|
FM Talvez caiba rever os
conceitos de sociedade e poeta, a ver se no Brasil nos encaixamos em
algo que possa assim ser chamado. A sociedade brasileira, do ponto de
vista cultural, está constituída de forma acidental e irregular. Seja
pela perversão com que traçamos o mapa urbano do país, ao longo de nossa
história – o acentuado desprezo pelo interior contrastando com a
fascinação irrefletida pelo litoral –, seja pela maneira calhorda com
que praticamente todos os nossos governantes trataram da educação. Por
outro lado, nossos poetas raramente reclamaram para si um papel a ser
desempenhado nessa sociedade. Evidente que não me refiro àquele equívoco
papel que deforma a estética em nome de uma frustrante atuação política.
A linguagem poética, por exemplo, jamais foi pensada como um elemento
constituinte de uma sociedade, como um valor cultural a enriquecer sua
formação. De maneira que em meio ao comércio das vaidades eu não sei se
sobrevive algo de humano na poesia ou na sociedade no Brasil.
MS Tendo em mente algumas
linhas de pensamento correntes, você acredita que a literatura, numa
sociedade massificada, injusta e muito pouco ética, vem correndo o risco
de se tornar, por um lado, apenas repetição, subproduto destes fatores e
mera reprodutora dos valores ostensivos do sistema vigente? E, por
outro, espécie de “realismo” que a torna “esgoto” para onde confluem a
expressão dos “recalques e podridões” do humano?
FM Eu penso que há muito
estamos produzindo uma série infinita e despreocupada de relançamentos –
e não me refiro aqui a reedições e sim ao caráter reciclável da escrita.
Não se trata de literatura, mas antes de cultura de massas. Envolve as
demais artes, colocando-as todas na condição de passatempo. É muito
curioso observar que escritores sempre se sentiram uma entidade à parte,
e que agora se encontrem, como artistas que são, porque afinal o que
produzimos todos – poetas, músicos, pintores, dramaturgos – é arte, que
agora se encontrem todos reunidos pelo pior, como títeres de uma
indústria cultural que subverte a lógica e todos aceitamos tacitamente
não haver distinção entre produção artística e produção industrial, como
se escrever um romance, por exemplo, fosse apenas fase de um processo
industrial. O indivíduo desaparece duplamente, como criador e como
espécie humana.
MS Ainda é viável um
sentido de resistência e crítica no trabalho literário, uma vez que o
próprio poeta está forçosamente inserido nesta estrutura social para sua
sobrevivência e atuação?
FM Este é um dos argumentos
mais torpes a que alguém pode recorrer. Artistas sempre comeram,
casaram, compraram instrumentos de trabalho e todos sobreviveram e
seguem sobrevivendo. Se uns foram mais felizes ou desafortunados que
outros, creiamos em destino ou não, esta balança ou funil sempre fez
parte da vida dos criadores. No caso dos escritores, a história está
repleta dos que trabalham em bancos, dão aulas, receberam heranças
familiares, tiveram livros adaptados para o cinema ou simplesmente
recorreram ao mais comum dos truques de sobrevivência: buscaram uma
parceria amorosa que os sustentasse. Aqueles que se renderam facilmente
que não me venham com o argumento de que a sociedade os forçou a tanto.
A vida nunca é fácil, por mais que aparente sê-lo.
MS As ideias de rebeldia e
desregramento – oriundas da poesia – esgotaram-se ao se tornarem
produtos – se pensarmos na indústria da música e no modismo envolvendo a
cultura das drogas, cada vez mais afastada de qualquer sentido e valor,
bem como na “institucionalização” dessas atitudes, relacionadas a uma
faixa etária – ou ainda é possível uma rebeldia e um desregramento
autênticos como meios viáveis para o poético, uma vez que, segundo dizes
“vivemos numa sociedade domesticada”?
