Nós Não Comemos o Pão $Envenenado

NICOLAU SAIÃO


A minha resposta ao Inquérito na revista “A Ideia”, 96-98, 2019

ns

 

 

 

 

 

 

    Em Maio/Junho de 1919, André Breton descobre a escrita automática (de que tirará a noção de automatismo psíquico) e escreve com Philippe Soupault os textos de Les Champs Magnetiques, publicados em 1920. Qual o papel que esta descoberta tem hoje na sua criação e na sua vida?

   Resposta de NS

Importa, antes de mais, conferir que a chamada escrita automática não é o automatismo psíquico. Com efeito, este exerce-se sobre uma totalidade que vai além da escrita (pintura, música, etc.). Depois, deve colocar-se a tónica sobre este ponto, que já foi suficientemente iluminado e sobre o qual o próprio Breton se debruçou: o automatismo psíquico – atente-se sobre as evoluções e as análises de ponta efectuadas por especialistas do ramo – é muito mais do que nos seus começos de sistematização (pois o que os surrealistas daquela época fizeram foi mais uma sistematização que uma descoberta) se pensava.

E antes já esse automatismo psíquico fora praticado por certos autores passados, que como que num lapso encantatório frequentaram a boca de sombra, como lhe chamou Vítor Hugo, e que os surrealistas reconheceram como precursores.

Por último e concretizando, peço licença para citar o que escrevi no primeiro texto sobre o surrealismo dado a lume n’A Ideia, em 1981: “ (…) a escrita automática, posta a correr, não é o substracto do surrealismo. É que há diferença, e não minúscula, entre “automatismo psíquico” e “automatismo mental” imediato ou físico. Leia-se: um reaccionário, ou um imbecil, fazendo escrita automática apenas faz reaccionarismo ou imbecilidade. Não deve esquecer-se que os “mecanismos do hábito” continuam de boa saúde…

Para que a operação surrealista tenha possibilidades de viajar, é necessário que efectivamente o “automatismo psíquico” solte as feras do Desejo.(…)”. Para que exista uma desconstrução do que se elabora, acrescentarei aqui e agora.

   Escrita automática como veículo de facilidades para “poesia” obrar? Ora, ora…

   Como Edmund Burke sagazmente escreveu em referência a estes casos do pensamento actuante e do seu continente, por exemplo “Um tratante será sempre um tratante, quer se enroupe com a asas de Zéfiro ou o capacete de Minerva”… Ou seja, um rústico vagamente megalómano ou um sedento de prebendas ou de notoriedade, usando o cálculo ou a astúcia, acabarão sempre a fazer uma arte pequenina ou desconchavada, que só iludirá os zoilos ou os velhacos, posto se socorram duma pretensa escrita automática.

Dito isto, devo referir que a escrita automática nunca a empreguei deliberadamente, nem mesmo sei se isso é passível de deliberação. A poesia que tenho feito chega-me em momentos que não escolho, como numa espécie de transe, de uma voz que me fala. Creio que o mesmo se passa com todos os que conseguem alguma qualidade: tudo vem até nós como numa espécie de sonho acordado, pelo menos semi-desperto digo ironicamente, e tudo depende das portas que largamente lhe abrirmos ou das equações verdadeiramente alquímicas que pusermos em acção.

O resultado será sempre o que nós formos, o que nesse universo somos – se com naturalidade o soubermos merecer.

Um diálogo iluminante que, cremos, complementará o que atrás se disse:

De uma carta de ns a Floriano Martins, referindo um envio deste:

“ (…) Um bom, um belo fragmento de poema! (Nota – Do livro pronto para publicação “Altares do Caos”)

Não está apegado a imagens em sucessão – que é o que faz a desgraça do surrealismo de escola – mas actua num plano de coisas e de acontecimentos que se desdobram.

A realidade de cá tem por dentro – é a que mais tem! – uma inteira surrealidade.

Os surrealistas de aviário – os “tais” que tu sabes – limitam-se a acumular imagens umas atrás das outras, o que faz desse “surrealismo” uma coisa absolutamente enjoativa.

Ou seja: “emigram-se” para o lado do presuntivo sonho porque na sua habilidadezinha arteira têm a ideia que esse é o lugar que mais lhes permite serem à vontade o que são – medíocres com a mania dos monstros…

 

Da resposta de Floriano a NS:

Tens razão, Nico, o surrealismo de escola é patético, seja na escrita ou na plástica. A sandice e/ou o amontoado de frases e imagens desconexas entre si é o que faz a festa dessa gente destrambelhada que se julga, antes mesmo de surrealista, poeta e pintor(…).”

E aos universais ingénuos/de espírito cândido ou que por isso querem passar e não são mais que velhacos dissimulados fazendo o jogo de “mordomos” por interesse próprio de apparatchikis après la lettre, à guisa dos antigos aragons ou navilles, dizemos simplesmente:

Hoje como ontem “A crítica é a razão da nossa permanência” (António Maria Lisboa.

e ainda

Se um macaco se mirar num espelho nunca verá um apóstolo” (Lichtenberg)

 

O monarca (lápis bougard e tinta-china), ns


Nicolau Saião