4º episódio - Uma selvagenzinha cor de mate

Com muito esforço, sentindo doer-me até o menor osso do corpo, sento-me na rede atada no centro da cabana, ouvindo o risinho indiscreto dos curumins que, da escuridão do terreiro, espionam-me pelas frestas da parede de varas. Então, antes de ser devorado, eu teria uma esposa? “Que consolo!”, penso. Certamente, a viúva também participará do banquete! Apesar da situação desanimadora, flagro-me curioso para saber como será a minha esposa. Pois é incrível como o homem é capaz de se entreter com a coisa mais à toa, nos momentos mais difíceis. O que importa a esposa, se morrerei de qualquer jeito? Vou assim refletindo quando Potira surge de repente na porta da cabana. Tem os pés tão delicados que pode andar na areia sem se denunciar; tem o corpo tão leve como a brisa sutil que resvala por entre a ramagem sem murmurejar. “Potira?!”, exclamo. “Ixé, oguerur tembiu” (sou eu, trouxe comida para ti), diz a cunhantã, depositando no chão as coisas que trouxera. “Marã-namope ereiur?” (por que vieste?), indago. Será ela a prometida esposa? “Potira our muambaguera reroqué” (Potira veio fazer dormir consigo o prisioneiro). “Nde remirecoramo secoune” (serei tua esposa), responde, terminando de arrumar as coisas no chão.

Encerrada a minha entrevista com Guaratinga-açu, o tuxaua despedira os guerreiros e chamara a filha, com a mesma voz terrível: “Potira! Potira! Iuri Iké!” (vem cá!).

“Pá, xe rubangaturam” (sim, meu pai bondoso). “Renhenhem putari será ce irumo?” (quer falar comigo?), pergunta a tímida cunhantã.

“Ari peró ereroker!” (fazes o português dormir contigo!). “Onhenmongirá oicobo aipó tapene, nde xirimiricóramo secoune” (como sua esposa farás ele engordar), ordena o velho.

“Xe rubangaturam!” (ó meu pai bondoso!), repete a cunhantã, prostrando-se e beijando-lhe os pés. “Aeroquer có muambaguerane, tembiu aur i xupene” (farei dormir comigo o prisioneiro, farei comida pra ele).

“Xe rorib nde rura ri” (estou contente porque vieste), digo-lhe.

“Xe abá, ixé oroicó” (sou índia). “Atembiu-monhang” (sou selvagem). “Abati tim, soo ybõ, caa quab, jaguarete pisic” (mas sei fazer comida, sei plantar milho, sei flechar animal, conheço a mata, apanho a onça), diz Potira.

Trouxe provisões para satisfazer a fome e a sede: o resto da caça, a farinha d’água, os frutos silvestres, os favos de mel, o vinho do cupuaçu e ananás. Trouxe também uma igaçaba (pote com água).

“Iuri iké!” (vem cá!), ordena a cunhã, com a igaçaba na mão.

Desço da rede e Potira lava-me o rosto e as mãos. Puxando-me pela mão, faz-me acocorar ao seu lado, em volta do fogo. Então me oferece as coisas que trouxera, passando ela própria a mordiscar uma coxa assada de paca. “Nda xe ambiasi-i” (não tenho fome), digo-lhe.

Estou fraco, devo comer alguma coisa, insiste a rapariga. Para agradá-la, aceito um naco da paca que ela come e bebo um pouco de vinho do cupuaçu. Terminada a refeição, a cunhã asperge sobre a rede uma resina trazida numa cabaça, deixando-a suavemente perfumada, e me diz: “Aipotar nde quera” (quero que tu durmas). Sentindo doer a perna machucada, falo: “Nda keri xoe corine, inti ce repoci” (não dormirei hoje, não tenho sono).

Potira senta-se na rede e, puxando-me para junto de si, pede: “Aipotar nde xe reroquera” (quero que tu me faças dormir contigo). Deito-me ao seu lado, deixando a perna ferida para fora, a fim de protegê-la. Ao contrário de mim, que sempre dormi em cama e não me acostumo com rede, a desenvolta cunhã, flexível como uma serpente, encontra logo a melhor maneira de enroscar-se ao meu corpo, sussurrando-me, em tupi: “A flor da mata é formosa quando tem rama que a abrigue e tronco onde se enlace”.

