GLEDSON SOUSA
Vivemos em tempos difíceis, parece-nos que há pouco espaço para aquilo que mais precisamos, do cuidado, do humano, dos gestos silenciosos que nos redimem das sombras, e é justamente por contas de tempos sombrios e relações radicalizadas, ideologizadas, que o livro ENQUANTO VOCÊ NÃO OLHA, de Paula Cajaty, me chamou tanta atenção, pelo contraste entre a violência do tempo e a delicadeza das crônicas que espelham o melhor de nós.
Paula domina como ninguém esse gênero tão brasileiro que é a crônica, diria que é um gênero quase carioca, se lembrarmos de grandes nomes da crônica como Sérgio Porto ou de mineiros-cariocas como Fernando Sabino e Carlos Drummond, sem esquecer ainda de nomes como Clarice Lispector ou Rachel de Queiroz; vejam que coloquei Paula Cajaty ao lado dos melhores nomes da crônica nacional.
A diferença, e ela é totalmente relevante, é que as crônicas da Paula Cajaty vêm a lume em tempos muito duros, de ares quase irrespiráveis, e ela marca sua escrita pelo cuidado com o outro, pela passagem do tempo, por revelar uma camada de delicadeza que permeia as páginas e colore o livro com um tom intimista e reflexivo ao mesmo tempo.
Dividido em quatro partes, conforme as estações -Verão, Outono, Inverno e Primavera, o livro segue esse fluxo , do ímpeto ao arrefecimento, da pausa ao ressurgir das coisas, como se a poeta que Paula é conduzisse a memória pelos meandros e desvãos do tempo, marcando proustianamente cada episódio da existência, da reflexão sobre o carnaval (em #carnaval: “Fantasiar-se, fantasiar o outro, pegar o sol de manhã para fazer a pele brilhar à noite, maquiar bem os olhos até que eles atinjam matizes de desejo, dançar em público, despir o corpo que vai sempre apertado, comportado, ao trabalho. Pegar chuva morna sobre o vestido fino, braços e pés molhados, libertos de convenções e outras amarras. A delícia de se molhar fora de hora.”), à lembrança do encontro com uma borboleta azul (na linda crônica #borboletaazul: “Eu cresci vendo a primavera tomar corpo nessas enormes borboletas azuis e sempre que se avistava uma, era aquela gritaria, aquele alvoroço, como se avistássemos uma coisa rara, uma preciosidade que bate asas entre a luz e a sombra.”), as crônicas de Paula Cajaty resgatam o sensível, nos deixam imersos na contemplação das coisas vivas, das pessoas vivas: aqui não há simulacros nem gadgets, não há IA nem um discurso ideológico, mas sim o contato, confronto com a vida em si, com pessoas de carne e osso, com sentimentos como há muito não víamos, de um olhar cuidadoso com o outro, com a vida, com a terra.
Li, como diria o saudoso Cláudio Willer, de uma enfiada só. Há tempos havia comprado o livro da Paula, mas no meio do caminho, como diria outro poeta, aconteceram acidentes e outros e perdi o livro. Comprei-o novamente e deixe-o ali à minha espera, pois lembrava que era um livro de escrita delicada, que pedia um encontro e não uma leitura casual, mas sim uma entrega.
E a entrega aconteceu: de uma crônica à outra, quando vi, já havia terminado todo o livro, mas não só isso, a sensação que tinha era que estivera ali perto da Paula quando sua vó morreu (na crônica #açúcardeavó: “O quanto de mim foi com ela, o quanto dela ficou comigo? Quanto de mim vai devagarinho assumindo um novo posto, o posto que era dela, entre filhas que desabrocham e netas que ainda virão? Quantos dias azuis ainda me lembrarão seus olhos? Essas contas que a matemática não ensina., Contas de ganhos e perdas. Talvez, um dia, só a poesia possa me trazer respostas.”), ou quando ela viaja à Vassouras (na crônica #Vassouras: “No último feriado quis fazer um passeio diferente. Fui para Vassouras, uma pequena e pitoresca cidade do Estado do Rio, onde apenas poucos carros transitavam e o tempo parecia estacionar à volta da praça principal e de um enorme e majestoso chafariz (…)”, ou me preparando para uma viagem, como na metafórica #malapronta: “Para fazer as malas, de verdade, não é preciso tanta coisa. Não preciso daquele tanto que sempre segue conosco sem sair da mala e só serve para aumentar seu peso. Afinal, para que levar o que conhecemos se buscamos o desconhecido? E pensando bem, quem prefere suas próprias velharias a abrir espaço para as novidades?”), a cada memória, reflexão ou poesia era o tempo que estava sendo compartilhado, ou melhor, uma forma de suspensão do tempo, que é tarefa da arte.
