MARIA ESTELA GUEDES
Apresentação do livro A casa da Memória, de Maria Azenha. Posfácio de Roger Samuel. Editora Urutau, Portugal/Brasil, 2024. Auditório da InComunidade, Porto, 26 de Novembro de 2024.
Em geral, quando escrevemos, aquilo de que a escrita se ocupa é descrito, analisado ou referido do ponto de vista de quem se apresenta como “Eu”. Simplifiquemos: o que escrevemos aparece segundo o nosso ponto de vista, e é esse ponto de vista aquilo que recebemos e percebemos. Aceitamos o que nos dão, sem procurar outro interlocutor, pois a escrita, pondo de lado a teoria literária que especifica sujeitos, enunciadores, narradores, etc., na sua imediata perceção, é uma interação entre escritor e leitor.
Esta observação decorre do facto de neste livro a interação entre pessoas criar um estado de choque. Podia ser conflito, mas não, trata-se de choque, reação emocional da parte do ouvinte, o poeta, ao discurso do interlocutor, ou mesmo ao seu silêncio, que é outra forma de fala. Daqui se verifica a predominância da oralidade, de resto frequente na poesia de Maria Azenha. Os poemas resultam de conversas, presenciais ou ao telefone, que geram um terceiro discurso, o único aliás que conhecemos na íntegra e fornece o ponto de vista sobre a causa do choque. Não só os poemas resultam do choque como o solucionam. A solução, em simbologia alquímica, atua como dissolvente, dissipando o choque, ou a dor. Dissolvente mais comum é a água, como todos sabem, mas juntando-lhe um grão de sal o poeta opera a transmutação necessária para superar o sofrimento. É o que acontece no poema “Assim foi”, em que o sujeito vai para a cozinha fazer um bolo, exatamente como procederia o alquimista, para obter, em resultado, último verso, o almejado ouro: “As lágrimas eram muitas e de ouro”.
Como somos amigas, e desde há muitos anos a Maria Azenha é um dos autores cujas obras mais tenho comentado, acresce à amizade alguma informação privilegiada a que o comum dos leitores não tem acesso. Então vou partilhar, em regime de biografia, e naturalmente com autorização dela, alguma informação que diz respeito a este livro, A Casa da Memória. Repetem-se nele alguns casos já pontualmente tratados pela autora em livros mais antigos, o que aliás dá força à minha observação sobre o choque manifesto em conversas com ela. De facto, eles dizem respeito ao seu trabalho na primeira fase das actividade de uma linha telefónica de ajuda vocacionada para o apoio emocional e a prevenção do suicídio. É comum os iniciados em ordens religiosas ou místicas votarem-se a obras sociais, e Maria Azenha, enquanto Rosa-Cruz, vem de há muito ajudando pessoas em situações difíceis. Além desta nota importante, acresce que as ordens religiosas têm como matéria preferencial de estudo os livros de espiritualidade, daí a Alquimia, patente em vários passos deste livro e em muitos de outras obras da autora.
Os temas resultantes destas experiências de encontro para ajuda não são os únicos n’ A Casa da Memória. Poemas dedicados a situações do quotidiano social e individual são comuns na obra. Neste livro, o poema “A torre do silêncio” contrasta com a maior parte dos outros, inspirados por conversas, pois o que nele mais avulta, a despeito do ruído das armas de fogo, é o silêncio. Como se existissem dois mundos, um exterior, regido pelas armas, e outro de tormento interior, o do silêncio:
Não ouve os tiros da noite
nem aqueles que mais amou.
Ficou na Torre do Silêncio
no quarto sagrado da Morte,
onde mais ninguém entrou.
Um dos poemas com os quais mais entro em empatia, e acerca do qual nenhuma informação me foi transmitida pela autora, é “Atravessando a noite”. A memória que o norteia é tão dolorosa que Maria Azenha recorre de novo a algo tão acutilante como o disparo de uma arma de fogo para a exprimir. Todo o poema, aliás, é uma grandiosa metáfora de dor, sustentada pelos elementos tradicionais e básicos da Alquimia, a saber: água, ar, fogo e terra, a terra em que assenta o leito, peça de mobília que desenha o cenário noturno, o da falta de luz, por isso da indiferenciação e do caos. Neste texto reencontramos a oralidade, se bem que o som ouvido provenha de um grito de chamamento e não de uma conversa, decerto impossível, se a criança evocada for ainda um bebé. Trata-se de um pesadelo, vejamos.
Abro os olhos, fito o leito,
E o mar onde me deito
Redobra em cinza e flamas.
Não há ninguém.
Ninguém no quarto.
Só uma bala atravessa a escuridão da noite
E se aloja no meu peito.
As situações de choque perante o interlocutor vão desde as familiares, suas ou não, até ao encontro e eventual conversa com gente da rua: sem abrigo, mendigos, incapacitados físicos, etc… Então percebe-se que a maior exigência de atividades como a de escutar alguém na situações de grande fragilidade ao telefone é a capacidade de se pôr no lugar do outro. Nem todos são dotados, e no extremo, na total incapacidade de empatia, encontramos o psicopata. Porém, a empatia não é sem consequências: pôr-se no lugar do outro equivale a deixar-se possuir pela alma alheia.