FM É verdade, nos
convertemos em um imenso zoológico, que é o melhor exemplo de sociedade
domesticada. Agora, as idéias se esgotam e talvez este seja um de nossos
dilemas, o de que queremos aplicar ao dia de hoje idéias que foram
valiosas em outra circunstância. Eu sinceramente não gosto dessa leitura
da arte como fonte de rebeldia e desregramento da forma datada como
estes conceitos são interpretados. É puro saudosismo. Não tem cabida
querer povoar o século XXI com Baudelaire, Rimbaud, Artaud, Pasolini,
Jim Morrison. Românticos, simbolistas, surrealistas, beatniks, tiveram
um papel inestimável e valem como balizas, como referenciais
substanciosos da cultura. Em uma de minhas viagens ao exterior, alguém
indagou sobre Paulo Coelho. É comum esse tipo de clichê, o sujeito vem
do Brasil, terra de samba, carnaval, futebol, Paulo Coelho e corrupção.
Eu estava sem muito apetite para a polêmica neste dia e me saí com a
frase: houve uma época em que o Paulo Coelho era o maior problema da
literatura brasileira; hoje é o menor. Depois mastiguei bem o que disse
de rompante e vejo que é exatamente isto. Sorte dele que inventamos uma
tolice maior. Todo grande criador em qualquer tempo é naturalmente
rebelde e rompe com as regras que são as características de sua época.
MS Você escreveu que
acredita que “a realidade se expressa de maneira mais viva e desimpedida
quanto mais lhe permitimos multiplicar-se em infinitas e transbordantes
máscaras”. Em que medida esta realidade de que você fala se relaciona
com a realidade construída e reafirmada cotidianamente pelos meios de
comunicação de massa, por exemplo?
FM O termo está perfeito:
“realidade construída”. É outra forma de ficção, estou certo? O
argentino Borges disse certa vez que não há melhor exemplo de literatura
fantástica do que a Bíblia. A mídia representa este papel em nosso
tempo, o de construção de uma realidade fantástica em substituição à
vida cotidiana. E o faz com tamanha propriedade justamente anulando a
diversidade. E com tremendo sarcasmo se reporta a alguns profetas da
ficção científica como palpites sem maior expressividade do ponto de
vista real. Voltamos ao tema da arte convertida em passatempo.
MS Ainda sobre as
“máscaras”, Octavio Paz afirmou que “se a ficção do poeta devora a
pessoa real, o que resta é um personagem: a máscara devora o rosto. Se a
pessoa real se sobrepõe ao poeta, a máscara se evapora e com ela o poema
mesmo, que deixa de ser uma obra para converter-se em documento. Isto é
o que ocorreu com grande parte da poesia moderna”. Entendendo que a
afirmação de Paz é correta para a maior parte da poesia que vem
circulando no Brasil, você parece se inserir num outro polo, com uma
poesia que poderíamos chamar de “dramática”, pela multiplicidade de
vozes e ausência de uma única “persona poética”, como ocorre na lírica
tradicional. Você também afirmou que “a literatura não é nada”, ecoando
o “Todo o resto é literatura” de Verlaine. Isto me leva a uma série de
reflexões sobre as relações entre o poeta e a poesia, sintetizadas nas
seguintes questões: Acha que a poesia perde quando o poeta limita sua
expressão ao universo de sua persona social? Qual seu entendimento da
poesia e da relação desta com a literatura? E como se relacionam para
você projeto poético e projeto de vida?
FM Começo pelo mexicano
Octavio Paz, que curiosamente acabou por se converter em um tipo repleto
dos maus hábitos que sempre criticou nos outros. O poeta acabou devorado
por uma máscara que construiu: a soberba com que situou a si mesmo como
figura magistral e insuperável na lírica mexicana. Não fosse por esse
deslize de caráter, teria hoje um lugar mais tranqüilo na tradição
poética de seu país. Entre poetas portugueses, é comum conversarmos
sobre a demasiada presença de Fernando Pessoa na lírica de Portugal,
ele, Pessoa, um desses monstros sagrados que chegam a preocupar pelo
grau de influência de sua obra. No caso do poeta mexicano, a influência
foi determinada por uma questão de poder literário, o que é bem
distinto. Não nego que não tenha abordado, no ensaio literário, aspectos
fundamentais para a lírica em nosso tempo, embora suas idéias não tenham
de autorais senão no aspecto do regente que soube melhor reunir o que
estava no ar.
