A GAIA CIÊNCIA
COMO INSTRUMENTO DE SUBVERSÃO DE ESTADO
Qual será o monstro do tema paródico que o vai seduzir daqui a pouco? Incipit tragoedia diz o fim deste trabalho de uma inquietante simplicidade: estai em guarda! Prepara-se alguma coisa, massa de malícia e de maldade: incipit parodia, isso não deixa qualquer dúvida
Nietzsche, A Gaia Ciência
Não quero ajudar o leitor a responder a certas perguntas, isto é, a interpretar. Qualquer discurso, mesmo o científico, gera sempre várias linhas de sentido. Optei por me cingir ao literal, anotando alguns signos de duplo sentido, como os símbolos. Não se entenda duplo sentido em sentido aritmético, pois há signos e símbolos com dezenas de significados. Entenda-se como duplicidade e ludíbrio. Ludíbrio provém de ludus, jogo, divertimento e ocultação, tudo elementos de uma literatura que passa conhecimento importante sob a máscara do recreio ou sátira, e tem expoentes quer em Rabelais quer em Lewis Carroll, quer em Gil Vicente quer em Almada Negreiros, autor da máxima: Alegria é a coisa mais séria da vida. É a paródia de Nietzsche, moeda cuja outra face é a tragédia. Assim define ele a gaia ciência, também chamada gai savoir, saber esfuziante, que transborda do copo como a Miss Ale, sobe à cabeça, nasce das saturnais e orgias, produz tanto as trovas do Bandarra como o Apocalipse, tanto a lírica como a obra fescenina de um Bocage. Tem mil nomes a gaia ciência, consoante o autor e aquilo a que se aplica. Podemos reduzi-los a um: Tradição. A tradição não é racionalista, lida com o inconsciente colectivo, está do lado de Dionísio ou Mamon, deus do Carnaval, não do lado de Apolo, o deus do equilíbrio, do respeito às normas.
O corpus científico de que nos ocupamos inclui um registo de gaia ciência, tem aspectos lúdicos, que por isso ludibriam, e usa o nível simbólico do signo, às vezes de forma brutal, por se parodiar a simbólica de grupos religiosos adversários. Deixamos de lado a sua descodificação, por nada adiantar ao trabalho. Interessa apenas que alguns funcionam como assinatura, marcando os textos como um calão (argótica, arte gótica). Assim sendo, conseguimos atribui-los a este ou àquele grupo falante, o que presta ajuda para os identificar. Por exemplo, volta e meia refiro nas notas factos relativos a carvão e carbonera, porque os próprios autores descem a esses pormenores aparentemente ociosos de historiografia, o que, no contexto, aponta a presença de grupos carbonários em certos locais.
Desde que possamos verificar a informação, limitar-nos-emos a distinguir entre enunciado falso e verdadeiro, e a assinalar algumas gralhas com negrito. As gralhas só incidem na nomenclatura: nos nomes de espécies, de pessoas e de lugares. Noutro nível, como já foi comunicado publicamente, na geografia, distribuição geográfica, anatomia, comportamento e história das espécies (Guedes & Peiriço, 1999).
Desde Lineu, a nomenclatura é matéria básica em História Natural. Publicam-se regularmente códigos que ensinam a ortografia, as concordâncias, a alatinar vocábulos gregos ou de outras línguas. A regra fundamental ensina que os nomes dos grupos sistemáticos se escrevem em latim. Um nome como Gobius bustamantéi, uma vez que foi acentuado, não é latim clássico, sim macarrónico, tal como a Macarronésia (de Macaronea, mistura de línguas). O conhecimento do latim era maior e mais generalizado então do que agora, mesmo em Ciências. Uma das condições de admissão à Escola Politécnica era ter o 1º, 2º e 3º anos de Latim do curso liceal.[1] É mais um ano do que hoje se exige a alunos que queiram frequentar a Faculdade de Letras.
Outra regra diz que os nomes atribuídos na descrição original não podem ser alterados, nem sequer para os corrigir, se por acaso estiverem gralhados. Hoje, para alguém alterar um nome, teria de submeter o caso a um júri da International Society of Nomenclature, que o publicaria no seu Bulletin, solicitando a vários especialistas argumentos pró e contra. Estes argumentos seriam publicados também. Depois de bem analisados, o júri então deliberaria se era de manter ou de alterar o nome do táxone.
Se todos se lembrassem de corrigir, deixava de se saber a que animais ou plantas se referia dado nome. Por isso nós também não o podemos fazer: no caso do Macroscincus coctei, que já vimos tratado como Eupropes, macroscineus e Manrroscinco, e a que Newton chama Macrocinctus e Macrocincus, não podemos emendar. Isso seria falsificação dos dados, aliás as citações não se corrigem. Para alerta existe o sic, o ipsis verbis, etc., a que preferimos o negrito.
Uma das obras de nomenclatura mais antigas que conheço em Portugal, Questões de Philosophia Natural, deve-se a Albino Giraldes, director do Museu Zoológico de Coimbra. Está escrita metade em latim e metade em português. É interessante porque Nobre (1937) também escreve um mesmo texto em português e em francês. Agora dirige-se às musas e logo a seguir já está a falar às gralhas (Aves: Corvidae). O mesmo ocorre em Seabra (1907), que escreve em francês com frases parentéticas em inglês. E ainda em Salvadori (1903), ao transcrever Sousa (1888) sem quaisquer sinais de citação, misturando ao português umas pitadas de francês e italiano.[2] Este fascinante fenómeno, só comparável à poesia macarrónica, aquela que mestiça do ponto de vista linguístico, inventando crioulos, costumamos designá-lo por escrita híbrida ou macarronés. É a linguagem das aves dos alquimistas, que no discurso científico tem regras particulares, adaptadas ao conteúdo da ciência. É a gaia ciência de Nietzsche, a cabala fonética, a língua diplomática, o discurso das gralhas.
