António Moura dos Santos (texto) entrevista
ISABEL PONCE DE LEÃO
in Observador, 2024.10.22
Isabel Ponce de Leão é uma das responsáveis pela “História Global da Literatura Portuguesa”. Em entrevista, fala de uma obra “maior do que a nossa dimensão” e do muito que se vende e não se lê.
Das cantigas da lírica galego-portuguesa à consagração no palco mundial das letras com a nobelização de Saramago, dos poetas do renascimento onde Camões se firmou como estrela polar à chegada do modernismo ao nosso país, abraçada por Pessoa e restante geração d’Orpheu — pela sua antiguidade e pelo papel enquanto entreposto cultural, Portugal tem um longo e rico legado literário, mesmo que por vezes esquecido ou mal amado. Este livro, argumenta uma das suas responsáveis, não só o explora como explica de que forma influenciou e deixou-se influenciar pelo mundo.
Parte do ciclo criado pela chancela Temas e Debates — inaugurado com História Global de Portugal, em 2020, ao que se seguiu História Global da Alimentação Portuguesa, em 2023 — este título, acabado de sair, deve o seu nome justamente à corrente historiográfica que batiza todas estas obras: História Global, que não é mais do que uma forma de fazer historiografia não limitada por constrangimentos geográficos ou sequer temporais. Ou seja, que procura incluir todo o tipo de contributos, venham de onde vierem ou de quando vierem, mesmo que seja centrada num tema em particular.
Como é que isto se aplica a uma História Global da Literatura Portuguesa? A ideia é mais simples do que parece. “Partindo da história da literatura, não nos vamos confinar à literatura portuguesa. Vamos pô-la em interação com outras literaturas. Mais: não vamos reduzir-nos a compartimentos estanques dentro da literatura, mas sim fazer interagir”, conta Isabel Ponce de Leão. Uma das quatro pessoas responsáveis pela direção científica deste projeto — as outras três são Annabela Rita, José Eduardo Franco e Miguel Real — a professora catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Fernando Pessoa explicou ao Observador os objetivos deste livro que contou com mais de 100 contribuições de académicos espalhados pelo globo.
Para que fique claro, Isabel Ponce de Leão volta a providenciar outra definição: “É global porque interage com todas as outras literaturas e porque não fica adstrita a um espaço, a um tempo, digamos assim; antes estabelece conexões com diferentes datas da história”. Talvez um exemplo que ajude a perceber de forma cristalina o que motiva este projeto é o verbete que a própria professora assina, “Sob os desígnios da Caaba”, sobre a influência do mundo árabe na literatura portuguesa. Ora, este assume o seu maior peso dado o legado cultural da presença moura na Península Ibérica e na forma como a sua poesia alimentou as primeiras cantigas de amigo portuguesas, mas não se limita a isso. Mesmo partindo desse período da Idade Média, o capítulo descreve que tipo de relação a literatura árabe foi tendo não só com Portugal, mas com o Ocidente, ao longo da história.
“Eu fui, de facto, lá para trás, para o século XI e vim até hoje, acabo com um autor do século XXI que tem imensas coisas escritas com influências árabes. Mais: estou sempre a ir lá fora. Portanto, a matriz da maior parte destes verbetes — e eu digo a maior parte porque há uns que têm idiossincrasias muito próprias — tenta fazer esta volta. Eu estou na Idade Média, mas falo de escritores do século XXI. Esta é a visão da história global, é eu pensar um tema que de facto se vai localizar lá para trás, porque os árabes andaram aqui na Península Ibérica, e que depois desenvolve uma realidade, sem fronteiras nem preconceitos”, expõe a professora.