Mas vamos às tuas reflexões. Não
creio que seja o caso de perda. O poeta sabe com que elementos deve
lidar e a proporção com que deve situá-los em sua obra. A resultante
disto é que vai definir se houve perda ou não. Isto de querer inventar
um mundo distinto, uma querela entre poesia e literatura, é outra
pequena falácia. Eu não tenho a minha vida um minuto que seja fora do
que crio, querido. Insisto no termo criação porque é disto que se trata.
Lido com uma boa variedade de pincéis, que passam pelos assuntos
literários, onde muitos têm dificuldades de inserir a letra de canção
popular, a fotografia como recurso plástico que pode enriquecer meu
poema, as atividades dadas como intelectuais de tradutor, ensaísta, as
incursões jornalísticas etc. O meu projeto, a rigor muito espontâneo,
não é poético, e sim intensamente visceral.
MS Parece ser impossível
hoje o trabalho poético sem um largo substrato reflexivo, no entanto, o
poeta não pode reduzir-se ao pensador, como você equaciona a
racionalização e a necessidade de entrega aos impulsos no momento da
escrita? Como se desenrola seu processo criativo?
FM Sempre foi. Não se cria
irrefletidamente, ao mesmo tempo em que nenhuma criação deve se limitar
unicamente aos esboços, às anotações de intenção. É uma tolice criar uma
impossibilidade de diálogo entre essas duas instâncias. Eu poderia
simplesmente dizer que crio vivendo, que no fluxo diário de minha vida
os poemas vão jorrando. Não é bem verdade. Busco certa disciplina, fico
atento a leituras que se inter-relacionam, como estar vendo um filme e
de repente aquilo lhe puxa para um verso lido em um poema e este poema
traz consigo a recordação de que foi lido sobre os seios de uma mulher
enquanto o vinho que tomavam por acaso era o mesmo que a cena no filme
menciona. O trabalho fotográfico que venho fazendo agora – e adoro que
uma amiga, Tânia Tomé, poeta de Moçambique, o tenha percebido como “um
entranhar de carnes entre os versos” – é uma seqüência do verso, seu
desdobramento que poderia ser na forma de um filme. Aprendi isto muito
com a relação entre poema e colagem que encontrei no chileno Ludwig
Zeller. A rigor a arte não para quieta. Por vezes, quem não sai do canto
é o artista.
MS Pensando numa distinção
em voga na historiografia literária, que propõe a separação entre uma
poesia “cerebral”, “meditada” e outra “de inspiração” e “entusiasmo” (na
qual se inseriria o surrealismo), faz sentido a separação, ou seria um
mero maniqueísmo esquemático?
FM Uma tolice que não tem
mais tamanho. Mas que agrada aos poetas, por situá-los em uma condição
superior. O que o surrealismo propunha era livrar-se dos excessos da
razão e não estabelecer tal maniqueísmo.
MS Você tem sido um dos
responsáveis pela reformulação do que se entende na historiografia
literária por surrealismo, ao mesmo tempo em que aponta a “falácia
conceitual” e a “derrocada do sentido” como elementos definidores do
nosso tempo. Acredita que há relação entre as duas coisas? Crê que no
meio da confusão generalizada uma voz coerente e independente possa ser
mais facilmente ouvida? Qual o papel da Internet neste contexto, uma vez
que suas ações vêm ganhando visibilidade por esse meio?
FM Eu sinceramente creio
que este papel é ainda muito pequeno nessa releitura da atuação do
surrealismo em nosso continente. Não se trata propriamente de
reformulação. Como disse em seminário na Universidade de Cincinnati
(primeiro trimestre de 201o), e que consta do livro que escrevi e que
serviu de base para este evento, a ausência de um estudioso que fosse
criterioso em relação aos desdobramentos do surrealismo em todo o
continente, sem situar as perspectivas estéticas do movimento, agravou a
percepção de sua real influência em nossa cultura. O surrealismo no
continente americano deixou de ser visto como um aspecto fundamental na
construção de uma vanguarda americana, e passou a ser visto como amém ao
espírito vanguardista europeu. E agora o cuidado é também no sentido de
evitar que o tema não caia na malha enganosa da história como algo que
pertence ao passado, nada mais. A Internet é todo um capítulo à parte,
estamos apenas ao princípio de uma impressionante expansão de meios e
aos poucos vamos nos livrando da pior armadilha de qualquer inovação
tecnológica aplicada à arte e à cultura, a de confundir meio e
mensagem.
