No fim das férias, uma amarga notícia

 

 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO


In memoriam

    Quase no final das minhas férias deste ano recebi de Céu Navarro – esposa do poeta meu amigo José Carlos Breia – a notícia de que este havia falecido, vitimado por uma doença que a sua muita idade proporcionara. 

   O poeta, que eu conhecera décadas atrás apresentado por António Luís Moita e que desde então passou a ser para mim uma presença habitual apesar de vivermos em lugares diferentes e afastados, manteve até ao fim uma funda atenção à poesia, à afável convivência e aos valores do espírito que sempre possuiu e manteve com lucidez e alto discernimento – o que aqui relembro e saúdo com apreço, mas também com a tristeza de quem perdeu um confrade de muito talento e um amigo firme e seguro de muitos anos de bom e fecundo relacionamento intelectual.


Alguns POEMAS DE JOSÉ CARLOS BREIA

 

José Carlos Breia nasceu em 3 de Maio de 1930.

Leu muito e muita música ouviu.

As artes plásticas fascinam-no tal como a arquitectura.

Viajou pela Europa e pela América do Sul.

Trabalhou, naturalmente, pois sem dinheiro não se vive.

Reformou-se cedo.

É na altura em que se reencontra com António Luis Moita que este lhe prepõe, para ocupar o tempo livre, que junte todos os poemas que tinha feito e os publique.

Surge assim LUGAR NENHUM no ano de 2000, dado a lume na Assírio e Alvim.

Continua a escrever e tem neste momento mais três livros não publicados:

“Outro lado”, “Das pequenas coisas” e “Poemas do chão”.


JOSÉ CARLOS BREIA

 

Do livro “LUGAR NENHUM”

 

DICIONÁRIO

Este é o livro

onde as palavras

cristalizam.

 

Do livro agora aberto

– do preciso rigor das suas linhas,

retiro algumas dessas formas frias.

 

Rodeio, lento, a sua geometria.

Paciente, procuro, ponto-a-ponto

a cruz axial em que se animam.

 

Os pequenos cristais

revelam ângulos, planos

que a sua dura forma escurecia.

 

Secreto,

fecho depois o livro em que o poema,

recomeçado sempre,

ausente fica.

 

 

RETRATOS

Olho os retratos

que nesta velha sala me rodeiam.

 

Entre quadros e livros muito lidos

eles cercam-me

e pedem-me cuidados:

que lhes tire o pó dos vidros

e a mancha das molduras.

 

Brilham agora, limpos,

mas ainda inseguros.

 

Eles querem também que os reconheça:

querem, da minha vida,

a vida que me resta.

 

(Mesmo o meu gato preto,

por quem chorei talvez

mais do que por ninguém,

me lança a fina fresta dos seus olhos

pedindo-me que o deixe ronronar).

 

Mas são, contudo, os vivos

  • os que ainda se arrastam lá por fora

que mais me preocupam.

 

Eram belos e plenos

seus corpos.

Pareciam eternos.

 

Mas há muito morreram

nos retratos

que nesta velha sala me rodeiam.


Do livro “DAS MÍNIMAS COISAS”

 

DAS PEDRAS 1

A pedra na mão.

Na minha mão

 

Disse-o Décio, o romano,

que com ela matou.

Disse-o o nómada Ben Zir

quando ao meditar

a rolou.

Devraux, o arqueólogo,

disse que se tratava de…

Von Zeint, o geólogo,

contestou

 

Se enobreceu túmulos

ou palácios

não sabemos.

Mas,

talhada por mãos hábeis,

foi arte,

é vida.

 

Passou por muitas mãos

e de todas, um pouco, ficou.

 

A pedra na mão.

Na minha mão.

Milhares de histórias

entre os dedos.


Do livro “Outro Lado” 

 

RONDA DE NÚMEROS

-à guisa de prefácio-

Sete vezes oito

são cinquenta e seis.

O sete no oito.

O oito no sete.

 

Se o sete é ímpar

o oito deitado

deixa de ser par

ronda o infinito.

 

Que mais quereria,

para Outro Lado

o poeta ignaro,

de setenta e oito?

 

Que feitas as contas

dá sete mais oito,

– o que soma quinze.

Outro número ímpar.

Embora somando

o quinze dê seis.

 

Tudo abstracções,

de ímpares e pares

que o livro sonega

como faz à cauda

que soma mais seis.

Subvertendo assim,

os cinquenta e seis

de que se partiu

sem haver propósito.

 

Acasos da escrita

que da mão dependem,

sem qualquer engenho

ou confuso ardil.

 

O MOCHO

A placidez informe das coisas.

 

Um rufo de asas

entreabre

o silêncio.

 

Teus olhos estelares

regressam.

 

Medito

no início dos astros,

na imensa noite

que antecedeu

o tempo.

 

E pergunto-me:

(sábio na fábula,

mau agoiro no grito)

de que avatar descendes?

 

Ou és transmutação?

 

 

EURÍDICE

Entrei por fim na casa abandonada.

 

Quanto tempo terá ela levado

a tricotar as teias pelos cantos,

a nublar vidros

velando espelhos, rostos e retratos?

 

Dados dois passos,

sob o ranger das tábuas e das portas,

vi

o que ficara de um vestido

no rasto da fuligem,

o rasgado verde resto da coberta

a resvalar da mesa,

as cadeiras partidas.

 

E, ao rodar a mão por um desenho

que o mofo recamara,

abri no espesso as linhas de uma face,

tirei do pó

uns olhos apagados.

 

Abertos, lentamente,

em mim pousaram

com tão funda ironia,

que, sem olhar pra trás,

abandonei-a.

