AS ÁRVORES E OS FRUTOS

Homenagens funebres

Celebraram-se na igreja de Mattosinhos os responsos de sepultura

por alma do mallogrado naturalista Francisco Newton.

A assistencia era bastante numerosa. Recebeu a chave

do feretro o snr. dr. Augusto Nobre. 

Seguraram ás azas do ataúde os snrs. dr. Augusto Nobre, 

Carlos Chambers,  Jorge Chambers, 

Antonio Alberto da Cerveira Pinto, Fernando Allen Costa e Luiz Guerreiro Lima.

Terminada a cerimonia religiosa, foi o cadaver

transportado para o cemiterio.

Dirigiu o funeral o armador snr. Cardoso, de Leça da Palmeira.

Commercio do Porto, 11 de Dezembro de 1909   

 

Duarte Silva atribui três irmãs a Francisco: D. Isaura; e D. Laura e D. Elvira de Aguilar O’Kelly Newton. A biografia de Duarte Silva é muito peculiar: ele começa-a cheio de entusiasmo, mas pelo meio estaca, muda de conversa, chama Gossweiller a Gossweiler, conta anedotas, deixa a obra inacabada, como Platão e Francis Bacon inacabadas[1] deixaram as suas Atlântidas, e remata com uma cena de teatro: no paquete em que regressava a Portugal, Newton presta pública homenagem à actriz Lucinda Simões, que recolhe calorosos aplausos, enquanto Chaby Pinheiro dorme no convés, porque a porta estreita do camarote não lhe permitia a passagem.

Joaquim Sampaio atribui-lhe um irmão mais velho e quatro irmãs, passando assim Francisco a ter mais família do que julgávamos, e informa[2] que morreu a 4 de Dezembro de 1909, no que antecipa em cinco dias o óbito registado pelo genealogista Alexandre Vasconcellos. 

Todos estes dados, sem exceptuar um, merecem credibilidade, mas Exell não acredita neles. Exell acredita (I believe, escreve ele) que Francisco morreu uns quinze anos depois e noutro continente. Não diríamos que é um erro crasso, como o de dar Francisco Newton como colector botânico em Moçambique, quando quem coligiu em Moçambique foram os nativos Juliassi & Newton, sim uma crença na ressurreição, e um espírito romântico, susceptível de transformar Francisco em Nosnibor[3] Crusoé. A menos que gastasse todo o vencimento com Miss Ale, Newton ganhava pouco, mas não vivia na miséria. E toda a vida foi Naturalista do Governo, não apenas for a time:

  F. Newton deserves further mention. He was a Portuguese belonging to one of the numerous Portuguese families of British origin, his father being I. Newton, who worked on Portuguese cryptogams. For a time he held some kind of official position as Government Naturalist and collected in Angola as well as in S. Tomé and Principe. He lived for a time in a tent on some waste ground in the town of S. Tomé in such poverty that he could scarcely obtain paper to write tickets for his specimens. I believe that he died in S. Tomé about 1925. A number of new records are due to him; Athyrium Newtonii is named after him (Exell, 1944, p.14). 

 Doze anos depois, Exell vem corrigir o que diz ter sido erro seu e não dos colaboradores, esquecendo-se de indicar a fonte da informação errónea: He died at Mattozinhos in Portugal, not “in S. Tomé about 1925” as stated. He collected in Annobon in January 1893. Exell (1956) não vira antes e continua a não ver agora a colecção de plantas do herbário do Jardim Botânico de Lisboa coligidas por Newton. Vê apenas os exemplares que Sobrinho lhe envia e ele considera perfeitamente classificados. Ninguém disse nada ainda da Ficus repens que lá se conserva, com a frase espantada: Nunca tinha visto nada assim. A importância desta colecção, independentemente do valor dos fenómenos genéticos que contenha, vem de ser a primeira que se fez em Ano Bom. 

Felizes ficaríamos se tivesse acabado a errática newtoniana, porém dá-se o caso de um amigo íntimo de Isaac Newton, o senhor Charles Sellers, especialista em vinhos do Porto, nos exprimir, tal como Exell, a sua crença, agora em que os Newton não são de origem inglesa nem irlandesa, tão-pouco são portugueses, sim cidadãos americanos: 

  A gentleman for many years connected with the firm in Oporto is my old and very highly esteemed friend Isaac Newton, the most assiduous collector of Lusitanian algae. I believe that Isaac Newton and  his brother Arthur are the only two American citizens residing in Oporto. Isaac Newton’s eldest son is one of Portugal’s greatest African travellers and contributors to the National Museum at Lisbon.