Embora doce fosse a voz da cunhã e morno o seu corpo, sinto-me tão acabrunhado que só me ocorre dizer: “Tupãna irumo, Potira, xa çó raín té uirandé” (adeus, Potira, até amanhã).

“Ixé xati xa icó!” (estou com vergonha!), murmura a rapariga.

“Re ti será? Potira reté poranga” (você tem vergonha? o corpo de Potira é bonito), digo-lhe. “Guiqué anheeng!” (falo dormindo!), diz a cunhã, dando um risinho. Digo-lhe que isso não importa, gosto da sua voz; eu é que devo ter vergonha. “Marã-namope? Nde porang!” (por quê? tu és bonito!). “Aitá omahã será oicó” (eles estão olhando), digo, apontando para as frestas da parede de varas, por onde os curumins continuam nos vendo, embora o fogo esteja quase se apagando.

Esganiçando a voz, Potira ralha com os curumins, pondo-os para correr entre risinhos. Depois de algum tempo, pergunta: “Abá-pe endé?” (quem és tu?). Como fazê-la entender que eu sou um naturalista? “Ixé mbaepisic” (sou apanhador de coisas), digo-lhe. “Mamõ-pe ereicobé?” (onde vives?). “Na cidade, um lugar onde vive muita gente”, respondo. “Reutá será chirora ima mairipe?” (você anda nu na cidade?). “Intimahã, xa iumunéu uatá” (não, ando vestido). E as mulheres da cidade andam “camixaimas” (nuas)?, ela quer saber. “Intimahã” (não), respondo. “I aisó cunhantãs murutinga...” (são formosas as moças brancas...), murmura. “Tupã nde moaiasóete i xuí” (Deus fez-te mais formosa que elas), digo.

Tais palavras, porém, não a deixam mais alegre.

“Potira i aruru” (Potira está tristonha). “Opitaeima Sumé turi” (Sumé veio para não ficar), diz ela. “Marã-pe eré?” (que dizes?), pergunto, sem entender o que a cunhã quer dizer com “Sumé”. “Iabaca suí Sumé ruri” (Sumé veio do céu), diz Potira. Porventura ela está me chamando de Sumé? “Ixé Alexandre!” (eu sou Alexandre!), digo-lhe.

“Xe Sumé!” (és Sumé!) “Sumé murutinga, Sumé i aob!” (Sumé é branco! Sumé tem roupa!), insiste Potira. “Ixé Sumé?!” (eu sou Sumé?!), pergunto, admirado. “Pá, Auié-bé!” (sim, certamente!). “Tupã oicó nde pupé” (Deus está dentro de ti), garante-me ela. “Mãhata renhehê?” (o que você diz?), exclamo, deveras intrigado.

Então ela pergunta se eu quero mesmo saber.

“Pá, xa có putari” (sim, quero).

“Intimahã iauçú reté, xa nhenhe curí curutê” (não é difícil, hei de falar depressa), ela diz.

Todavia, inesperadamente, desce da rede e, da porta da cabana, fala, antes de sair: “Ixé aiebirine” (voltarei já). E desaparece na escuridão do terreiro, deixando-me entregue ao silêncio da noite. O fogo da cabana havia se apagado; sinto perpassar nos olhos o sono da morte; revivo os dias passados melhor do que os tinha vivido.

Eis que volto à terra natal, abraço a velha mãe e revejo o anjo puro e terno dos amores infantis. Mas um ruído, como que de passos na areia, desperta-me do devaneio. Quem será? A aldeia já dorme. As velhas escandalosas e os curumins barulhentos já se recolheram. Os guerreiros já mijaram todo o cauim e cessaram seu canto. Só os velhos pajés, na porta de suas cabanas, pitam cigarro enquanto miram as estrelas. A mata rumoreja e as corujas piam, emprestando uma nota lúgubre ao silvo das serpentes. Algo de suspeito há no respiro intenso da floresta. De quem serão os passos em torno da cabana? Suaves como a brisa são os passos de Potira; ninguém os escutaria. Então quem será?

Quando Potira retorna, traz numa folha gotas de verde e estranho licor vazadas de uma igaçaba, que ela tirou do seio da terra. Estendendo-me a taça agreste, manda que eu beba, aliviará as minhas dores. “Nde pereba aiposanongine” (amanhã curarei as tuas feridas), garante-me.

Antes de beber o misterioso líquido, pergunto quem rondava a cabana. “Itajibá”, responde ela. “Itajibá? Auá tahá Itajibá?” (quem é Itajibá?), torno a perguntar.