Martins de Carvalho (1868) diz que Giraldes era um carbonário, pertenceu a uma choça ou alta venda coimbrã. Lamarque era o seu nome iniciático - A Marca, e não Lamarck, tal como Reesetán[3] resultará do transformismo de Res tantum. A marca mais frisante do trabalho do carbonário director de O Conimbricense, Martins de Carvalho, membro também da Sociedade Protectora dos Animais (entre os quais se contam gralhas e corvos), é a de considerar a história das sociedades secretas uma secção da história da tipografia. Na história das gralhas inclui-se por consequência um campo mais limitado, o das sociedades que, para serem secretas, precisam, entre outros requisitos, de poder falar parecendo estarem caladas.
Tudo isto se torna francamente mais simples se lembrarmos que nesta época, à semelhança de papas anteriores e de futuros membros da Igreja Romana, está Leão XIII ocupado a escrever contra os maçons, a que chama naturalistas, e contra os naturalistas, a que chama liberi muratori, em encíclicas várias, entre elas a Humanum genus, também intitulada Contra a seita dos maçons.
Ficar pelo sentido literal é uma violação da ética hermenêutica. Com isso selecciono só o que convém, pinto um perfil para se não saber que o modelo é estrábico do outro lado. Entre muitos sentidos, escolho o mais inexpressivo, ocultando o que podia ser uma explicação dos factos. Porquê esta modesta opção? Porque os leitores se dividem em duas categorias de intérpretes: os que acreditam que são gralhas (lapsus calami e outros) o que se vai ler, e os que ouvem crocitar toda a arca de Noé. Optei assim por dar inteira razão aos primeiros - a ciência está inocente, mas errare humanum est. E é tanta a razão que lhes dou que eu mesma encarnarei de vez em quando o papel de gralha.[4] Nos Carbonários, história da Chioglossa, e nos dois textos sobre o dodó (Guedes & Peiriço), apresentámos uma tese que explicava as anomalias detectadas: as espécies de discurso marcado (pelas gralhas e/ou por sinais de reconhecimento maçónico) são críticas: híbridos artificiais, quimeras, enxertias, exemplares anómalos que não correspondem a nenhuma população, mitos como o do unicórnio, etc.. Uma das marcas é a de se sugerir que a espécie, não sendo bovina nem caprina, por vezes nem sequer um mamífero, é chifruda - tem uma ou duas proeminências na fronte. Isso aconteceu com a Chioglossa lusitanica, uma salamandra, e com o dodó, uma ave.
Porém, a tese de facto importante é a patente no título - Carbonários. A ciência agiu como corpo militar, o que é natural, quando a maior parte dos exploradores e/ou naturalistas pertencia ao Exército ou à Marinha, quando os governantes eram cientistas, quando os preparatórios para o Exército e Marinha se faziam na Escola Politécnica. A Escola Politécnica era uma escola preparatória dos estudos médicos, farmacêuticos e militares.
No Boletim e Annaes do Conselho Ultramarino, revista publicada por essa entidade governamental, o Conselho Ultramarino[10], republicava-se a legislação relativa às colónias. Não se vendo necessidade de triplicar a edição, repetida nos boletins oficiais de cada província, resta concluir que o Boletim e Annaes serviam para denunciar que a subversão partia de dentro, aquartelada no seio do próprio Estado. E é interessante assim ver que a descrição de Hooker da Welwitschia mirabilis foi traduzida no Diário de Lisboa, nome que então tinha o Diário do Governo, e daí trasladada por Bernardino Gomes para as páginas dos Annaes (Hooker, 1863), bem como grande quantidade de texto do próprio Welwitsch, acerca da sua exploração de Angola. Crawford-Cabral & Mesquitela sintetizam o roteiro: "em 1859 Welwitsch explorou o litoral de Moçâmedes, desde a Baía dos Tigres até Cabo Negro, e o interior do mesmo distrito, ao longo do rio Maiombe até ao Bumbo, nas faldas da Chela, que irá subir em outubro desse mesmo ano, chegando assim à Huíla".
Tomar por menos correctos estes procedimentos científicos é desviar a conversa para outro lado e subestimar o adversário. O luciferino discípulo de Maquiavel, se interpelado, argumentaria, olhos redondos de candura, que tudo não passa de gralhas, por isso apressamo-nos a concordar.
[2] Salvadori comete este corvo ao falar de uma Estrelda thomensis Sousa (1888), coligida por Moller (de Coimbra) em S. Tomé, e que Salvadori acha extraordinário ser referida no Museu de Lisboa e não figurar nos catálogos de Coimbra. Levanta a suspeita de que seja a Estrilda astrild. O macarronés informa que a espécie tem qualquer problema, o que é natural, tratando-se de aves de estimação. Atentado diversíssimo ocorrerá com Alexander em Cabo Verde, onde a Estrilda se conhece com o nome de bico de lacre. Consiste em classificar a espécie como endémica, e só da ilha de Santiago (Estrilda iagoensis), apesar de o governador lhe ter dito que esses passarinhos eram importados da costa ocidental africana. Estes exemplos não se confundem com outro hábito, também híbrido do ponto de vista linguístico, o de o autor escrever dado artigo na sua língua materna, mas fazer as descrições de espécies novas em latim ou em francês, línguas de maior difusão na comunidade científica internacional.
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