BENTO DOMINGUES, O.P.
É o ser humano que, ao desumanizar-se, corrompe a natureza.
As dimensões da questão ética são globais.
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Se, como foi noticiado, o cardeal Burke tiver dito, perante as ameaças do covid-19, «que devemos poder orar nas nossa igrejas e capelas, receber os sacramentos e participar em actos de oração pública», espero que alguém o convença a despir-se das pompas cardinalícias, a envolver-se em saco e cinza para pedir perdão, através dos meios de comunicação social, a crentes e não crentes por essa pouca vergonha[i].
Passemos ao título desta crónica. É a proposta mais séria para não alimentar ilusões para depois do presente pesadelo colectivo. Antes, porém, importa lembrar algumas evidências esquecidas para nos situarmos, com lucidez, neste tempo de agendas suspensas ou alteradas.
O ser humano surgiu na terra como um dos menos equipados e mais desarmados do reino animal. Os seus instintos são rudimentares e parcas as suas defesas.
Essa situação escondia um tesouro único no seu corpo revelado pela palavra que o singulariza. É o tesouro da inteligência emocional, da razão discursiva, do afecto desinteressado, da liberdade criadora e destruidora, da imaginação, a louca da casa para o bem e para o mal.
São recursos inesgotáveis. A partir de elementos preexistentes, possibilitam o gosto de estabelecer conexões mentais surpreendentes, de inventar, de inovar, de criar e recriar. Como escreveu Einstein, a criatividade é a inteligência a divertir-se[ii].
Desde a revolução paleolítica até à chamada quarta revolução industrial, muito se andou na marcha multimilenária da humanidade. Continuamos a caminho, sem que saibamos bem para onde. Este percurso está semeado de realizações admiráveis e de criminosas destruições.
Não podemos prever o futuro. Confia-se demasiado no poder da tecnologia, mas ela não é determinista. Pode levar-nos ao melhor e ao pior. Como escreve Y. N. Harari, «a ascensão da Inteligência Artificial e da biotecnologia irá certamente mudar o mundo, o que não significa que haja apenas um único desfecho possível»[iii].
Somos natura e multifacetada cultura científica, técnica, estética, metafísica e ética. A razão instrumental responde ilimitadamente, com eficácia surpreendente, a perguntas limitadas que ocultam as incómodas.
Existem perguntas que nunca têm resposta adequada, mas que ajudam a manter o espírito em alerta, perante o irredutível mistério de que somos feitos. Brotam talvez das fontes da grande música, da literatura, da filosofia, da religião, da mística, da criatividade inesperada de novas linguagens. Manifestam-se em obras que nos emocionam, provocam e alimentam uma abertura sem fim: o sentimento de infinito, o pressentimento de Deus.
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Depois, um miserável vírus semeia o pânico global e regressa a estafada questão do mal, da responsabilidade de Deus, dos seus castigos ou da sua não existência[iv]. Prefiro, no seu aparento exagero, o que Dostoiewski escreveu emOs irmãos Karamazov: «todos somos culpados de tudo, culpados por todos, diante de todos e eu mais do que os outros».
Talvez seja útil escutar a voz de S. Tomás de Aquino, voz de um outro tempo, em que o mundo voltava a estar em efervescência. Tinha uma ideia muito optimista quanto ao progresso do conhecimento, mas reticente quanto ao progresso humano no seu conjunto. Dizia que na natureza, na maior parte dos casos, tudo corre bem. Com os seres humanos, na maior parte dos casos, acontece precisamente o contrário. Porquê? Porque estes não orientam a sua vida segundo as exigências da humanidade, a humanidade de todos, mas segundo a desagregação dos seus apetites[v].
Perante tantas catástrofes na natureza, isto pode parecer ingenuidade. Diz-nos, no entanto, que a harmonia da natureza do tempo de S. Tomás foi gravemente afectada. A questão mais actual é, precisamente, a desagregação dos apetites nas intervenções sobre a natureza que torna a nossa Casa Comum inabitável. Em vez de cuidar o nosso paraíso terrestre, destruímo-lo pela vontade de dominação e exploração económica, política e religiosa. É o ser humano que, ao desumanizar-se, corrompe a natureza. As dimensões da questão ética são globais.
Nietzsche suprime a questão ética, ao suprimir o ser humano: «o homem é algo que deve ser superado… que é o macaco para o homem? Uma coisa ridícula ou uma vergonha dolorosa. É isso o que deve ser o homem para o super-homem: uma coisa ridícula e uma vergonha dolorosa».
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A Quaresma cristã não é nietzscheana. É mais modesta e mais radical. Procura vencer as tentações que acompanham a história da humanidade: o espírito diabólico de dominação que sonhou e criou impérios. Nenhum se aguentou. As novas tentativas estão possessas do mesmo espírito. Será possível enfrentá-lo?
No século XX e nos começos do século XXI, depois das catástrofes, os poderosos têm-se reunido muitas vezes e ainda não mostraram grande vontade de mudar de rumo. Reafirmam, sobretudo, as metamorfoses dos seus velhos apetites e desígnios. A espantosa construção da União Europeia está ameaçada porque não é o espírito de cooperação que a orienta, mas um regateio de perdas e de vantagens. Os cristãos tiveram um grande papel no sonho europeu. E agora?
O Evangelho de S. João conta uma história que intrigou uma destacada figura do Sinédrio da antiga Jerusalém, Nicodemos, e que não deixa margens a subterfúgios[vi]. Foi, de noite, ter com Jesus e começou com muito boa retórica religiosa: Rabi, sabemos que vieste da parte de Deus como Mestre, pois ninguém pode realizar os sinais que tu realizas se Deus não estiver com ele. Jesus não cede a lisonjas: só quem nascer do alto pode ver o Reino de Deus. Nicodemos quer fugir a essa proposta radical: como pode um homem velho nascer de novo? Poderá ele entrar no ventre da sua mãe segunda vez e nascer?
Jesus convida-o a não mudar de conversa: aquele que nasce da carne é carne e aquele que nasce do espírito é espírito. Não te admires por eu ter dito que é preciso nascer do alto. O sopro sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes nem de onde vem nem para onde vai. Assim é aquele que nasceu do espírito.
Nicodemos não contradiz o Nazareno, mas procura não se enfrentar com a proposta de ter de nascer de novo, fazendo perguntas sobre o que já sabe. Jesus não aceita fugas ao confronto essencial.
Nicodemos é o nosso retrato.
[i] Cf. 7Margens: 23. 03.2020. Bolsonaro e Tramp são bons acólitos do cardeal Burke.
[ii] Cf. Alexandre Castro Caldas, Criatividade: a função cerebral improvável, UCP, 2017
[iii] Yuval Noah Harari, Homo Deus. História Breve do Amanhã, Elsinore, 2017, 442-443
[iv] Cf. Adolphe Gesché, O Mal, Rei dos Livros, 1996
[v] Suma Teológica, I, q. 91, a. 3 ad 2; q. 49, a. 3 ad 5
[vi] Jo 3
in Público, 29.03.2020
https://www.publico.pt/2020/03/29/sociedade/opiniao/nascer-novo-1909710