“Esiquiié umem” (não tenhas medo). “Xa quau ahé taina çuí ué” (conheço-o desde pequeno). “I marangatu nde iabé” (ele é tão bondoso quanto tu), tranqüiliza-me Potira. Itajibá, Braço de Pedra, é diferente do irmão dela, Nhaêpepô-oaçu, Grande Caldeirão. Enquanto este jacta-se de trazer nas veias o nobre sangue de Guaratinga-açu, Itajibá granjeia a admiração de sua tribo e o respeito dos inimigos unicamente por seus feitos, pois, embora ainda muito jovem, já se ombreia em galhardia e coragem aos mais provados guerreiros. Não há moço – nem mesmo Nhaêpepô-oaçu – que o iguale na altivez do porte, na agudez da vista, na firmeza do braço. Tem a força e a destreza do puma aurinegro que domina as matas. Ninguém manuseia o arco melhor que ele, ninguém arremessa a flecha com mais certeza, ninguém o excede na audácia em perseguir a caça. Esta, à sua vista, treme, pois Itajibá, com sua flecha certeira, é capaz de cortar a carreira do caitetu ou o pulo do maracajá, e de abater o gavião carniceiro no vôo. Seu ouvido sutil pressente a “boicininga” (cascavel) entre os rumores da mata; seu olhar de felino vê melhor nas trevas que o “oitibó” (coruja). Quando voga deslizando com sua igara, cuja proa, como a asa de um pássaro, apenas frisa as águas, nem as garças ariscas fogem da beira do rio, e os jacamins mesureiros vêm saudá-lo roçando os peitos no chão. Itajibá não passava de um curumim quando um malefício misterioso dizimou-lhe a família, mas não ficou abandonado; toda a tribo o criou, sustentando-o e educando. Teve a sorte, ainda, de cativar a afeição do chefe Guaratinga-açu, que, estimando-o como a um filho, deu-lhe especial proteção, crescendo Itajibá ao lado de Nhaêpepô-oaçu e Potira, filhos do tuxaua, participando das mesmas brigas e brincadeiras. Mas os cuidados paternais de Guaratinga-açu serviram não só para distinguir Itajibá entre os guerreiros, como também geraram ciúmes em Nhaêpepô-oaçu, o qual, vendo em Itajibá um concorrente aos favores do pai, odiou-o.

Potira fala do amigo com tanta veemência que chego a pensar que não são apenas fraternos os seus sentimentos. Tal pensamento desagrada-me. O que me importam os sentimentos de uma cunhã? Os sábios não dizem que os índios, afora o ódio e o ciúme que os transformam às vezes em bestas-feras, são incapazes dos sentimentos profundos e multiformes que determinam a vida e os atos do europeu? Apesar disso, flagro-me perturbado diante de Potira e com uma enorme curiosidade para conhecer Itajibá, o tapuio que adocica a voz da cunhã e faz brilhar os seus olhos. Será tão bonito quanto ela diz?

“Itajibá i catu” (Itajibá é bom). “Aipotar Sumé Itajibá cuaba” (quero que Sumé conheça Itajibá), diz ela, como que adivinhando os meus pensamentos. “Reputari será?” (queres conhecer Itajibá?).

Como nada respondo, ela quer saber o que eu tenho. “Maháta rerecó?” (o que tem você?). “Intimahã mahá” (não tenho nada), respondo. É-me difícil admitir que esteja caído por uma selvagenzinha cor de mate, e sinta ciúmes.

“Ka’u!” (bebe!), ordena, retirando-me a mussurana que me prende o pescoço, contrariando, assim, a recomendação paterna. Enquanto sorvo o estranho licor, Potira recosta-se lânguida ao punho da rede e fica aí me observando. Ao voltar a olhá-la, já sob os eflúvios do misterioso líquido, os olhos negros e fúlgidos da rapariga, ternos olhos de sabiá, penetram-me a alma. Dizendo que conhecia o segredo da jurema e o mistério do sonho, ordena que eu durma; não deixará os maus espíritos da noite turbarem o meu sono. Então, como o pássaro fascinado pela serpente, sinto um torpor irresistível apossar-se do meu corpo, mas – incrível! – clara como o dia fica a minha mente.

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Nicodemos Sena é escritor e jornalista santareno radicado em São Paulo. E-mail: nicosena@iconet.com.br