7º Episódio - Sumé voltou!

Cessado o meu frenesi, enxergo Potira de cócoras a um canto da cabana e tenho compaixão da rapariga, pois ela lança-me os dois olhos mais lindos e tristonhos que em toda a minha vida já vi; olhos mais cinzas, doces e aveludados que o fruto do sapoti.

“Potira i aruru. Mbae resepe?” (Potira está tristonha. Por quê?).

“Çaiciara xa-icu reté!” (fizeste-me ficar muito triste), ela diz.

Então, com a minha voz de gralha, canto: “Iaciçuacu poranga reté! Como a lua cheia é bonita / Poranga mahiê ne iaué! Tão bonita como tu!”.

Numa algaravia certamente incompreensível, passo a misturar uma série de futilidades em português e tupi, perguntando-lhe, por fim: “Estás mais contente agora? Catu cerá ne piá?”.

O rosto de Potira volta a ser o de Potira, que significa flor.

“Iaci murutinga reté poranga, Potira tapuia puxuêra reté...” (a lua é muito branca e bonita, Potira é morena e muito feia), murmura ela, fazendo um muxoxo. “Iaquaimuçáua!” (tolice! não me diga asneiras!), retruco, chamando-a para mim. Potira agasalha-se entre minhas pernas na rede e peço que ela me mostre uma das “nheengari” (cantigas) da sua gente. Potira canta:

“Xa manu ramé curi / Quando um dia eu morrer / Te ieru iaxiu / E não quiseres chorar / Aiquê caracaraí / Aí está o gavião / Xe rapió aramé curi / Ele há de chorar por mim. / Xa manu ramé curi / Quando um dia eu morrer / Xa mburi caa-puêra / E me jogarem na capoeira / Aiquê tatu membeca / Aí está o tatu compassivo / Xe iutima aramé curi / Ele há de me enterrar.”

Digo-lhe que achei sua cantiga muito triste.

“Potira amu nheengari çuri, reputari cerá?” (vou cantar outra mais alegre, queres?). E canta novamente:

“Andirá iurupari iunucu ce tatá / O morcego demônio apagou o meu fogo / Cururu mira-catu u-mundeca ce tatá / O sapo bom amigo o meu fogo acendeu.”

“Catu cerá ne piá?” (estás contente agora?), ela quer saber, mas, antes que eu tenha tempo de responder, Potira já saltara da rede e, repondo-me a mussurana ao pescoço, obriga-me a levantar, enquanto arreganha a boca como uma suçuarana embravecida.

“Jaguarete ixé!” (eu sou uma onça!), grunhe. “Xe remimbaba endé!” (tu és meu animal doméstico!). “Yuri iké!” (vem cá!) – e arrasta-me para a porta da cabana. Como eu resisto a sair para o terreiro, ela olha-me de modo travesso e interroga: “Có nipó sarigüé-nema?” (isto não é porventura um sarigüê fedorento?).

Esse foi o convite mais espirituoso para tomar banho de rio que eu já recebi em toda a minha vida, e também o mais oportuno, pois, três dias imobilizado na cabana, untado de bálsamo, assoprado e sugado pela ferida, já estou malcheiroso. Mas, ao descortinar o terreiro, quase me ponho de volta. É que, avisadas pelos curumins, que sempre nos espionam através da cerca de varas, a chusma de velhas desdentadas e gulosas da tribo – a mesma que me recepcionara tão efusivamente dois dias atrás – havia se postado à nossa frente, com os punhos erguidos, grunhindo em coro “xe renhaem! xe renhaem!” (meu prato! meu prato!). Num instante, cercaram-nos e começaram a esmurrar-me, puxando-me pela barba e pelos cabelos, dispostas, sem dúvida, a iniciarem a comilança da minha pobre carne naquela mesma hora, se Potira, mais uma vez, não me defendesse. Imperativa, enxota-as do nosso caminho e, para meu espanto, põe-se a gritar o mais alto que pode, com aspecto tresloucado, para que todos da aldeia a ouçam e se interessem pelo que ela diz:

“Sumé o-ebir!” (Sumé voltou!). “Iacaba suí Sumé ruri!” (Sumé veio do céu!). “Aipotar abá Sumé momosem-eima!” (quero que não persigam Sumé!).

