ENCONTRO COM STANLEY


 Stanley, em Luanda, foi hospedar-se em minha casa;

distinção a que eu fui muito sensível,

 porque recusou, para isso, os muitos convites que teve e,

com eles, comodidades que eu não podia oferecer-lhe,

numa casa onde tinha por mobília os meus utensílios de viajeiro.

(…) O cônsul americano, o Sr. Newton,

deu-nos um almoço e muitos favores nos dispensou.

 

Serpa Pinto

Como eu Atravessei a África

 

A história de Henriques enriquece-se na pena de Ferreira, no relato do imenso labor de quinze anos, levantado a partir de inéditos do próprio Newton, que muita canseira lhe tinham dado a coligir e a reconstituir historicamente, tal como a Henriques, para cujas notas de 1880 a 1882 no Boletim da Sociedade Broteriana Ferreira remete. Julgava eu que Ferreira só tinha copiado a nota de Júlio Henriques, afinal fartou-se de trabalhar. Como bom cábula, Ferreira oculta o original, porém a minha curiosidade de gralha levou-me directamente ao objecto luzente: essas notas só aparecem a partir do tomo III, 1884, datada a introdução de Júlio Henriques de Dezembro de 1884, e publicado o volume em 1885. Henriques recebia as plantas coligidas por Capelo e Ivens, com os respectivos locais de colheita, teve tempo para as dar à estampa de modo a Ferreira fingir que datavam das antediluvianas explorações de F. Newton, em 1880-1882. Não será a última vez que Ferreira presta a Newton o auxílio de informações bibliográficas imaginárias.

Talvez seja útil dizer, para melhor apreensão da literatura que Newton nos vai proporcionar, que a maior parte dos relatos e relatórios de exploradores se faz sob a forma de diário. O diário, tal como a carta, não carece de ser arrumado nem reconstituído historicamente, porque obedece a uma estrutura simples, a de datação de segmentos, que assim ficam naturalmente dispostos por ordem cronológica. Tudo isto se complica quando os diários são redigidos a posteriori, como o primeiro fragmento de Duparquet, ou quando alguém reproduz o que leu num manuscrito deixado por um sujeito que diz ter lido outro manuscrito encontrado em Saragoça. É o caso do que havemos de ler nos espanhóis acerca da escalada ao Pico de Santa Isabel e da descoberta do Lago Loreto. Aqui a estrutura narrativa já não se inspira no Boletim da Sociedade Broteriana, nem no Diário do Governo, sim por exemplo no Dom Quixote. Tudo isto se complica quando, como nas cartas de Newton, não há referentes geográficos nem cronológicos, para o gato poder estar escondido na China com o rabo de fora no Lobango. Sim, porque em caso nenhum há completo segredo, a ciência faz questão de se ocultar, mas deixando um vistoso rabo de fora. Como ao faltar, de novo, o mais natural: se Newton andou pela Huíla, tão perto da casa de Anchieta, como é possível que o não tenha ido visitar à Caconda? Mas subiu o grande rio com Van de Velde, viu Stanley, foi iniciado na caça por Erikson, na botânica por Duparquet, etc..

A expedição de Axel W. Erikson, ao Humbe, Cuamato e Cuvelai, só se verificará em 1887 (Crawford-Cabral & Mesquitela), por conseguinte não participou nela. Na de Duparquet de 1880, já vimos que Erickson iniciou o jovem Andersson, resta saber em que grau.

Quanto ao neurasténico lorde belga que se suicidou, Lorde Elsen ou Elssen, ainda não lhe descobrimos o rasto.

Os viajantes, missionários e exploradores, andavam por África a cumprir missões obscuras quanto ao modus operandi, claras nos objectivos: afastar Portugal da corrida a África, conquistar território para os seus patronos. Numa carta do governador de Angola, lemos o seguinte:

Tenho rasões para acreditar, que a exploração scientifica de que se diz encarregado o major allemão Alexander von Mechow, chegando aqui n’este paquete, não passa de um pretexto ou antes d’uma capa para encobrir o verdadeiro fim da sua viagem.

