REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 01

 

Introdução


Conhecendo a obra do naturalista Alexandre Antonio Vandelli (1784-1862) esclarecemos ainda mais o pensamento científico que fluía de Portugal para o Brasil nos oitocentos. Naturalista luso-brasileiro, foi herdeiro de duas grandes mentes da ilustração. Seu pai, Domingos Agostino Vandelli (1735-1816), naturalista paduano da reforma pombalina em Coimbra e Lente jubilado da mesma Universidade. E do sogro, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), que viu em Alexandre Vandelli seu orientado e ajudante desde 1813, quando ambos trabalharam em Portugal no Laboratório químico da Casa da Moeda. Atuou em diversas áreas, tanto em Portugal quanto no Brasil. Alexandre Antonio Vandelli foi um dos últimos de sua geração que legou a Portugal e ao Brasil uma reforma eminentemente ilustrada de pensamento. Foi um autêntico pensador iluminista, oriundo de terras portuguesas, em um momento histórico no qual havia ainda um grande Reino luso, e que terminou sua história em um Brasil que ainda buscava construir sua própria identidade.

 

 
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Maria Estela Guedes  
   
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ADÍLIO JORGE MARQUES

 

A importância de

Alexandre Antonio Vandelli

no naturalismo luso-brasileiro

 

                                                                    Adílio Jorge Marques
 
 
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Additamentos ou nota à Memória geognóstica ou golpe de vista do perfil das stratificações das diferentes rochas que compõem os terrenos desde a serra de Cintra até a de Arrabida.

Estampa IV dos “Additamentos”. Várias amostras fósseis de animais marinhos, como focas, baleias e Arraias. Texto de Alexandre Vandelli intitulado “Additamentos ou nota à Memória geognóstica ou golpe de vista do perfil das stratificações das diferentes rochas que compõem os terrenos desde a serra de Cintra até a de Arrabida”. 1831.

Certidão de casamento de Alexandre Antonio Vandelli com a primogênita de José Bonifácio, Carlota.

Refutação da Memória: Onde aprenderam e quem foram os artistas que fizeram levantar os templos dos jesuítas em Missões, etc. inserta na revista do Inst. Hist. Geog. Brasileiro.
 

 
 
 
 
 
 
 
 

Discussão


Alexandre Antonio Vandelli nasceu em Coimbra (e não em Lisboa, como normalmente observado) em 27 de junho de 1784 quando seu pai, Domingos Vandelli, trabalhava para o governo português e realizava importantes experiências com o vôo de pequenos balões na Universidade daquela cidade. Sua mãe chamava-se Feliciana Isabella Bon. Infelizmente, não há qualquer registro iconográfico de Alexandre Antonio Vandelli e de seus familiares.

Desenvolveu-se nas leituras naturalistas com seu pai, expoente português da ciência lusa Iluminista, tornando-se, desde 1813, ajudante de José Bonifácio de Andrada e Silva.

Na capital Lisboa, no bairro de Arroios, Alexandre casa-se a 18 de fevereiro de 1819 com Carlota Emília de Andrada, nascida em 20 de dezembro de 1790 e filha de José Bonifácio de Andrada e Silva, com quem a família Vandelli possuía antigos laços. Carlota é uma das duas filhas legítimas de Bonifácio com Narcisa Emília O’Leary, com quem se casou em 1790. Uma terceira filha de outro relacionamento pouco conhecido seguiria com Bonifácio para o Brasil em 1819.

A família Vandelli passou, na primeira década do século XIX, por sérios problemas políticos e financeiros gerados pela invasão francesa a Portugal, movimentos que envolveram diretamente Domingos Vandelli. Acusado de simpatizar com os invasores franceses, Domingos A. Vandelli foi desterrado com seu filho Alexandre para os Açores em 1810, e logo depois Domingos foi transferido para a Londres. Alexandre logo voltou a Lisboa, porém o pai só conseguiu retornar em 1815. Seu filho tornou-se, então, Procurador do pai durante o tempo de exílio deste, sendo também requerente, junto ao Rei, do pedido de perdão para a pena imposta ao Mestre Vandelli.

