RUY VENTURA
Em minha casa, o período natalício inaugura-se com uma ida ao campo, onde a família apanha musgos e ramos de variada vegetação para com eles montar e ornamentar o presépio. Se ainda é fácil encontrar a indispensável gilbardeira, com as suas bagas vermelhas nascidas de folhas duras e espinhosas, vai sendo cada vez mais difícil encher o balde com o tapete que há-de fingir um chão verde e fresco. Andamos todos a pagar os desmandos da ignorância e da ambição desmedida e a Natureza vai dando sinais muito preocupantes… Neste ano, quando chegou a altura de colocar a imagem do Menino no lugar que lhe pertence, houve uma saudável disputa entre as crianças. Quem teria a honra de colocar “O mais importante” no seu lugar? Comoveu-me a solução encontrada pelos miúdos: cada um pegou em seu braço e assim desceu ao centro a imagem mais pequena, mostrando que o ínfimo pode bem ser expressão do maior, daquele que mais importa.
Terminada a “obra de arte” efémera, divulguei pelos amigos e conhecidos o resultado, não resistindo ao exibicionismo ingénuo de que todos vamos sendo mais ou menos vítimas incautas. Horas depois, ao abrir a minha caixa de correio, estavam lá depositadas as palavras de um (verdadeiro) amigo. Sem vocativo nem despedida, percebi que tinham sido escritas após a observação das fotografias do nosso presépio. Não seria curial trazê-las para o domínio público, mas interessa-me registar que elas me recordaram, picando-me, como se fossem um pampilho dos campinos ribatejanos, o que mais importa no Natal: o ínfimo que alcança a suprema importância.
Época de alegrias, de felicidade – mas também de euforias fabricadas, manipuladas pelo consumo -, o Natal leva-nos, frequentemente, ao esquecimento daqueles que assim não sentem, travando diariamente uma terrível luta com a angústia, com o vazio ou com o negrume, mal conseguindo esboçar um sorriso perante as agruras da doença, do desemprego ou de uma dignidade perdida, tentando arranjar uma réstia de ânimo para se levantarem da cama sabendo-se alvo de injúrias e de incompreensões, querendo elevar o coração apesar de se verem sem tecto, sem alimentos dignos, sem uma companhia ao lado ou à distância, sem os seus entes queridos. Mesmo quando os lembramos nesta época de preparação para a festa do nascimento de Jesus Cristo, tantas vezes os olhamos como grãos de pó que é importante sacudir da lembrança, não vá ela ficar toldada (menos “alegre”) pelas suas nuvens incómodas. E, no entanto, foi sobretudo para estes nossos companheiros de existência que a encarnação do Divino Infante aconteceu e continua a acontecer, enquanto recordação rediviva e actuante. Bem sei que esse acontecimento milenar pouco ou nada interessa a uma sociedade onde o dinheiro é deus e rei, mas a verdade não tem outro conteúdo nem a festividade outro sentido, mesmo que o alheamento das luzes comerciais e financeiras nos tentem virar o olhar para lugares distintos e sentimentos menos nobres. Esquecer o sentido do Natal é esquecer tudo. Não há outro caminho. Ou somos incomodados por ele ou não vale a pena comemorá-lo.
Nestes dias que nos conduzem à tão desejada jornada, teríamos certamente vontade de ser um pouco subversivos e, de uma vez por todas, substituirmos a correria pelas lojas por uma correria por muitos daqueles que precisam da nossa presença ou, pelo menos, da nossa palavra. De boas intenções está cheio o mundo inferior, pensarão… Muitos temos compromissos familiares ou sociais e facilmente, nestas semanas e naquela noite venturosa, esquecemos os que estão sós, sem ânimo ou com a sua dignidade erodida. Não é fácil irmos ter com eles ou trazê-los à nossa presença. Não é contudo difícil, no momento certo, marcarmos o nosso companheirismo com uma palavra oportuna ou, até, com um gesto ou com uma mensagem que vá além daquelas que mandamos por atacado a todos os nossos “amigos” que, tantas vezes, nem conhecidos são na verdadeira acepção do vocábulo. Se calhar será esse o momento mais alegre ou mais feliz da noite. O momento em que o Natal nos incomodou. Creio que sim. Afinal o Paráclito é aquele que nos espicaça e consola… (Espero, sinceramente, não ser como frei Tomás…)
RUY VENTURA