Se é verdadeira a informação que me deram, e como tal a tenho, o homem não passa de um engenheiro, que vem com dois conductores (os seus companheiros de expedição) estudar o traçado de um caminho de ferro, que ligue o Cuando[1] ao Zaire tendo como estação-termino Boma.[2]

 O governador insiste, o caso não era isolado, andava em Angola outro explorador alemão, cujo nome não refere, e tudo isso lhe parecia suspeito. Mas o objectivo dos missionários da cartografia portuguesa da época, como ele diz - Capelo, Ivens e Serpa Pinto -, também não era cientificamente desinteressado: de uma parte, não sabemos quais as suas contraditórias e secretas instruções, uma vez que as recebiam de antagonistas na Sociedade de Geografia, do Governo, e provavelmente das fraternidades, daí que se tenham zangado e seguido Capelo e Ivens para um lado e Serpa Pinto para o que ninguém lhe tinha sugerido; de outra, eles deviam abrir ao comércio os sertões de África, conseguir as boas relações dos sobas com os portugueses, e em muitos casos conseguiram-no, como após a visita de Ivens aos gentios de Quipungo.[3] Aliás são eles mesmos que o declaram, em De Angola à Contracosta:

 Foi em Março de 1884 que aí começou os seus trabalhos a nossa expedição, esperançada em resolver vários problemas, nos quais figurava o de encontrar um caminho comercial entre as províncias portuguesas de Angola e Moçambique.

Esta utopia dos portugueses em África, no século XIX, consubstancia-se no mapa cor-de-rosa e finda no cataclismo do Ultimato britânico. Luciano Cordeiro, irritado com os falsos exploradores estrangeiros, em especial com o livro de Lorde Mayo, deixou dele este retrato:

 o escrito de um simples tourist, herdeiro dum nome ilustre - que ultimamente andou no nosso distrito de Moçâmedes, caçando e mercadejando, ao abrigo da nossa protecção e das isenções valiosas de direitos fiscais que tivemos a generosidade de lhe conceder sob o pretexto de uma exploração científica, mais do que hipotética.

 Se Newton tivesse acompanhado Lorde Mayo nessa missão científica mais do que hipotética, Luciano Cordeiro não deixaria de o revelar, a menos que se tratasse de missão como Colegial Invisível. Mas ele não tem rebuço em falar de espionagem e em dizer até o nome de um navio português que foi vigiar movimentos de estrangeiros no Golfo da Guiné. Luciano Cordeiro clama que os estrangeiros sabiam melhor do que nós o que se passava em nossa própria casa. Eram os lordes belgas e ingleses, os jornalistas americanos, os missionários franceses e italianos, os exploradores suecos, polacos e alemães, que se infiltravam em todas as parcelas africanas que pertenciam a Portugal ou lhe interessavam, tal como na Errática vemos que Newton se infiltra em colónias estrangeiras. O mais curioso é que os americanos trabalham para os belgas, os franceses e ingleses para os holandeses, os italianos para os franceses, os nossos heróis - Frank, Francis, Nevvton, Nexton, Reesetán e tantos mais - para os espanhóis, e não se vê um agente a defender honesta e claramente os interesses do seu próprio país.

Nas cartas diz ele que fez o mapa de Ano Bom, com treze novas ribeiras, assim se distinguindo do capitão Boteler, que só registara uma[4], baptizou com nomes de cientistas portugueses os acidentes geográficos - as 13 ribeiras -, levou lá um fotógrafo profissional inglês, o que demonstra como defendeu os interesses de Espanha. A isto chama-se ocupação de território. Com a Conferência de Berlim, deixa de ser reconhecido o direito histórico à posse das colónias. Era preciso ocupar. Ocupar significava ter autoridades na região, cultivá-la, explorá-la cientificamente e nos recursos naturais. Foi o que Newton fez: dobrou-se para a terra, introduziu o cacau, plantas da Madeira, quinas, maracujá, os outros exotismos que lista nas cartas e tudo aquilo de que discretamente não fala. Na escalada ao Pico de Santa Isabel, os próprios espanhóis reconhecem o mérito dos seus trabalhos.