MS Você pode falar um pouco
de sua trajetória? Você estreia precocemente aos 21 anos, em 1978, mas
sua poesia atual surge com o início da década de 90, o que aconteceu
nesse entremeio? Foram anos de amadurecimento?
FM O amadurecimento não é
uma estação de águas. Está aqui presente o tempo todo. O buraco de tempo
entre 1978 e 1992 foi preenchido por muitas coisas, inclusive a
publicação de livros. Sim, livros em São Paulo, no Rio de Janeiro, em
Fortaleza… Acontece que um dia eu dei por conta de um detalhe, o de que
eu era um cronista e não um poeta, naquele sentido em que eu me
distanciava de minha escrita, não me inseria nela senão como observador.
Uma bela manhã e a conjunção de fatos assim descritos: a visita ao leito
de morte de minha avó materna, a canção “Guilty” na histórica gravação
de Joe Cocker, o livro A experiência interior de Georges Bataille, e um
vinho branco de má qualidade levaram-me à mesa de centro na sala de
minha casa onde por três manhãs vivi um ritual que resultou na escrita
de Cinzas do Sol – poema mágico que já foi publicado no Brasil,
Inglaterra, Costa Rica e Venezuela –, onde se dá justamente este
surgimento do autor como personagem do que escreve. Foi uma mudança
radical em minha poética, que antes não padecia de ausência de voz
própria, mas que então encontrava uma outra que lhe era mais atrativa.
MS Sua poesia concentra sua
inventividade no plano semântico e expressivo, enquanto sintática e
morfologicamente parece ser mais linear, articulando-se inclusive em
torno do “tu”, praticamente ausente da linguagem oral no Brasil, não há
aí o risco de artificialização da linguagem, afastando-a das modulações
do português falado e ouvido neste canto do mundo?
FM Um poeta mexicano
recentemente me disse que era curioso um cara falando em vanguardas,
destacando-se como estudioso das vanguardas, ao mesmo tempo com um poema
clássico. Eu não sei se o problema está na linguagem da escrita ou em
sua correspondência cotidiana. Lembro que o Henri Matisse certa vez
observou uma coisa brilhante, algo mais ou menos assim: se eu não posso
enriquecer a fala popular, por que tenho então que empobrecê-la? Acho
que nós artistas estamos caminhando em um mundo muito curioso, que
estima pela pobreza espiritual, pela pobreza estética, enfim, por toda
sorte de pobreza. É o que parece, que cultuamos a pobreza como a grande
riqueza de nossa época.
MS Em entrevista, você
afirmou que “se não há poesia, temos que entender que isto se dá pela
ausência do elemento humano”. Nesse sentido, sua atuação tem sido
pautada tanto pela prática como pela cobrança de “honestidade
intelectual” por parte de pesquisadores e escritores, crês que valor
humano e envergadura de pensamento são, de maneira geral, fatores
desconsiderados na apreciação atual de poesia?
FM Sinceridade, sobretudo.
Eis a palavra temida. Claro, claro, não há música ou poema ou teatro,
sem a atuação do humano em seu sentido radical, na presença sanguínea do
criador. Agora, inventamos uma sociedade desonesta em que os artistas
não são vítimas e sim parte dela. Acabamos com tudo, nossa época é de
pura prevaricação de mercado, agenda de passatempos, somos todos
coniventes disto. Meu antigo parceiro na editoria da Agulha – Revista de
Cultura discordava de mim quando eu dizia que somos todos responsáveis
pelo estado atual de pobreza espiritual em que nos encontramos no Brasil
e que nos faz refém de toda investida vagabunda, seja na política, na
cultura, já não importa. Vamos piorar. Estamos a meio passo de um
desastre. Não se trata de campanha política, e sim da vergonhosa
ausência de um norte, de algo em que acreditar. Nunca a política e a
cultura no Brasil estiveram tão sócias da mesma fraude de circunstância.
[Fortaleza, Natal, abril de 2010] |