Não te devo palavras

PEDRO PROENÇA


Não te devo palavras, mas devo-te
uma bela refeição. Nem sei quando é
o teu aniversário, mas havemos de festejar
estrambóticas tentativas sob qualquer pretexto.
Tenho aqui no bolso poemas pardos & belos
para te atirar à fuça. Sou um ironista
em segundo grau. Pratico a descarga erótica
como ironia de ironia, não porque a tenha
de descarregar, mas porque esta sensação, perversa,
de uma missão poética, avessa,
se confunde com o incontido vício
do grafologista, o que entra com a mão
nas zonas recônditas do palavreado.
É sempre um não, um cão, um nem e um mas
ou o marulho incerto da criação
arrastado por traineiras cheia de sardinhas
atuns, algas e moscas.
Hoje foi grande dia na pescaria de poemas,
e ontem fui fiel às minhas iras, mantive-me irritadiço
esperando-te sentado nas bermas de um passeio
com carros a passar na bisga, e uns tipos
que vinham das nights a bebericar garrafas do luso.
Cenas de drogas, topas, allright!

Aflitas vozes de dezembro, metidas numa Antologia
que tenta passar por boa. Eu colho
da tua voz as vozes que falsificam as escolhas.
Saíste-me um bom pastel envolvido
num papel engordurado, e eu um dadaísta manco
fora de época, a apascentar tons bíblicos, cenas
de lirismo e pastilhas de pranto. É fraco
este tom tão mal medido, vespertino, fosco,
com a tinta ainda fresca na boca.
Exibo aquesta fraquesa, fidelidade postiça
a um sentido que me sabe ter não tendo.
Ainda não arranjei tempo para guardar tais vozes,
na saca do pão ou na caixa dos biscoitos.

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Os filhos são alguns de entre os utensílios
com seus suspensórios, a sua irrequietude, tabletes
e alguma má-criação. Pedes-me o vagar
mas só te dou beijos junto ao literal
neste meio-dia de quase inverno, de chocalheiros
ossos a rondar tutanos de tempo.
E aqui estamos, tu e eu, mar e amor, intervalo
entre útero e vala, entre ignorância e temor.

O corvo debica o sol, o barco sumido surge.
Há pègadas costumeiras de gaivotas, iras idas,
marinas com turistas, ar, bebidas.
Bate no sino o coração da minha mãe
e é o tempo jamais antigo (esse agora de corda)
que entre rebanhos de sibilantes vagarosas
nos acorda para um verso referido em preleção —
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

 


Pedro Proença nasceu em Lubango, Angola, em 1962. Já em Lisboa, após frequência dos cursos livres da SNBA (1980/82), onde estuda com João Vieira.

Considerado um dos artistas mais notáveis da arte contemporânea portuguesa, Pedro Proença começou desde muito cedo a desenhar, dedicando-se, com apenas 13 anos, à banda desenhada.

Candidatou-se ao curso de Arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (ESBAL), aconselhado pela família, mas falhou o ingresso. Inscreveu-se então nos cursos livres da Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA) manifestando já um interesse pelo acaso e pela herança dadaísta. Na instituição, para além de se sentir atraído ao mesmo tempo pelas questões conceptuais e pela pintura, conhece um professor que o marcará muito: o pintor João Vieira. De regresso à ESBAL, já no curso de Pintura, começou a intervir no espaço da universidade.

Começa a expor em exposições colectivas a partir de 1981. Em 1982, com Pedro Portugal, Manuel João Vieira, Fernando Brito, Ivo e Xana, funda o Movimento Homeostético, mas só em 1983 fazem a primeira exposição de grupo acompanhada de múltiplos eventos. Nesse mesmo ano, ganhou o Prémio Nadir Afonso (seria ainda Menção Honrosa no Festival Cagnes-sur-Mer e obteria depois vários outros prémios: Prémio Aquisição V Trienal da Índia em 1985, o Prémio União Latina em 1992, o Prémio Eixo-Atlântico em 1996 e o 1º Prémio do Salon de Otoño de Plasencia, 1997).

Expondo individualmente desde 1984, a sua carreira tem mantido uma constante criativa que vai da pintura e do desenho à poesia, narrativa, prosa ensaística e até ao registo do manifesto (assinou vários dos manifestos do Movimento Homeostético).

Foto em: http://www.kalandraka.com/pt/autores/detalle/ficha/proenca/
Currículo em: http://galeriapaleta.com/2016/04/02/pedro-proenca/