Adormeci enlevado mas com uma sensação de nostalgia, como se as crônicas ativassem a percepção daquilo que temos perdido nesses tempos de violência: essa capacidade de perceber o outro, de olhar o tempo, essa qualidade contemplativa tão própria aos poetas, esse desejo sincero de viver em plenitude que a Paula traz a cada texto, e quando acordei sabia que precisava registrar isso, porque a escrita da Paula é não só a escritura de memórias pessoais, mas principalmente de um modo humano de enxergar as coisas, de colocar a existência sob um manto de suavidade.
Fiquei a pensar qual título dar a esse artigo, e lembrei-me daquela que é a minha música preferida do Chico Buarque, TODO SENTIMENTO, e percebi que não poderia ser outro o título senão No Tempo da Delicadeza: é essa qualidade quase etérea (em comparação com a brutalidade de vitrine dos dias de hoje) que permeia a Paula poeta, editora, cronista, mãe, amiga; como uma pátina perolada, é a delicadeza quem está presente no olhar com que ela enxerga o mundo.
Isso não é pouco: ENQUANTO VOCÊ NÃO OLHA resgata nosso desejo de um outro mundo, sem vísceras expostas nem publicidade em torno da dor, onde a arte seja a ferramenta mais partilhada.
O mundo segue sua existência secreta e bela ENQUANTO VOCÊ NÃO OLHA: a vida segue seu curso quase comezinho, mas entre borboletas-azuis e chuvas no carnaval, é possível achar mil e uma razões para viver e contar: como uma Sherazade carioca, Paula nos aproxima da magia da vida comum, que só é possível porque alguém cuida e alguém conta, a cada dia, uma nova história, com a suavidade de uma brisa marinha.
Enquanto Você Não Olha
Paula Cajaty
Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2020
https://www.editorajaguatirica.com.br/produtos/enquanto-voce-nao-olha/
Gledson Sousa. Nascido em Juazeiro do Norte em 1972. Reside em São Paulo desde 1991. Formado em História, com especialização em História da Arte. Tem trabalhos publicados no site Triplov (www.triplov.com), e nas revistas eletrônicas MUSA RARA (https://musarara.com.br/) e RUÍDO MANIFESTO (https://ruidomanifesto.org/), além dos seguintes livros publicados:
O Ovo – Meditações Sobre a Semântica do Mundo. São Paulo: Ed. Janos, 2004
A Iconografia Interior – Kandinsky e a Teosofia. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014
O Livro das Novas Mutações ou O Oráculo da Natureza. Lisboa: Ed. Apenas Livros, 2014
Fantasmas – Contos. Rio de Janeiro: Editora Jaguatirica, 2018
Pôr a Poesia – Seguido de Espiral – Ensaio/poema. São Paulo: Editora Córrego, 2020.
A Mimesis Mágica – Poemas – São Paulo: Editora Córrego, 2022
Poemas de Um País Esquecido – Plaquete da Coleção Poetas da Gangue – São Paulo: Editora Córrego, 2022
Jaguar, Trovão – Poemas. Diadema: Editora Clóe, 2024
Além de participação em obras coletivas: Presença do Feminino no Relato dos Viajantes, no livro Desigualdade no Feminino. Lisboa: Apenas Livros, 2009; Uma Espiritualidade Nietzschiana?, no livro A Religião que Anda no Ar. Lisboa: Apenas Livros, 2014.Poeta, prosador e ensaísta.