 Afinal Francisco era o mais velho dos irmãos e não o segundo. Afinal Francisco tinha um tio Artur. Quem sabe se em casa do tio Artur não reuniam doze cavaleiros em torno de uma democrática távola redonda.[4]

Com alguns dados fornecidos por tão fiáveis fontes, herborizemos: 
 

 

Gabriel Newton

 

Elisabeth Newton

 

Waldron Kelly

 

Ana Ludovina de Aguilar Kelly

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Isaac Newton

 

 

 

Maria Ludovina Newton

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Isaac Newton

 

Ana Emília Fernandes da Silva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(?)

 

Francisco Xavier O’Kelly d’ Aguillar Azeredo Newton

 

Laura Aguilar O’Kelly Newton

 

  

Isaura

 

Elvira Aguilar O’Kelly Newton

 

 

(?)

 

 

 
 O pai de quem afinal devia chamar-se António João Pedro Francisco Xavier Fernandes da Silva et alii, além de reputado naturalista-colector, conhecido em especial por ter revelado aos botânicos europeus as plantas criptogâmicas do norte de Portugal, era guarda-livros numa casa comercial inglesa, votada ao comércio do vinho do Porto, a Robertson Bros. & Cº, sediada em Vila Nova de Gaia. Isaac mantinha correspondência com os botânicos europeus, de tal modo que Adolfo Frederico Moller, inspector do Jardim Botânico de Coimbra, quando precisava que os especialistas estrangeiros lhe identificassem exemplares do herbário, era por vezes a ele que recorria: 

 Diga ao Sr. Nylander que deve mudar o nome Lecidia Oportensis para Lecidia Portensis porque em rigor não há nenhuma cidade chamada Oporto,

  escreve ele a Isaac, verificando nós com isto que os botânicos, mesmo netos de alemães ilustres, se preocupam com a hortografia.

A mais antiga carta do espólio de Isaac, datada de 1860, foi-lhe escrita, diz Joaquim Sampaio, pelo célebre Harvey. Em suma, Isaac Newton, simples colector de plantas e modesto caixeiro, mantinha relações com os mais creditados botânicos do mundo. 

Pela linha Aguillar e Azeredo, os Newton pertencem à família do Visconde de Samodães, diz Duarte Silva. O Visconde de Samodães, reputado liberal, foi a principal figura da Exposição Colonial e Insular, realizada no Palácio de Cristal portuense, a cuja direcção presidia.  

 GRALHAS

 

Nas cartas de Francisco, nota-se que o Museu de Lisboa estimulou tanto a sua colaboração no evento que o nosso Eneias lhe enviou um telegrama como ultimato e depois ou antes uma carta com triângulo negro. Newton, membro do secretariado por S.Tomé, deve ter remetido as mais raras espécies que conhecia. Passou dois anos inteirinhos (1893-1894) a preparar a encomenda.

 

Isaac integrava a comissão executiva da Exposição Insular e Colonial, pertencera à direcção do Palácio de Cristal, o que tem implicações políticas. A Exposição inaugurou-se com a presença da real família, apesar do 31 de Janeiro de 1891, e com os republicanos do Porto ao assalto. Era a primeira vez, desde a revolução, que o Rei visitava o Porto, e só o fez por o Visconde de Samodães lhe garantir que podia ir descansado, o que demonstra o poder deste afastado parente de Francisco.

 Pela linha O’Kelly, devem provir de uma família irlandesa que veio para Portugal cerca de 1733, na qual se contam Hugh, Diogo, Thomas e outros O’Kelly, entre militares, mestres de dança no Paço, frades dominicanos, industriais do vidro. Estabeleceram contactos estreitos com membros do clero português, que por várias vezes os interrogaram, curiosos de saber qual o assunto das palestras que regularmente mantinham com outros confrades, numa loja da baixa lisboeta. Eles fundaram uma das duas primeiras associações maçónicas de Lisboa, a qual logo a seguir foi compulsivamente encerrada, por pressão do Santo Ofício. Um dos O’Kelly, salvo erro Hugh, era grão-mestre da Loja. Vários sofreram graves perseguições.[5]