Mal eles sabiam que os agentes são duplos, triplos e múltiplos. Perdido o Congo, o nosso Eneias tenta conquistar a ilha de Ano Bom, e para isso até pede dinamite para Lisboa. Perdido o grande rio Zaire, o nosso Reesetán consola os portugueses com os esplêndidos treze rios da ilha espanhola: Fleuve S. Jean, Fleuve S. Pierre e La Toussaint. Infelizmente, os retratos, mesmo com o último grito em máquinas fotográficas, e fotógrafo profissional inglês, sairam desmaiados. Mas já os treze rios são uma sorte, metem o Níger, o Congo e o Zambeze numa canoa (piroga).[5] Deixemo-los aos espanhóis e vejamos o escrito do neurasténico turista que concebera a mania de matar todos os leões de África.

De Rebus Africanis (Earl of Mayo) apresenta-nos um relatório sobre o comércio e estado político da África ocidental, e nada nele deixa perceber desejos ou oportunidade de caçar leões. É um homem de negócios que transparece no discurso. Defende os interesses da Inglaterra dizendo quantas casas comerciais inglesas se tinham estabelecido na costa ocidental africana, quantas toneladas de produtos a Inglaterra importava de África e exportava para lá, ao contrário de Portugal, cujo comércio era nulo. Em Maio de 1882 estava em Bonny, no delta do Níger, vai descendo, e é bem possível que se tenha encontrado em Luanda com algum Newton, pois informa que existia ali uma casa comercial inglesa com este nome. Sim, era a Newton Carnegie & C.ª, propriedade de Robert Scott Newton[6], que parte com a família para Lisboa a 18 de Junho deste ano, no Benguella. Em Setembro, o Earl of Mayo teve de ir à alfândega levantar um embrulho com amostras que tinham vindo de Liverpool no Ethiopia, tendo-se cruzado aí com algum empregado da Newton Carnigie, que ia buscar uma caixa de chapéus de sol chegada no mesmo vapor.[7] Em Moçâmedes, no mês seguinte, é bem natural que tenha viajado com Frank Newton, e mais natural ainda que Frank Newton tivesse acompanhado Duparquet, mas este Frank não é o nosso Francisco. Deve ser o cônsul americano que ofereceu um almoço a Serpa Pinto e Stanley em Luanda. A biografia de F. Newton é uma manta de retalhos de biografias alheias. Viviam vários Newtons em Angola, circulavam Newtons nos navios, pertencendo à Marinha Portuguesa, havia Newtons nativos, o que é natural, apesar da selecção artificial.

O essencial do relatório de Lorde Mayo é demonstrar que Portugal, ao contrário da Inglaterra, não tem argumentos que lhe permitam reclamar soberania no Congo - as cidades portuguesas estão uma ruína desde que cessou o tráfico oficial de escravatura, os fortes acham-se em estado de descalabro e não vive neles mais do que uma dezena de soldados indígenas, não se fez saneamento básico em Luanda, não se abriram estradas, não se cumpriu a promessa de construir vias férreas, mantém-se a servidão e mesmo a escravatura em Angola e S.Tomé.

Eis os leões que pretende caçar Lorde Mayo - todos os mercados africanos e não só os da bacia do Zaire -, contra as infundadas pretensões portuguesas e contra a hipocrisia da Associação Internacional Africana, criada pelo rei da Bélgica.

À sombra da Associação, de programa exclusivamente humanitário e científico, visando em primeiro lugar a extinção da escravatura, no qual se integra a expedição de Stanley ao longo do rio, aquela em que teve a honra de ser visitado por F. Newton, escondia-se a manobra política de ocupação da zona, em breve Estado Livre do Congo, e logo depois o que antes de ser já era - colónia, o Congo Belga. Ataque violento, sobretudo à escravatura em S.Tomé, ameaçando Lorde Mayo que se ia encontrar a melhor maneira de acabar com ela, tal como acontecera ao tráfico de coolies de Macau que se transportavam para o Brasil.[8] Num ponto Lorde Mayo tem excesso de razão: a Associação Internacional Africana era de uma hipocrisia total.

 Francisco Newton terá conhecido Lorde Mayo? Em Outubro de 1882, façamos de conta que sim, só para respirarmos de alívio no meio de tanto erro de caligrafia. É possível que Newton estivesse nessa data em Angola, mas não no deserto de Moçâmedes a interromper a cópula do líquene com a rosa, sim em casa de algum Bom Primo Newton, depois de ter passado as férias grandes em Leça da Palmeira, com rapazes da sua idade como o Anto e o Augusto Nobre.

