Nos anos em que sexo era tabu

 

 

 

 

 

 


A.M. GALOPIM DE CARVALHO


Em Évora, nos anos que lá vivi, no sufoco de uma censura feita à medida do Estado Novo, de Salazar e da então retrógrada Igreja católica, do cardeal Cerejeira, tudo o que se relacionasse com sexo era tabu. Nasceu-me uma irmã em 1938, tinha eu sete anos e, naqueles meses antes do parto, em que a barriga da minha mãe parecia ter, lá dentro, uma abóbora, a resposta que ela me dava, na sequência das minhas perguntas, era sempre no género:

«é uma doença da mãezinha que já está a ser tratada»

«estes casaquinhos e estas botinhas, que estou a tricotar, são para dar a uma família muito pobre, com filhos, entre os quais, uma bebezinha»

Nunca a verdade. A gravidez era tabu. Meninos na barriga das mães e partos eram outros tabus. A menstruação era assunto escondido de todos rapazes e de muitas raparigas. Nesse tempo, muitas adolescentes viviam momentos de angustiante perplexidade e susto com a primeira menstruação, porque nunca haviam sido informadas acerca dessa incómoda condição feminina. Nesse tempo, não havia a comodidade dos pensos higiénicos. As leitoras da minha geração serviam-se de uns panos turcos (não sei que nome tinham) que, todos os meses, se utilizavam, a seguir se lavavam e guardavam para deles se servirem no mês seguinte. Sempre vi, na minha casa, um balde que lá havia, meio de água, com uns panos turcos, quadrados, do tamanho de guardanapos, com sangue, e a resposta que a minha mãe me deu foi «o paizinho teve uma hemorragia do nariz». Todos os meses, eu já sabia, mesmo sem perguntar, que o meu pai sofria destas hemorragias. Quando as minhas duas irmãs mais velhas atingiram a idade se sofrerem deste incómodo, aquele balde esteve sempre em uso, e o pobre do meu pai não parava de ter hemorragias. Só aos meus 18 anos soube a verdade acerca deste problema, não como a ciência nos ensina, mas, por via da obscenidade, referido por um colega de liceu.

No tempo em que vivi em Évora, anos 30 e 40, em que fui criança e adolescente, muitas das paredes dos prédios, caiadas de branco, exibiam falos, de todos os tamanhos e feitios.

Um parêntese para dizer que falo, do grego phallós com idêntico significado, é a representação do pénis em ereção como símbolo de fecundidade.

Talvez, como não consciente intensão de escape, os rapazes menos bem-educados, apanhavam, em casa, um pedaço de carvão vegetal (lembro que, nesses anos, o normal das famílias era cozinhar a carvão) e, com ele, “desenhavam” nas paredes, sobretudo, este órgão genital masculino, mas também e mais raramente, o feminino.

Eu não os desenhei nessas paredes, mas desenhei-os, muitas vezes, em folhas ou pedaços de papel que, depois, destruía, porque isso aludia ao sexo e o sexo era tabu. E é aqui que começa esta crónica, que, só agora, depois de renascimento, após cirurgia para tratamento de uma estenose aórtica grave (05:02:2024) e depois de ouvir a opinião de amigos, me dispus a colocar nesta minha página com o título de “Pombas branca na parede”, título que, por razões de respeito pelas leitoras mais conservadoras e susceptíveis, substitui o verdadeiro, e que é, o que alude ao que escreverei só no fim deste texto. Respeito o sentir dessas eventuais leitoras, mas também me reconheço a liberdade de falar sobre o que entender, fazendo sempre das regras de boa educação. O tempo do tabu já passou, faz agora meio século.

Os meus dois filhos frequentaram, como alunos da licenciatura em Geologia, a Faculdade de Ciências de Lisboa, na segunda metade da década de 80 do século que passou. Foram, portanto, meus alunos. Nesta condição, alguns dos seus colegas iam, muitas vezes e à noite, a nossa casa, para estudarem em conjunto. Acontece que, entre os quartos destes meus filhos, havia um pequeno corredor e que, nesse corredor, num dos lados, ficava a porta do meu quarto, sempre aberta, e, no outro, as portas das duas casas de banho.

Porque ainda era uso nesse tempo, as diversas salas da nossa casa estavam pintadas com cores fortes, um azulão na sala, um belo verde azeitona nos quartos e um vermelho escarlate no dito corredor. Foram muitas as vezes que, já altas horas, estando eu já deitado, os senti passarem, sorrateiramente, neste corredor, a caminho da cozinha, em busca de algo para comerem.

De há muito que a Isabel desejava dar uma brancura bem alentejana a toda casa. Eu e ela estávamos em plena pujança de força física e metemos mãos à obra. Compramos não sei quantas latas de tinta de água branca e tudo o que era preciso para pintar paredes.

Passar das ditas cores fortes a branco exige muitas demãos desta cor, o que consumiu dias e dias de trabalho, aos fins de semana. Finda a jornada de pintura, era preciso lavar pinceis e rolo, para poderem ser usados daí a oito dias. Para serem lavados é preciso retirar, dos pinceis e do rolo, a maior parte da tinta que ainda retinham. Foi aí que a minha parte de criança e de adolescente que, felizmente, nunca perdi, me deu a ideia de aproveitar essa operação de retirar os restos de tinta dos pinceis, para desenhar falos brancos, numa das paredes vermelhas escarlate do dito corredor, como os que, nos ditos recuados tempos, se exibiam em muitas paredes dos prédios da minha cidade. À semelhança de um rapaz a brincar consigo próprio, houve um dia em que enchi aquela parede de falos, falinhos e falões, esquecido de que os colegas dos meus filhos iriam passar por ali. E foi o que tinha mesmo de acontecer. Os rapazes viram, adoraram e, de um dia para o outro, dizia-se no Departamento de Geologia e, muito provavelmente, na Faculdade que “o Prof. Galopim pintava caralhinhos na parede”.