Sampaio dá-nos notícias em que vamos reflectir um pouco. Isaac Newton nasceu a 7 de Junho de 1840, partiu de Portugal com dois anos para ser educado em Inglaterra e quando voltou teve como professor de língua pátria o Dr. Eduardo Augusto Allen, que se dedicava às Ciências Naturais. Que terá Isaac estudado em Inglaterra para começar a trabalhar como caixeiro e acabar em guarda-livros? Dos estudos de Francisco nada sabemos. Ninguém lhe nega  título de naturalista, mas isso não corresponde a um grau académico. No século XIX, e é o Papa a afirmá-lo, naturalista é o maçon.[6]

Ponhamos como hipótese que em 1857 Isaac andasse a apanhar morcegos em Timor, tanto mais que aos treze anos já coleccionava algas, e corre a notícia, não confirmada pelas filhas, de que terá pouco depois visitado o Rio de Janeiro. Já não deve ter coligido os lepidópteros, pois a sua vida fica - esperemos - controlada pelo biógrafo a partir do casamento, em 1861, com Ana Emília.

Isaac morreu a 9 de Abril de 1906. Entre as flores que cobriam o féretro via-se um bouquet oferecido por Augusto Nobre. Foi sepultado no jazigo da família Costa Cabral, no cemitério de Agramonte, diz Joaquim Sampaio.

Porquê no jazigo da família do Marquês de Tomar? António Bernardo Costa Cabral está sepultado no cemitério dos Prazeres, em Lisboa, mas nada obsta a que a família tivesse vários jazigos.

Em Abril de 1859, depois de todas as vicissitudes da sua carreira política, Costa Cabral foi condenado a ser ministro plenipotenciário no Brasil, para resolver uns problemas relacionados com o vinho do Porto. Era então para junto dele que Isaac Newton se preparava para partir, e só não partiu porque a Ana Emília se interpôs entre ele e esse destino. Mas a título de quê, e não seria por causa da legislação sobre os vinhos do Porto, conhecia o modesto caixeiro uma pessoa da estatura quase pombalina do Marquês de Tomar? Conhecia-o através do Visconde de Samodães, o que não explica o porquê de ter sido sepultado naquele jazigo, a menos que pertencesse à família. Quem era a mãe de Francisco Newton, Ana Emília Fernandes da Silva? 

O nome Silva - vulgaríssimo entre cristãos-novos, especialmente no Brasil - pertence à família dos Costa Cabral, figuras frisantes na maçonaria portuguesa. António Bernardo da Costa Cabral, Fénelon de seu nome iniciático, foi Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano duas vezes e dessas duas vezes desempenhou também o cargo de Soberano Grande Comendador do Supremo Conselho do Grau 33.   

 GRALHAS

 

Bocage viveu quase um século apesar de tuberculoso. Conta Baltasar Osório (1909) que em estudante, em Coimbra, se alistou no Batalhão Académico para combater Costa Cabral, nas guerras da Patuleia. Tempos depois, já formado, indo visitar os pais, ao Funchal, a família foi publicamente injuriada, por abrigar em casa um patuleia. Os patuleias, esquerda radical, reclamavam um rei rodeado de instituições republicanas. Toda a sua violência se dirigia contra os Cabrais, pois o Marquês de Tomar, que fizera grandiosa obra, muito progressista, depois inverteu o sentido da marcha política, passando da esquerda à direita, com instauração de ditadura. À família chamavam até a quadrilha dos Costa Cabrais[7]. O termo patuleia tinha conotação muito pejorativa, pata ao léu diz-se que é a sua origem. 

Ora, em Coimbra, na noite anterior à saída do Batalhão Académico, Bocage sofreu uma hemoptise, o que o não impediu de ir à luta, tal era a sua ira contra os Cabrais. Entretanto, o Duque de Saldanha (Grande Plenipotenciário do Carbonarismo), aliado de Costa Cabral na Patuleia, combateu-o mais tarde, em seguida deu-lhe a mão, depois enviou-o em missão diplomática para o Vaticano, enquanto assumia ele o poder e o cabralismo. Quando Bocage, regressado do Funchal, queria entrar para o corpo docente da Escola Politécnica, Saldanha atravessou-se-lhe no caminho, negando-lhe a entrada, porque Bocage era um patuleia, mas também Saldanha, o homem das 51 caras, ora estivera do lado de Cabral ora contra, segundo as correntes de ar.