Um ano depois de voltar a Lisboa, o pai e Mestre Vandelli morre, deixando a família em difícil situação financeira, como atesta carta da viúva Feliciana Vandelli a D. João VI e datada de 1817. Nesta missiva, depositada na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), Feliciana solicita pensão ao seu filho mais moço, Francisco Vandelli, assim como para a filha Maria Luiza. A presença de Bonifácio passa a ser importante para Alexandre Antonio Vandelli e todos os seus familiares, não apenas em termos sociais e financeiros, mas principalmente até o ano do casamento. José Bonifácio já era um renomado naturalista e defensor do Império, possuindo altos cargos em Portugal.



Atividades científicas em Portugal

Alexandre Antonio Vandelli foi Assistente de José Bonifácio no Laboratório Químico da Casa da Moeda de Lisboa desde 1913. A partir de 1817, Alexandre Antonio Vandelli atua na Intendência Geral de Minas e Metais do Reino com o sogro. A partir de 1819, quando com a vinda do sogro para o Brasil, passa a ocupar interinamente a direção da mesma Intendência, especialmente em relação à Real Ferraria da Foz de Alge e das Minas de Carvão de Buarcos. Antes de ser substituído pelo Barão de Eschwege na Direção da Intendência, em 1824, Alexandre assumiu a função de Guarda-Mor dos Estabelecimentos da Academia das Ciências de Lisboa, de onde foi Sócio até mesmo quando estava no Brasil.

O Museu da Academia de Ciências de Lisboa possui ainda hoje, na seção de Paleontologia, objetos e trabalhos oriundos de naturalistas conhecidos à época: João da Silva Feijó, Barão de Eschwege e também de Alexandre Antonio Vandelli (especialmente na subseção dos vertebrados). A pesquisa de fósseis ictiológicos de vertebrados foi marcada em Portugal no ano de 1831 com Alexandre Vandelli e Eschwege, sendo que o primeiro registrou restos de cetáceos e de peixes miocênicos, classificados com boa aproximação, quando ainda era Guarda-Mor da Academia. Alexandre Antonio Vandelli é, assim, considerado o iniciador da Paleontologia dos vertebrados de Portugal. José Bonifácio havia feito sumárias referências a fósseis quando atuava na Academia das Ciências de Lisboa, mas foram escritos de menor relevância.

Alexandre Vandelli ainda propôs a organização de um Gabinete de Ciências na própria Academia de Ciências de Lisboa, como registrado no discurso feito por este na sessão pública da Classe de Ciências Naturais em 19 de dezembro de 1831. Havia a necessidade de se organizar o material de campo que estava de posse da Academia, e seu próprio pai havia deixado material coletado, assim como os alunos-viajantes do Mestre Vandelli. Alexandre também doou manuscritos de seu pai para enriquecimento do acervo da Academia das Ciências de Lisboa.

Na década de dez dos oitocentos Alexandre participou da Comissão de Reforma de Pesos e Medidas portuguesa, após as invasões francesas. Dois anos mais tarde, D. João VI aprovaria a proposta dessa Comissão, baseada no sistema métrico francês. Como era de se esperar, para a Academia das Ciências e para as Universidades, os efeitos da reforma foram logo absorvidos, o que não foi o caso da população, em especial a do interior. Evitou-se, no entanto, usar a palavra “metro”, provavelmente devido ao francesismo que evocava, sendo adotada a “mão-travessa” para a unidade fundamental. A mão-travessa correspondia ao decímetro (décima parte do metro). De igual forma, passou-se a utilizar o litro como unidade de volume (conhecida esta unidade por “canada”). A unidade de peso seria a libra, que correspondia a um quilograma. A adoção definitiva do sistema métrico decimal, com suas unidades e nomenclatura, viria a ocorrer apenas em 1852, como prosseguimento dos trabalhos da Comissão Central de Pesos e Medidas.

Além de trabalhos científicos publicados tanto nas Memórias da Academia das Ciências de Lisboa quanto nas Memórias Econômicas da mesma Academia, Alexandre produziu vários manuscritos e impressos, além de escrever cinco livros ainda em Portugal: Resumo da Arte de Distillação (1813), que foi impresso e distribuído gratuitamente pela Junta do Comércio, do qual fazia parte com ajudante; Zoologia Portuguesa (1817), em dois volumes, com informações zoológicas desde o século XVI, inclusive as do naturalista brasileiro e ex-aluno de seu pai, Alexandre Ferreira Rodrigues; Ensaio sobre a nomenclatura vulgar e trivial, e Sinonímia Zoologica Portugueza (1817); Apontamentos para a História das Minas de Portugal, colligidos pelo ajudante, servindo de Intendente geral das Minas e metais do Reino (1824); Collecção de Instruções sobre a agricultura, artes e Industria, Lisboa (1831-1832).

