só Rosa de si!... Rosa, rosa...
Rosa atonal...
 
Rosa atonal para sempre!... A soltar pétalas de todas as cores de suas mãos inteiras!…
Do corpo inteiro a fazer nascer sons,
nas cordas da harpa que Deus lhe emprestou!... 

Oiço a voz da Terra


A

Miguel Torga

Oiço a voz da Terra
a desejar versos de verde oiro em cada encosta de serra…
Oiço a voz do homem
a vislumbrar versos de searas de  hóstias em cada boca vazia…
 
Se a serra reverdejar a eito, pão para todos será conquistado…
 
De enxada na mão, retinem desesperados ais,
que soam não-canto dolorido,
sempre que a enxada morde as pedras escondidas
 
A cavar a terra dou vida à serra, em troca de vida minha…
 
É assim a dureza da serra…
É assim a dureza da terra…
É assim a dureza da vida...
 
Porque o esforço é grande,  
papoilas ensanguentadas, soltam-se dos braços
e  tingem de vermelho a terra amanhada.
São a cor dos gritos ao céu pelo meu martírio…
 
Os regos que na terra abro e semeio, albergam a minha respiração cansada…
Infinitamente cansada… porque quase não respiro, e sangro…
Sangro a vida até ao corpúsculo mais ínfimo…
 
Da quase não-vida me assomo...
Da quase  não-vida me assumo…
Da quase  não-vida me tomo…
 
E quando tudo parece acabado,
o sol e a água do sangue esvaído,
fazem nascer da terra respirações ténues de clorofila,
que hão-de dar pão!…
  
Assim,
dispo da dor o corpo!…
E assim o visto com um macio manto!…
 
Em vez de enxada ganho um ceptro!
E porque o oiro se desfez em pranto,
 
é de céu que serei coroado!

Tudo é quase



A

Mário Cesariny

Nada é,
Tudo é quase…
 
Desço ao cerne do que é.
O que encontro é só o que julgo ser…
 
Nunca a verdade é totalmente apreendida,
Nunca a verdade é a verdade toda!…
 
Assim,
Mar não é o mar. É quase toda a Terra…
Sombra não é a sombra. É quase toda a luz…
Infinito não é o infinito. É quase toda a distância!…
 
É na quase toda a distância.
Na quase toda a luz.
Na quase toda a Terra,
Onde vagueio…
 
Perco-me no quase de tudo,
Acendendo sonhos que nunca acabo de sonhar…
 
Nada é,
Tudo é quase…
 
Desço ao cerne do que é.
O que encontro é só o que julgo ser…
 
Nunca a verdade é totalmente apreendida,
Nunca a verdade é a verdade toda!…
 
Assim,
Amor não é o amor. É quase e só toda a mágoa!…
Vida não é a vida! É quase e só sol da morte!...
Morte não é a morte! É quase e só silêncio inesperado!…

Dor em que te enclausuraste


A

Florbela Espanca

O nosso sorriso vivo,
por ser claro e certo,
foi como um campo de linho puro
que vestiu de branco o luar.
 
Os instantes alados de eternidade, nascidos em nós,
cedo se desfizeram…
Desses instantes restaram fragmentos de histórias que os povoaram
como quando se acorda de um sonho…
 
Onde estão agora as pedras, emersas no rio, nas quais poisaste os pés,
sempre que me abraçaste?
A altura dessas pedras era grande!… Era a altura da linha de água,
acrescida do nosso amor…
 
Hoje, no rio, só se adivinham pedras imersas,
junto da tua respiração afogada.
A fundura dessas pedras é grande!... É linha de água,
acrescida da fundura da nossa dor…
 
O rio onde o amor nasceu e correu,
foi o mesmo rio
onde o amor esmoreceu e morreu...
 
Sem mais além para ir,
a vivermos,
o futuro foi morrendo,
despindo, pouco a pouco
da alma,
a gente…
 
Sempre que cri ver-te,
tua aura esmorecida senti-a tão distante,
quanto o meu coração de mim… Por o teres levado contigo…
 
Hoje, mais do que nunca, sinto a dor
em que te enclausuraste…
Essa dor que te levou a partir imersa em água…
Sem me perguntares se queria ir contigo…
 
Sem nos darmos conta perdemo-nos entre a foz e a nascente…
Tornaremos a achar-nos no poente das coisas invisíveis?…
 
Neste instante solitário, cheio de lembranças tuas,
sou já no rio corrente vertical descendente…
 
Porque sei que ao pôr-do-sol me esperas…
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

JOAQUIM CARVALHO (PORTUGAL)
Poeta e pintor, com vários livros publicados e participação em numerosas
exposições colectivas e individuais.

 

 

© Maria Estela Guedes
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