PREFÁCIO - ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A NOITE É DOS PÁSSAROS
NICODEMOS SENA

Quando, em 1999, foi lançado o meu primeiro romance, A espera do nunca mais, de 876 páginas e que me consumiu sete anos de trabalho (1992-1998), fui recebido pela crítica como um “escritor sério e de fôlego”, sendo comparado ao Graciliano Ramos de Vidas secas, ao Mário de Andrade de Macunaíma e ao João Ubaldo Ribeiro de Viva o povo brasileiro (vide Nicodemos Sena e a Crítica). Em 2000, o livro conquistou o prêmio “Lima Barreto – Brasil 500 Anos”, da União Brasileira de Escritores (UBE). No momento em que se imprime A noite é dos pássaros, meu segundo romance, acho oportunos alguns esclarecimentos:

1º) Embora tenha sido escrita em apenas dois anos, a energia e o esmero artesanal que investi nesta obra não foram menores. Numa época que prima pela banalização de todas as coisas, ainda sou daqueles que prezam o “estilo”, ou seja, uma forma própria, individual, de dizer as coisas, razão por que não se deve interpretar o menor número de páginas (pouco mais de cem) de A noite é dos pássaros como deliberada facilitação para aquele leitor “que não tem mais tempo para longas leituras”. Acho que um autor tem que correr riscos: não pode deixar-se escravizar pelos temas, ou pela exigência editorial, na esperança de agradar a quem o lê e obter sucesso de venda. O escritor precisa ser honesto naquilo que escreve e transparente consigo mesmo, sem submeter-se às “tendências de mercado” ou ao “gosto do público”, hoje condicionado pela produção e consumo em alta escala de lixo cultural. Guerra e paz, Crime e castigo, Ulisses, A montanha mágica, O processo e Memórias póstumas de Brás Cubas, verdadeiros monumentos da inteligência universal, teriam sido escritos se seus autores tivessem, no ato de criação, atendido ao gosto do “leitor” ou do “público”?

2º) Pelo menos três dos sete anos que me ocupei de A espera do nunca mais foram gastos com meticulosa pesquisa bibliográfica, resultando daí uma biblioteca que conservo em minha casa como testemunha de cada passo da grande saga. Em A noite é dos pássaros, a pesquisa não foi menor. Da primeira à última linha do livro o leitor poderá encontrar vestígios, sincronizados na narrativa, de mais de uma centena de livros, escritos em boa parte no século XVIII, época em que vivem os personagens (o leitor interessado em refazer os passos da minha pesquisa, deve ler, mais adiante, Autores Consultados). Essa característica do meu trabalho pode levar alguns apressados a concluírem que se trata de narrativa “histórica, realista e linear”. Apenas parto da história para lançar-me, com firmeza, na estória, na literatura, enfim, na linguagem, como alguém que, com os pés na vida e os olhos no relógio, mas cansado da claridade, mergulha na penumbra dos sonhos. Não o sonho pelo sonho, fuga do real, mera crença. Procuro captar a sugestão onírica dos mitos indígenas, despindo-os da roupagem imposta pelo colonizador, libertando o nosso imaginário do medo que o alienou. Inspiro-me no ideário proposto por Vicente Franz Cecim em Flagrados em delito contra a noite (1983): “Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor”.

3º) Finalmente, o tupi antigo que aparece na fala dos personagens de A noite é dos pássaros também não é gratuito. O romancista Lima Barreto imortalizou-se na literatura brasileira ao construir o personagem Policarpo Quaresma, um cidadão brasileiro que, em plena ditadura republicana de Floriano Peixoto (1891-1894), sonhou restabelecer o tupi como língua nacional, e, por causa desse sonho, tomado como loucura, sofreu o pesadelo do ostracismo humano e do manicômio. A miragem de Policarmo Quaresma possuía, aliás, como toda miragem, algum fundo de realidade. A Língua Geral tupi ou “nheengatu” (língua boa) dominou no período colonial, nos três séculos de sujeição do Brasil a Portugal. A língua brasílica era falada desde o Amazonas até Cananéia, na costa sul brasileira. Estudada pelos padres jesuítas e utilizada nas escolas, generalizou-se na catequese e no trato diuturno. De tal forma se vulgarizou e se estendeu que, até o começo do século XVIII, a proporção entre as duas línguas faladas no Brasil era mais ou menos de três para um, do tupi para o português, o que levou Pe. Antônio Vieira a escrever: “É certo que as famílias dos portugueses e índios em São Paulo estão tão ligadas hoje umas com as outras que as mulheres e os filhos se criam mística e domesticamente, e a língua que nas ditas famílias se fala é a dos índios e a portuguesa a vão os meninos aprender à escola...” (Obras Várias, I, pág. 249). “Nenhuma língua primitiva do mundo, nem mesmo o sânscrito, ocupou tão grande extensão geográfica como o tupi e seus dialetos”, escreveu o Pe. José de Anchieta em Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Essa estupenda gramática não serviu para tornar realidade o sonho do pobre Quaresma, mas até hoje é valorizada pelo Paraguai, onde se fala o guarani, língua irmã do tupi.