Alexandre dirigiu ainda uma fábrica de azulejos, situada na região do Rato, em Lisboa: a Real Fábrica de Louça (do Rato) de Lisboa, que durou de 1767 a 1835. Começou a funcionar tendo como administrador Tomaz Brunetto até 1771. Sob a administração de Brunetto a fábrica produziu peças de grande qualidade, algumas das quais foram encomendadas pelo Marquês de Pombal. Em 1818 Alexandre assumiu a fábrica. Não conseguiu efetuar tranquilamente a sua gestão sem ser influenciado pelos problemas políticos e financeiros do país, logo atravessando a fábrica sucessivas crises que culminaram no seu encerramento em 1835. A família Vandelli tinha, desde o pai, a tradição de trabalhar com louças de grande qualidade. O pai Vandelli trabalhou com a argila da região de Coimbra, onde foi Professor. Montou uma pequena fábrica em 1784, criando um novo tipo de faiança coimbrã.

Em dezembro de 1833 Alexandre Vandelli foi acusado de apoio aos absolutistas, que perderam a disputa pelo poder português para D. Pedro IV, tendo que vir com a família em exílio para o Brasil.
 


Atividades científicas no Brasil

Alexandre Vandelli e sua família chegam à cidade de Santos em 1834, financiados por José Bonifácio. Em 1838 Alexandre torna-se Diretor, em São Paulo, de uma Fazenda Normal. Em 1838 seu sogro vêm a falecer, tornando a vida do casal Vandelli economicamente mais difícil em Santos. A distância da Corte provavelmente também dificultava o sucesso profissional e financeiro de um ilustrado como Alexandre, tendo então vindo para a capital do Império brasileiro, como mostram os registros de naturalização e a posterior atividade no Palácio de São Cristóvão. Alexandre é nomeado, então, Mestre de Botânica e Princípios de Ciências Naturais do jovem Imperador D. Pedro II e da família Imperial de 1839 a 1862, desde a época do Marquês de Itanhaém. Além de ser genro do primeiro tutor do novo Imperador brasileiro, ministrava-lhe aulas de uma das áreas favoritas deste: as ciências naturais.

Torna-se Comendador da Ordem da Rosa em 02 de dezembro de 1841 por decreto de D. Pedro II. Foi um dos fundadores, em 1850, da Sociedade Vellosiana de Ciências Naturais, criada com a finalidade de incentivar a pesquisa de temas científicos nacionais. Seus sócios efetivos foram distribuídos em quatro seções, consideradas como comissões permanentes: zoologia, botânica, mineralogia e língua indígena. A comissão permanente de Alexandre ficou assim constituída:

Mineralogia: Alexandre Antonio Vandelli, Frederico Leopoldo Cezar Burlamaque, Cândido de Azeredo Coutinho, Custódio Alves Serrão.



Trabalhos científicos

Alexandre se utiliza do progressivo abandono do latim como língua de comunicação, desde o fim do século XVIII, fato que também se constituiu em fator favorável a uma maior difusão e circulação dos saberes fora da habitual comunidade de eruditos. Os vocabulários excessivamente técnicos e científicos são transpostos para uma linguagem de maior acessibilidade, o que deixa antever o sentido utilitário e pragmático de seu discurso técnico. Além dos cinco livros já listados, Alexandre Vandelli também produziu:

Experiências Químicas sobre a Quina do Rio de Janeiro Comparada com Outras. Escrito em 1811 com José Bonifácio, Sebastião Francisco de Mendo Trigoso, João Croft e Bernardino Antonio Gomes, sendo publicado em 1814.

Memória sobre a gravidade específica das águas de Lisboa e seus arredores. De 1812.

Experiências sobre duas differentes cascas do Pará. De 1818.

Additamentos ou nota à Memória geognóstica ou golpe de vista do perfil das stratificações das diferentes rochas que compõem os terrenos desde a serra de Cintra até a de Arrabida. 1831.

Ingênuos reparos e reflexões sobre o projecto de um estabelecimento agrícola, formulado pelo gymnasio brasileiro. 1850.

Reflexão sobre a questão dos nevoeiros seccos da atmosfera do Rio de Janeiro. 1853.