Grande efeito produzem tais palavras. As velhas afastam-se como que amedrontadas e, de uma distância segura, espreitam-me, reverenciosas e parvas. Trazem ainda em suas cabeças, de mistura às pulgas que lhes atazanam o couro cabeludo, esmaecidas lembranças do tempo em que Jurupari e Sumé se enfrentaram, e o modo ultrajante como este último, o santo, foi por eles expulso. As velhas temem Jurupari, os pesadelos que ele traz, mas dele não gostam, porque, com seus feitiços, aos tupinambás enganou. O velho de barbas longas e brancas, vestido como profeta, tinha vindo. Sumé era o seu nome. Usava roupa e falava na minha língua. “O que não faz o que eu quero vive mal; o que não é ensinado na boa lei não é feliz”, dizia. Bom era Sumé: plantou milho, abacaxi, banana e mandioca para os índios, que, em certas épocas do ano, passavam até privações se escasseavam frutos na mata. Fartura e paz havia, até aparecer Jurupari. “Sumé é mau, ensina mentiras”, disse Jurupari. Céu, Inferno e Purgatório não havia, só a Terra Sem Mal, doutro lado das montanhas, onde vivos e mortos podiam bailar e beber cauim pela eternidade, debaixo de belas figueiras, ao longo de formoso rio, desde que seguissem as leis de Jurupari. Mentira, sabem as velhas! Jurupari que é mau, não presta para nada. Foi doméstico de Tupã, mas, por causa de suas maldades, Tupã o expulsou e não quis mais saber dele. Jurupari odeia a humanidade, impede que as chuvas caiam a tempo, maltrata os homens, faz-lhes medo, atraiçoa-os quando se batem contra os inimigos. As velhas têm motivos de sobra para odiarem Jurupari. Pois, no começo de tudo, eram as mulheres que mandavam no mundo; os homens a elas se submetiam e viviam num abatimento profundo, entregues à tirania das fêmeas. Sem direitos nem regalias, sob a fiscalização feminina, os machos levavam vida de humildade e trabalho, mas, assustados e dóceis, não se insubordinavam. Não era direito, sabiam eles; aquilo feria de frente os mais luminosos capítulos do código solar, espelho da sabedoria e da lógica. Todavia, se era aquele o seu destino, o que haviam eles de fazer? Viveram assim por muito tempo, até que, num belo dia, quando menos esperavam, o novelo da fortuna caiu das mãos das mulheres. Jurupari, o Legislador, filho da virgem, concebido por virtude do sumo da cucura do mato, não gostando do que encontrou entre os tupinambás, pôs fim ao império das mulheres, passando aos homens o direito de mandar e ser obedecido. Foi um deus que nos acuda. Reunidas no terreiro da aldeia, as mulheres esbravejaram e xingaram, pedindo por fim a reconsideração do Legislador. Mas Jurupari não apenas manteve sua decisão, como também, para evitar qualquer fraude na aplicação da reforma, ensinou aos homens a arte de viverem independentemente, instituindo festas que somente eles podiam tomar parte e segredos de que as mulheres não deviam ter conhecimento. Bastariam estas duas coisas para martirizá-las, conduzindo-as ao desespero e à aflição. Vítimas da curiosidade que as impelia a violarem a lei, muitas mulheres morreram. Sumé, o santo, o injustiçado, havia voltado! Todas as mulheres da aldeia, atraídas pelos gritos de Potira, deixam suas malocas e vêm juntar-se às velhas no terreiro. Admiração, incredulidade, estupefação, temor, adoração, curiosidade, desespero, ferocidade e tantas outras expressões eu vejo em suas faces. Conforme prometera, Sumé havia voltado!

Os homens, por trás das mulheres num círculo mais afastado, também descem ao terreiro, inclusive Guaratinga-açu, àquela hora da manhã já todo empavonado com seu cocar de penas e o longo colar de conchas. Ao contrário das mulheres, riem e galhofam de mim e de Potira. O irmão dela, Nhaêpepô-oaçu, o mais barulhento, diz ao povo que Potira mente, eu não sou Sumé, mas apenas um “peró-nema” (português fedorento). Encorajadas por tais palavras, algumas velhas tornam a avançar contra mim, mas são prontamente repelidas por Potira.

“Iacaba suí Sumé ruri!” (Sumé veio do céu!). “Aipotar abá Sumé momosem-eima!” (quero que não persigam Sumé!), grita a minha amiga. Então Nhaêpepô-oaçu fura o círculo das mulheres e se ajoelha aos meus pés.

“Oia Pahi-abuna! U-pitá coherê reté!” (olha o padre! Ele fica zangado e ralha!), diz sério Nhaêpepô-oaçu, mas todos riem do seu fingimento.

“Tuba, Taira, Espírito Santo rera pupé” (em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo), acabo dizendo, elevando a voz acima do burburinho. Como por milagre, os selvagens se aquietam e fitam-me embevecidos.

“Xe rai-catu gué, eimonhang Iandé Iara remimotara!” (ó meu bom filho, faz a vontade de Nosso Senhor!), espanto-me a dizer semelhante coisa a Nhaêpepô-oaçu, que se levantara e, como que apanhado de surpresa, plantara-se diante de mim. “Asé rembiueté Tupã nheenga” (a comida verdadeira da gente é a palavra de Deus), completo.

Nhaêpepô-oaçu manda Potira dizer-me que ele em breve me comerá, mas ela não obedece, pois sabe que entendo o que Nhaêpepô-oaçu diz.

“Aiquab nde i iucá-ram-eima!” (tu não o matarás!), diz Potira ao irmão, já sabendo que a ele fora destinada a nefanda tarefa de abater-me com o “ibirapema” (porrete). Em seguida, puxando-me pelo braço, a cunhantã vai rasgando a cerca humana que se formara em volta de nós, até entrarmos no rio, onde, com água pelas cinturas, continuamos observados. Só então noto Itajibá, o nobre amigo de Potira, ao lado de Nhaêpepô-oaçu. Olho para os seios de Potira, que parecem flutuar sobre a linha d’água; quando torno a olhar para a praia, Itajibá desaparecera.

“Aipotar Xande Itajibá cuaba” (quero que Xande conheça Itajibá), diz a rapariga, que, com seus dois olhinhos observadores, notara a minha inquietação.

“Anhandub nde Itajibá rausuba” (sinto que amas Itajibá), digo-lhe. “Pa, asausub” (sim, amo-o), confirma Potira.

Fico alguns instantes calado, sentindo um espinho no coração. Vendo-me amuado, ela pergunta: “Aiquê mundau, cerá?” (estás com ciúme?). “Ixé icu mundauêra reté!” (sim, estou muito ciumento), confesso-lhe. “Iaquaimuçáua!” (tolice!), diz ela. E, sem se importar com a platéia de velhas e curumins que nos espiona da margem, a cunhantã, puxando-me por debaixo d’água e esticando-se na ponta dos pés para que eu melhor a ouça, diz: “Iuri iké!” (vem cá!). “Aipotar nde xe rausuba” (quero que tu me ames). E pendura-se com os dois braços ao meu pescoço e escarrancha-se à minha cintura, obrigando-me a ampará-la pelas nádegas com as duas mãos.