Existe a poesia com função catártica, o teatro grego de há séculos no-lo ensina. O drama que passa daquele que pede socorro para quem o ouve precisa de ser dissipado. Quem ouviu precisa de recuperar a sua integridade psicológica, com anulação do sofrimento. A poesia exerce assim uma função catártica idêntica ao estado de nirvana. Como se a repetição do drama fosse analgésica. Não parece que seja saudável manter na memória pessoal uma tão grande potência de dor, então a memória poética aparece como uma pen-drive, um banco externo de memória em que os dados se conservam sem afetar a saúde mental do poeta.
Do outro lado, o lado do outro, sabemos só o essencial: ele procura ajuda. A cura mediante a fala é conhecida desde sempre; tem imagem antiga no confessionário, e imagem moderna no divã da psicanálise. No primeiro caso, a catarse tem o nome de confissão, e no segundo o de transfert ou transferência.
Por conseguinte, não é isenta de perigos a tarefa de dar o apoio de um ouvido ao náufrago, pois não somos imunes à infelicidade alheia. Cada poema decorre de um choque na comunicação com o interlocutor, esteja o interlocutor presente, ao telefone, ou na memória. Assim, não se trata de frivolidades da fala, de oralidade ligeira, sim de profunda interação humana, em que o telefone assume a função mediadora quer do confessionário quer do divã do psicanalista.
Vejamos o que se passa com o José, naturalmente um nome suposto. A iminência do suicídio aparece ligada pela partícula “quase” ao género “natureza morta” bem conhecido da pintura, e Maria Azenha também é pintora, forma provável de purificação do drama operada pela poesia.
NATUREZA QUASE MORTA
O José está ao telefone.
Aos quarenta e dois anos
chora como um adolescente.
Pequenas palavras à mesa de cabeceira
rodopiam no espaço
dividindo lágrimas e uma floreira.
Tomou só três,
“não há que ter receio”,
Chora bem alto ao ritmo do vento.
Na sequência, o José deixa perceber quão náufrago se sente, imerso numa onda de depressão que o põe à beira de um suicídio que nega, na sua própria fala: “não há que ter receio”. Não há perigo, tomou só três, e o interlocutor, nós, no caso, imaginamos o resto: só tomou três comprimidos.
No poema, a memória defende-se do contágio do drama transfigurando a cena em notas de poesia. É o desenlace que permite, a quem sugere a história, o alívio dela e o distanciamento, dissolução necessária, representada por algo como o ditado de que palavras, as ouvidas, leva-as o vento. No que diz respeito ao suicida, as palavras são pranto pesado. Era preciso ter coragem para tomar muito mais do que três comprimidos, mas creio que é preciso ter mais coragem ainda para confessar o que o atormenta, e nós, leitores, ignoramos.
A transferência de transtornos através da fala toca-nos, perturba-nos, pode causar danos psicológicos. O poeta precisa de igual força anímica para conduzir a conversa sem se deixar abater nela. Transferir essas experiências de fala para a poesia corresponde a uma catarse, processo de resolver a situação dramática sem entrar em crise psicológica. É o que acontece na Casa da memória, um livro de transferência e de purificação, em que a poesia recebe a descarga emocional, procedendo à anulação da dor, tal o nirvana.
Além de funcionar como eco, ou feedback das suas experiências com aqueles que pediam ajuda, o livro repercute emocionalmente situações familiares, e não só, donde é um livro discreto, que entreabre apenas uma fresta de porta para a grande intimidade.
Resumindo, a obra põe em cena as relações humanas como um embate com o sofrimento alheio. Não é ocioso o embate, ele faz vibrar o poeta de maneira muito profunda. Quanto àqueles em cujo lugar o poeta se põe, e com os quais entra em choque, o seu ponto de vista atrai e fascina, tanto mais que o outro é desconhecido, e além de desconhecido pode o poeta entrar nos domínios da loucura.
Encerro a minha alocução com o poema “Alquimia”, síntese do que escrevi. Já a referi por diversas vezes. A Alquimia é objeto de estudo em muitas ordens iniciáticas, e a Rosa-Cruz não será excepção. Existe nela um vetor maior, o da transmutação. No poema, veste a roupa da cozinha, outra maneira de referir o laboratório do alquimista. O que cozinhamos também sofre um processo de transformação e de resto a passagem do cru para o cozido, como explicou Claude Lévi-Strauss na sua conhecida obra Le cru et le cuit, assinala um salto enorme na caminhada civilizatória do Homo sapiens.
A transmutação é o facto de vida essencial numa iniciação, consiste em abandonar um estado grosseiro de ser para entrar num regime superior, em que reina a espiritualidade, em passar das trevas da ignorância para a luz da sabedoria. A catarse a que venho aludindo é uma forma também de transmutação alquímica, ela eleva a dor a um patamar acima da condição terrena. No caso, eleva o sofrimento ao patamar da Poesia. Recordando o estatuto de Rosa-Cruz de Maria Azenha, menciono para findar que a Rosa é um símbolo do Espírito.
ALQUIMIA
Na cozinha dormem as minúsculas laranjas.
São quase duas horas da manhã.
O luar entrou pelos lírios da casa e
já estive perdida antes e mais só.
A noite, uma página onde os ourives do Sol
trabalham na mais completa escuridão.
Escondidos do tempo nas metáforas do forno
adiantam-se para as montanhas.
As suas vozes tornam-se cada vez mais amáveis
e estranhas,
clamam da distância.
MARIA AZENHA
A Casa da Memória
Europa/América, Ed. Urutau, 2024