E Stanley? Francisco Newton tê-lo-á conhecido? Quem alcançou Noqui, lugar próximo da primeira estação permanente de Stanley, foram Capelo e Ivens, antes das duas travessias de África, em 1876. No ano seguinte, já na primeira missão, ali se encontram de novo com Stanley, quando este descia o rio. Folheámos alguns livros do célebre explorador-jornalista, em que desgraçadamente não vimos referência a Newton. Mas nós só procurámos Newton, nada garante que o Rapaz Invisível não se lhe tenha apresentado como Miss Bonde 033. Mas infelizmente não, Nevvton não viu o seu colega, pelo menos nessa data. É lapsus calami dizer-se que subiu o Congo com Van de Velde e avistou Stanley no rio em 1884. 

A missão de Stanley era a de negociar com os sobas contratos de Cession of Territory. Ele explica o significado dos termos: não querem dizer aquisição de solo, sim de soberania pela Associação Internacional Africana. E assim Stanley foi fazendo tratados em que os sobas assinavam de cruz, e deixando militares a governarem as soberanias adquiridas, sob a bandeira azul com estrela dourada da Associação. Uma delas foi a estação de Vivi, onde deixou Van de Velde, aliás este tratado foi negociado pelo tenente Van de Velde, a 8 de Janeiro de 1883.[9] Consultando a Errática, vemos que, salvo qualquer distúrbio a que agora não podemos acudir, Newton não saiu da Huíla em 1883, agachadíssimo sobre fetos e caracóis. E Van de Velde já estava em Vivi, no Baixo Congo, em Janeiro. Em Março, porém, acontece precisamente o que Ferreira declarou, como se comprova ao toparmos a cartilha plagiada: 

 Unfortunately, however, after a few months’ stay at Vivi, his failing health compelled him to return to Europe (Stanley).

 É gralha, por conseguinte, que Newton tenha subido o rio com Van de Velde. Poderá tê-lo subido sozinho e visto Stanley sem V.V.?

A questão é que Stanley tinha partido da foz do Zaire em 1879 com meta em Stanley Pool, no Alto Congo, mas em Dezembro de 1883 já vem a descer o rio, e em Julho do ano seguinte chega à Europa. A Errática desta vez não ajuda nada, por isso sigamos só Stanley: em Janeiro de 1884 passa ele por Iboko, Equator, Ngombé, Bolobo, tudo estações civilizadoras, nome que dava aos territórios cedidos pelos sobas em tratados assinados de cruz na viagem de subida do rio, porque à descida já tudo aquilo era o civilizado Estado Livre do Congo, mas a 20 de Janeiro está em Kinshasa, que é ponto de referência perceptível, em Março já está em Vivi, no Baixo Congo, onde fica até fins de Abril. Ora em Março de 1884, Newton está de cócoras no Rio Pallanca, em Angola, a apanhar líquenes. Mesmo que tivesse ido a Vivi, não faz sentido dizer que subiu o rio. Para impedir Stanley de civilizar o que queríamos para nós, era preciso tê-lo interceptado dez ou quinze anos antes.

Na subida, Stanley civilizou: abriu estradas para poder avançar, declarou ao mundo que o futuro de África pertencia a quem construísse caminhos de ferro[10], daí a científica exploração de Mechow e outros finórios, como diriam Capelo e Ivens. Na descida ficava criado o Estado Livre do Congo, mas não foi Stanley quem fundou o Congo Belga, porque entretanto se despediu da Associação, ao perceber que o rei Leopoldo não era a educada pessoa que julgara. O Congo Belga criou-se sem ser preciso civilizar ainda mais. Com efeito, Leopoldo II, antes de morrer, deixou expressa a vontade de que as soberanias adquiriridas aos sobas, constitutivas do Estado Livre do Congo, pertença da Associação Internacional Africana, passassem como herança para a Bélgica (Santa-Rita). Foi assim, por disposição testamentária, que a Bélgica herdou como colónia o que era um Estado livre cuja soberania pertencia a uma associação cuja bandeira fora em tempos transportada por um cidadão americano.