 

E tudo se ocultou

em sucessivas dobras:

tempo, casa, razão,

cuidados meus.

 

HOJE

Que trouxe do passeio?

 

Um corte negro de asas

no último vermelho do poente

 

A lama nos sapatos

 

A bela flor de um cacto

 

O olhar que se arrasta

por um muro murado de graffiti

(uma porta arrombada?).

 

E um folheto sobre a eternidade

que me deu um senhor engravatado.

 

 FLANANDO

Na palavra o que é lavrado?

Pala que só gera sombra?

Pá que não amanha, lavra?

 

Lavra pode ser só posse

e não arroteia nada.

 

Com este jogo à beira-rio passeio

– barcos, barra, Bugio

Enquanto o vento levanta

o que resta destes fios

que me servem de cabelo.

 

O  NOVO  ALADINO

Se tivesse uma lâmpada

como tinha Aladino

que iria eu fazer para Pasárgada ?

 

Ser amigo de rei

tem desvantagens.

 

Não precisava de um rei

para escolher a cama desejada

e nela a mulher

com quem bulisse.

 

Primeiro,

queria uma casa com relvado,

entre campo e  praia,

sem vizinhos amáveis

que são uma chatice.

 

Amigos

isso sim

quantos quisessem vir.

Mas nunca mais de dois

de cada vez.

 

Queria

uma cama de água

com comando,

para sentir a calma das lagunas

a lua das marés

e dos riachos

o sussurro fresco.

 

A mulher é que era o drama:

 

olhos que falassem fundo,

esguia e louca

feita malagueta,

frescura de água de coco

e o doce da carambola.

 

Mas nada de escravatura.

 

Nua ou velada,

só viesse

quando o ritmo lhe pedisse

ou a isso fosse levada.

 

E pouco mais queria.

 

Escrever por acaso.

A melodia

do meu galgo solto.

E, na iridiscência

do meu copo

o reflexo inquieto

da memória.

 

A  CASA

No caminho

olho as janelas

donde já ninguém espreita

e as portas

a que só o vento bate.

 

O homem

levantou as paredes.

pôs as telhas,

e por baixo do fumeiro

a pedra do fogo

e a panela de ferro.

No canto mais escuro

escondeu a cama

onde dormia

e fazia os filhos.

Arroteou a terra,

fez a horta

e mais tarde a cerca

onde o porco

chafurdava os restos.

Dos filhos, muitos,

só ficaram dois:

um áspero e rude

a quem o pai deixou as cabras

e outro que cedo morreu.

Os restantes perderam-se

por oficinas, fábricas,

áfricas, que a imaginação debulhava

em frutos, terras uberes

e o bronze das mulheres.

O último deixou a casa

a que nada o prendia.

 

No silencio que só os ratos roem

pairam fiapos do riso

que a madeira range,

das lágrimas

que ressumam das paredes.

Apodrece o esqueleto.

Vai ruindo

a velha casa.

 

Já ninguém se lembra

de quem lá vivia.

 

DOS REIS

Dos quatro reis que eram três,

porque um deles se perdeu

e seu nome se apagou,

um viria dos caldeus,

da velha terra de Ur,

era dos três o mais velho,

já na casa dos setenta,

chamava-se Belchior,

trazia ouro consigo.

Outro da Arábia Feliz.

O terceiro destes reis,

que se chamava Gaspar

e só tinha vinte anos,

viria de terra farta

banhada pelo Mar Cáspio.

Trazia mirra na bolsa.

 

Deixei Baltazar para o fim,

o que era feliz da Arábia,

que tinha quarenta anos

era mouro e muito alto.

Com ele trazia incenso,

uma língua mui prudente

com que baralhou Antipas

sobre os motivos que tinham.

 

Mas como é que se encontraram

Estes reis e para quê?

 

Diz a lenda que uma estrela

( era um ovni com certeza )

a cada um encontrou

e os levou de caminho

para verem um menino

que uma luz por cima tinha.

 

Dos ouros, incensos, mirras

nunca mais se ouviu falar.

Dos três reis nunca se soube

se voltaram donde vinham

ou se o ovni os levou

como fizera ao profeta.

 

Se viram deus não se sabe.

Mas que viram um menino,

chorando por entre as palhas,

diz a lenda que é verdade.

 

Ao quarto rei que perdido

perdeu o nome também

que terá acontecido?

Que trazia nos alforges?

Quem sabe donde viria?

Talvez do Reino Amarelo

e chá consigo trazia.

 

O aroma da infusão,

o delicado sabor,

talvez o levasse ao sonho,

talvez à meditação.

 

Assim, ao perder a estrela,

ficou ausente da história.

Mas pode tê-la sonhado

 

Agora, ao beber meu chá,

penso muito nesse rei

que nunca tendo chegado

nunca ao menino deu nada.

 

Dos ouros, incensos, mirras

nunca mais se ouviu falar.

Mas o chá que o rei foi dando

pelo caminho que achou,

rescende na minha taça

e faz-me sonhar também

o sonho que, acaso teve,

o rei que nunca chegou.

 

A ESCADA

Subo o reflexo da escada.

 

Dizem-me:

 

– Este não é o último andar.

É o quarto.

 

Subo

 

– Não, este é o terceiro.

 

Subo

 

E é o segundo

o primeiro

o não sei.

 

Desisto.

 

Enquanto os lanços

se torcem,

apertam

e se partem

saio

dos fragmentos

do reflexo da escada.

 

Que procurava?

 

 

O outro lado do espelho

continua velado.

 

JCB