Pelos vistos, ao velho Bocage a quem, diz Balthasar Ozorio, a Rainha tratava familiarmente por tu[8], a esse Bocage regenerador, conservador e monárquico, os correligionários nunca perdoaram que tivesse combatido Costa Cabral, mesmo sendo ele nesses tempos um juvenil em capa e batina. 

 

Para tornarmos a Isaac e a Francisco, a maçonaria dos O’Kelly, do Visconde de Samodães[9] e dos Cabrais é a família em que se enxertou o ramo dos Newton. 

E terão os Newton portugueses algum laço de familiaridade com os ingleses, remontando estes ao judeu Isaac Newton, maçon, alquimista e físico?   


[1]  A utopia destes homens era a república, regime considerado perfeito, susceptível de conquistar a felicidade para todos os homens. 

[2] Da parte de D. Laura.

[3] Uma das personagens de Erewhon, utopia de Samuel Butler, tem este nome, anagrama de Robinson.

[4] Os Superiores Desconhecidos, Mestres Invisíveis, mais conhecidos por Fraternidade Rosa-Cruz, ambicionavam passar incógnitos por este mundo. Mudavam de nome periodicamente, saiam para o estrangeiro com pseudónimo ou nome seu mas desconhecido do público, caso do Duque de Lafões, primeiro presidente da Academia Real das Ciências, nobre viajante que percorreu a Europa com o nome de Miranda. Ele era o 7º Conde de Miranda do Corvo.

[5] Aconteceu isto à data da publicação da Ennaea/Ennoea, de Anselmo Caetano, considerada só uma obra e de alquimia, a mais significativa de origem portuguesa. Nela encontramos um longo e extraordinário capítulo dedicado às gralhas. Não é uma simples errata, sim um impressionante suplemento do suplemento, que vem antes e não depois do suplemento sobre matéria errática. Na realidade são dois livros, publicados em dois anos, o segundo de alquimia, o primeiro, não. O segundo começa por situar as duas personagens sobre a ponte do Soure, o que logo o transfere para o mundo do construtor de pontes (pontifex), isto é, da maçonaria. O projecto principal do primeiro é o de fundar em Lisboa uma Nova Roma, portanto uma Nova Igreja, ou Igreja Invisível, outro é o Quinto Império, ou Império do Espírito Santo. Estas duas propostas são rosacrucianas. Os alquimistas são mestres da ocultação. Todo o seu ensino era secreto, ou iam parar à fogueira. Esta arte da duplicidade na comunicação foi herdada pelos maçons, às vezes também chamados naturalistas.

[6] O naturalismo é o corpo doutrinário difundido pela maçonaria, cujos princípios rejeitam o sobrenatural e a religião revelada, ao afirmarem que tudo o que existe é natural e explicável pela razão humana.

[7] Os Cabrais foram bons, por compararção com os piores: “A Dictadura ou dentadura, com que o actual governo nos beneficiou, é o escandalo mais atrevido, a patifaria mais velhaca de que ha memoria! Nunca os Cabraes, esses famigerados politicos a quem o povo enxotou das cadeiras ministeriaes, se atreveram a praticar escandalo tão grande!” (O Correio do Porto, 9 de Agosto de 1886).

[8] Lemos uma carta de Carlos Roma du Bocage, a quem Balthazar Ozorio solicitara correcção das provas da sua biografia do pai, dizendo que a rainha Maria Pia nunca tratara ninguém por tu (carta de Villa Roma, Cintra, 19 d’outubro de 1915, AhMB, CN/B-78). A frase, que não foi retirada, diz respeito aos répteis: Ó Bocage, porque é que tu gostas tanto de uns bichos tão feios? Se a fórmula de tratamento não foi emendada, entendemos que a intenção é declarar familiaridade de J.V.B. du Bocage com a monarquia. Havia uma grande rivalidade entre maçons monárquicos e republicanos, e também entre cabralistas e saldanhistas. Outra correcção, agora de nomenclatura: Osório escreve Barbosa. Carlos Roma argumenta que o pai sempre assinara Barboza. Ozorio e Ferreira assinavam indiferentemente Osorio e Ozorio, Bettencourt e Bethencourt Ferreira

[9] O Conde de Samodães abandonou a maçonaria, mas manteve com ela ligações, ao menos como tradutor e prefaciador de obras sobre a Ordem.