A projectada viagem de Capelo, Ivens e Serpa Pinto, anos antes, não se realizou porque já não valia a pena, Stanley acabava de descer o rio quando eles tencionavam subi-lo. Para acompanhar Duparquet, Erikson, V.V. e Stanley, Newton também chega tarde: eles já tinham abandonado o lugar onde se diz que os encontrou. As expedições portuguesas só se iniciam depois de África estar cheia de exploradores estrangeiros. Portugal só dá atenção ao Congo, rio dos maiores do mundo, depois de vários portugueses, desde décadas antes, bradarem que era preciso dar-lhe atenção. Não só Stanley, também Brazza, Cameron e tantos outros, já tinham cumprido as missões de que a Sociedade de Geografia de Lisboa encarregou Capelo, Ivens e Serpa Pinto, com as consequências conhecidas: a bacia do Congo, sobre a qual reclamávamos direitos, acabou nas mãos de belgas e franceses. Ficámos com Cabinda. Nas Rodésias, não lográmos nada. Com Cecil Rhodes, só acumulámos dívidas.

Cecil Rhodes, o homem que queria ligar o Egipto ao Cabo, o que impediu a concretização do mapa cor-de-rosa, em que queríamos ligar costa a costa, e deu o nome à Rodésia, era muito nosso amigo. A 17 de Janeiro de 1895, sete anos volvidos sobre o Ultimato, fez um discurso em Londres acerca dos portugueses em África. Mostrou-se amável, lembrou que os portugueses tinham sido os primeiros colonizadores, mas que só tinham colonizado a costa, não entrando nos planaltos do sertão. Afirmou que não havia conflitos entre ingleses e portugueses e que o relacionamento continuaria bem. E mais: os portugueses tinham declinado a oferta de auxílio na guerra contra o Gungunhana, não só aos ingleses como ao Transval e a duas potências europeias. 

 GRALHAS

Todos sabem que não temos um navio em estado de desempenhar uma commissão de serviço urgente, nós, paiz colonial, que no anno da graça de 1895 devemos aos credores um milhão de contos de réis![11]

 

Newton, mesmo com o seu destacamento de Reesetáns, Francis, Mewtons e Nwetons, não conseguiria impedir a Pátria de sofrer este trágico adeus à grande potência colonial de outrora. O que podia fazer, fê-lo: multiplicou topónimos e criou territórios a partir do nada, contribuindo assim para levantar a carta da Nova Atlântida; quando não, enlutou-se como tantos outros, que chegaram a pôr uma faixa preta a todo o comprimento da fachada do Teatro Nacional.

Estes factos, hoje para nós um filme mudo, na época eram dramáticos e incendiavam a opinião pública. Todos os dias acontecia qualquer incidente, ameaça de guerra, guerra mesmo, que custava vidas, dinheiro, território ou improfícuas conversações diplomáticas. Se as relações internacionais eram tensas, em África os indígenas sublevavam-se, decorrendo por isso as campanhas de pacificação.

Na exploração de Angola de 1903-1906, Newton aparece de repente na Lunda, a enormíssima distância, quando se esperava que recuperasse em Luanda das doenças já muito agravadas. A menos que tenha ido motorizado, pois precisamente nessa altura o Governo pôs a concurso a concessão de carreiras de automóveis nos distritos de Luanda e da Lunda, exclusivo ganho pelo Conde de Vizella.[12] Por um período de quinze anos, podia arrecadar os lucros da exploração das carreiras.[13] Newton foi de machimbombo defender o território, mas infelizmente chegou tarde: Dahnis já tinha arrebatado metade do Império Lunda para Leopoldo. Reclamámos contra a usurpação, mas o rei enviou-nos um ultimato e mandou um agente ver se comprava em Inglaterra um navio em segunda mão para bombardear Lisboa (Santa-Rita).[14]

A principal dificuldade na leitura dos textos relativos a Francisco Newton, incluídas as suas cartas, é a de que sem referências nos escapa essa figura tão perecível da ironia, quando incide em factos históricos não contextualizados. Por outras palavras, o maior obstáculo a este percurso no labirinto da Nova Atlântida é a nossa falta de mapas - enfim, a nossa ignorância.