Com a expulsão dos jesuítas e a proibição do nheengatu, em 1750, por ordem do Marquês de Pombal, a parte primitiva que está na origem da cultura brasileira sofreu brutal estrangulamento, mas a preciosa língua tupi não desapareceu por completo. Segundo informam alguns antigos cronistas, entre os quais os jesuítas Gabriel Soares de Sousa (Notícia do Brasil, 2ª Parte, Cap. CL) e José de Anchieta (Arte da gramática...), faltavam ao tupi antigo três letras do ABC, que são “F”, “L”, “R” grande ou dobrado, de tal forma que para dizerem Francisco diziam Pancico; para dizerem Lourenço diziam Rorenço; para dizerem Rodrigo diziam Rodigo. Tal lacuna fonética, todavia, não impediu que essa língua – tão bárbara quanto os povos que a criaram e falavam, pertencentes ao mesmo tronco tupi – recebesse os louvores de muitos filólogos, os quais vão ao ponto de compará-la à língua grega, em perfeição, delicadeza, suavidade, facilidade, cópia e elegância (Cf. Dicionário brasiliano português). Carl Friedrich von Martius, por exemplo, faz o seguinte conceito: “Eis a razão por que de sílabas destacadas eles (os povos da grande nação tupi) formam mui longos vocábulos que exprimem frases completas, quanto para o filólogo podem ser em sentido analítico o alemão, e em sentido sintético o latim ou o grego” (Cf. Das Naturell, die Krankheiten, das Arztthum und die Heilmittel der Urbewohner Brasiliens). Gabriel Soares de Sousa, no já mencionado Notícias do Brasil, embora diga que “os índios são mais bárbaros que quantas criaturas Deus criou”, reconhece que “eles têm muita graça quando falam, mormente as mulheres; são muito compendiosos na forma da linguagem, e muito copiosos no seu orar”.

Ao descrever a saudação lacrimosa que faziam os tupinambás ao estrangeiro que chegava às suas aldeias, Fernão Cardim, no seu Tratados da terra e gente do Brasil, informa que ela era feita em trova, o que já revelava preocupação formal do índio no trato com a sua língua, mas o silvícola brasileiro, quando o europeu aqui chegou, não conhecia a rima, essa extraordinária invenção da civilização. Pe. José de Anchieta, que escreveu poemas líricos em castelhano, português e latim, foi o primeiro a empregar a rima na língua tupi. “Dotados de uma alma musical, os indígenas receberam bem a novidade introduzida por Anchieta, que conseguia, assim, aumentar a eficiência de seu apostolado”, observa Eduardo de Almeida Navarro (Método moderno de tupi antigo, Editora Vozes, 1998). Assim como ignoravam a existência do sal e nem por isso deixavam de degustar os alimentos, o desconhecimento da rima também não os impedia de exercitarem, em sua oralidade, a genuína poesia, que encontramos tantas vezes nos mitos e lendas colhidos por viajantes e estudiosos.

Ao usar o tupi antigo na fala dos personagens, faço-o não por acreditar que se possa voltar ao passado ou por filiar-me a certo nacionalismo xenófobo. O tupi aparece no livro por dois motivos: primeiro, por irresistível apelo da própria narrativa, que, transcorrida em meados do século XVIII, mostra o traumático contato do selvagem autóctone com o europeu civilizado, e, em segundo lugar, pela grande importância que essa língua apresenta para a cultura brasileira, tendo servido de argamassa para grandes obras de nossa literatura. Se, por exemplo, buscarmos a fonte primeva da poesia brasileira, seremos obrigados a retornar ao O Uraguai de Basílio da Gama, Prosopopéia de Bento Teixeira, Caramuru de Santa Rita Durão, I-Juca Pirama e Os Timbiras de Gonçalves Dias, e o poema em prosa Iracema de José de Alencar, e depois o resgate primitivista feito pelos modernistas Mário de Andrade (Macunaíma) e Raul Bopp (Cobra Norato), terminando no contemporâneo Repertório selvagem, de Olga Savary (Fundação Biblioteca Nacional, 1998).

Tais autores, com as técnicas permitidas por suas respectivas épocas, resgataram do fundo dos tempos a poesia tupi, em estado quase puro, despertando o bicho que continua urrando dentro de cada um de nós, “civilizados”. Eles souberam localizar nas falas do passado aquele “momento de humanidade” que caracteriza a verdadeira arte, capaz de não apenas torná-los atuais, como também de eternizá-los. Por tudo isso, creio que faz sentido o uso do tupi pelas personagens de A noite é dos pássaros.

Caraguatatuba, SP, Brasil, 18/11/2002