Retoques e rectificações a alguns elogios insertos na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brazileiro. 1851.

Refutação da Memória: Onde aprenderam e quem foram os artistas que fizeram levantar os templos dos jesuítas em Missões, etc. inserta na revista do IHGB. 1851.

Extractos sobre a nomenclatura Ichtyologica. Manuscrito doado à Sociedade Vellosiana, s.d., perdido.

Discurso sobre a nomenclatura vulgar e trivial portugueza, que deve ser preferida á que se usa na traducção portugueza de Cuvier. Manuscrito doado à Sociedade Vellosiana, s.d., perdido.



Conclusão

Alexandre Antonio Vandelli atuou nas mais diversas áreas do saber ilustrado no séc. XIX: Química, Mineralogia, Agricultura, Paleontologia, Educação, Zoologia, Botânica, Meteorologia, Fabricação de Louças, Administração. Sua atuação em Portugal é marcada por importantes feitos, como o início da Paleontologia dos vertebrados e o incremento à divulgação do saber.

A mineração lusa deve-lhe as inúmeras tentativas de continuar o projeto de José Bonifácio de um Portugal independente nesse setor econômico. No Brasil, foi um dos que ajudaram a despertar no Imperador Pedro II o gosto pelas ciências naturais, além da participação em uma Sociedade Científica. Alexandre Vandelli possui, em sua trajetória, a tentativa de sobrevivência de uma concepção ilustrada e fisiocrata de nação e de cidadania.

Talvez seja muito supor que Alexandre Antonio Vandelli, e muitos outros de sua geração, tenham tentado atingir a verdade absoluta através das “Luzes” atuando na physis, buscando um crescente aumento do saber através da ciência. Contudo, arrisco dizer que iluministas como ele tentaram, ao seu modo, levar a razão aonde havia dogmatismo e preconceito. Do livro VI da Ética a Nicômaco, de Aristóteles (2), vale citar como este Filósofo nomeia as cinco virtudes através das quais a alma do homem pode atingir a verdade (a alethéia) igualmente: a arte (techné), o conhecimento científico das coisas imutáveis (a episteme), a sabedoria prática (fronésis), a sabedoria filosófica (a sofia) e o entendimento (noûs). Todas são sendas para se atingir a verdade sobre um aspecto da vida.

No século de Vandelli, porém, e ainda hoje, episteme deve ser entendida de forma diferente. Para o estagirita, a episteme era um tipo de conhecimento normalmente indutivo e contemplativo, conseguido através do entendimento passivo das premissas particulares na busca de uma lei geral. Esse tipo de conhecimento não poderia se referir à ciência iluminista, que tinha na experimentação e na aplicação técnica a comprovação de suas verdades, justamente o ideal que permeou o meio acadêmico português no processo formativo dos orientadores de Alexandre Vandelli (Domingos Vandelli e José Bonifácio), principalmente a partir de Pombal. E na atuação ilustrada de Portugal do início dos oitocentos não era obrigatória a passagem pela Academia para que se conquistasse um lugar estre os pensadores, fato que com o tempo foi-se modificando.

 

Notas

 

(1) Texto apresentado a partir da tese de doutoramento do autor.

(2) ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, São Paulo: Martin Claret, 2001, pp. 130-131.

  Palavras Chave: Ciências Naturais, Ilustração, Alexandre Antonio Vandelli
 

 

Adílio Jorge Marques (Portugal \Brasil)
Nasceu em 1968 no Rio de Janeiro/RJ, sendo de família lusa. Possui cidadania portuguesa. Desde muito jovem é estudioso e participante das Antigas Tradições, da História e das Ciências. Concluiu o Doutorado em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, após realizar intercâmbio na Universidade de Aveiro, Portugal, sendo o trabalho com ênfase na historicidade luso-brasileira.
 
O tema da Tese na UFRJ versa sobre a vida e a obra do naturalista Alexandre Antonio Vandelli, personagem pouco estudado e filho do famoso paduano Domingos A. Vandelli da Reforma Pombalina.
 Possui Mestrado em Astrofísica estelar pelo Observatório Nacional (Brasil/RJ), com graduação em Física e em História. Atua como Professor de História da Ciência e de Física no Brasil. 
Email de contato: adiliojm@yahoo.com.br

 

 

© Maria Estela Guedes
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