Façamos por isso uma pausa, tanto mais que Joaquim Sampaio informa que Francisco Newton partiu para África aos dezanove anos (depois de Maio de 1883), significando isto que são gralhas tudo o que dele se relatou até aqui, o que nos apanha totalmente de surpresa.

 Chegados ao fim do balão expedicionário, olhemos para a Errática: há dois graus de insuflação e duas categorias de assopradores. Os contemporâneos dos factos avultados são mais frisantemente os botânicos europeus, com a cooperação do zoólogo do Museu de Lisboa, Bettencourt Ferreira. Só sopram o balão dentro dos limites de um tempo verosímil - 1880-1883. Os outros, de que o mais atlético é Seabra, escrevem dez ou vinte anos depois, e recuam as explorações a uma época em que F. Newton ainda nem tinha nascido, fazendo estoirar o balão. 

 GRALHAS

Júlio Henriques (1886) informa que o facto de terem saído no Boletim da Sociedade Broteriana catálogos das plantas coligidas por F. Newton, cuja importância reconheceram todos os botânicos estrangeiros que as classificaram, entre elas descobrindo novas espécies para a ciência, foi motivo para o governo lhe atribuir a missão de explorar a província de S.Tomé e Príncipe. 

 



[1] A palavra Cuando foi riscada, e a lápis, por cima, escrito Cuango.

[2] Carta do governador para o Ministro da Marinha, Luanda, 23 de Novembro de 1878. Arquivo Histórico Ultramarino. Pasta 3 das Explorações Científicas e Comerciais.

[3] Carta do governador Francisco Joaquim Ferreira do Amaral para o ministro da Marinha, Luanda, 14 de Junho de 1884. Arquivo Histórico Ultramarino. Pasta 5 das Explorações Científicas e Comerciais.

[4] O capitão Botelha devia estar com a telha.

[5] Em Ano Bom só existe um curso de água com algum significado, o riacho Bobó. O ilhéu é pequeníssimo: 18 km de área, 7,4 km de maior comprimento norte-sul e 2,8 km de maior largura.

[6] Boletim oficial de Angola, 24.6.1882. Da comissão consultiva do Banco Nacional Ultramarino fazia parte a Newton Carnigie & C.ª.

[7] Ibid., 9.9.1882.

[8] Entrou ontem o transporte África, vindo de Macau, donde trouxe 450 chineses para as ilhas de S. Tomé e Príncipe. Morreu um dos emigrantes a bordo. Dois desapareceram em Lourenço Marques, não se sabe se por terem fugido se por terem sido vítimas de qualquer acidente - lemos no Diário de Notícias de 9 de Junho de 1895, ficando a pensar que é forçada esta emigração.

[9] Os portugueses tinham conhecimento de tudo, pois passámos os olhos por umas Instrucções por que se deve guiar o senhor commandante do vapor “Vilhena”, durante a commissão que vae desempenhar no rio Zaire e costa ao norte de Ambriz, assinadas pelo comandante Capello, irmão do explorador. No mesmo dossier há outros documentos sobre o assunto, em que se menciona uma reunião a 7 de Janeiro de 1883 na foz do Mpsoso, na qual estiveram presentes Van de Velde, chefe da Comissão Internacional do Alto Congo e um príncipe indígena, Canga Pakka, de Palla Balla, e mais familiares. Não vimos nenhuma assinatura de portugueses, sim uma cópia do contrato estabelecido entre o soba e a Expédition Belge, que fundava a estação de Vivi (do nome de Van de Velde). O vapor “Vilhena” devia ir até Noqui e Boma, passar por Ambriz e Ambrizete, etc.. Arquivo Histórico Ultramarino, pasta 5 da Explorações Científicas e Comerciais.

[10] Diário de Notícias, 26 de Maio de 1895.

[11] O Seculo Negro, 10 de Novembro de 1895.

[12] Diario do Governo, 27 de Fevereiro de 1903.

[13] Diario do Governo, 5 de Agosto de 1903.

[14] Tal como Ferreira macaqueia Henriques, Leopoldo dá-se ao luxo de macaquear o Ultimato, com a ameaça dos ingleses de que a esquadra britânica estacionada em Gibraltar bombardearia Lisboa se não retirássemos do Chire, no hinterland do mapa cor-de-rosa.