Percorrendo as mais de 700 páginas, é possível determo-nos perante muito mais exemplos, seja a forma como a peste negra influenciou a literatura ou como a ideia do V Império teve ressonâncias globais, passando pela relação entre esta área e a escrita publicitária ou como o romance policial se impôs como género. O livro está dividido em sete “idades”, desde a fundação do país ao pós-25 de Abril, mas Isabel Ponce de Leão adverte que esta organização foi apenas concebida “por uma questão de sistematização, de facilitar a consulta”. Novo exemplo de como passado e presente dialogam nas mesmas páginas acontece no último verbete do livro, que aborda a Ecocrítica como um tema literário ainda incipiente, mas cada vez mais presente em Portugal. “Não é difícil, quando se fala em Ecocrítica, pensar-se em Camões. A Ecocrítica é uma disciplina que começa a ser tratada no século XX e XXI, mas eu posso falar no século XVI a propósito disso”, defende.
A história de uma literatura “maior que a nossa dimensão”
“Isto não é uma história de autores, é uma história de temas”, aponta Isabel Ponce de Leão a dada altura no decurso da conversa. A que se deve tal afirmação? À provocação feita de se História Global da Literatura Portuguesa se assume como uma espécie de “yin” ao “yang” que será O Cânone, livro lançado em 2020 pela Tinta da China e arquitetado pelos professores António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen. Como o nome indica, tal obra propõe um cânone português a partir de uma seleção de autores.
“A nossa [História] não trai o cânone, mas alarga-o para outras perspetivas. Porque muitas vezes os canónicos são canónicos, não só pelo valor, como também por uma circunstância. Ora, nós temos escritores pouco conhecidos que têm imenso valor, temos de os ir resgatando e ir vendo as pontes que eles ergueram com literaturas estrangeiras. É isso que se tenta fazer aqui”, sublinha a professora.
A este tema soma-se um espicaçar extra quanto ao pessimismo herdado do Portugal de Oitocentos, lamentando uma pequenez cada vez maior a que Portugal tem vindo a ser reduzido — o que, naturalmente, abrangerá também a sua literatura. Para Isabel Ponce de Leão, “se essa noção está enraizada, o livro vai dar uma ideia completamente diferente, mormente das pontes que fizemos sistematicamente com outras literaturas, não só das influências que recebemos como também das influências que deixamos”. “Repare, basta eu falar-lhe em Camões e Pessoa — não é preciso falar em mais ninguém, mas há muito mais”, aponta.
“Pessoalmente, não tenho nenhum complexo de inferioridade em relação a Portugal e à literatura portuguesa. Bem pelo contrário, temos nomes que são conhecidos em todo o mundo. Agora, temos uma literatura à nossa dimensão, ou maior que a nossa dimensão, porque, se formos lá atrás, sabemos que no século XVI a diáspora nos pôs noutras paragens e nos fez conhecidos noutras paragens. Portanto, esta história da literatura global não tem um complexo de inferioridade”, continua.
[Já saiu o quarto episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts e no Spotify. E pode ouvir aqui o primeiro episódio, aqui o segundo e aqui o terceiro.]
Regista-se, no entanto, uma frase proferida um pouco antes quanto a “escritores pouco conhecidos que têm imenso valor”. Quais serão? Isabel Ponce de Leão não gosta de singularizar autores, até porque vive no mundo académico, onde “os escritores não são assim tão esquecidos”. No entanto, surgem-lhe à memória nomes como Ferreira de Castro, Agustina Bessa-Luís ou David Mourão Ferreira, “de que as pessoas falam, mas não leem”. “Esses são escritores canónicos que não estão na berra. Às vezes são questões de moda. E a verdade é que, neste momento, escreve-se tanto, produz-se e publica-se tanta coisa, que não são os escritores que vendem mais aqueles que vão constituir o cânone em termos de futuro. Porque essa é uma literatura mais imediatista e os escritores canónicos precisam de calma para serem apreendidos. Portanto, isso é tudo discutível”, aponta.
Pegando no exemplo de Agustina Bessa-Luís, a professora diz que é entendida como uma “escritora difícil”, mas que “pode ser acessível com trabalho”. No entanto, “as pessoas nem sempre estão para trabalhar, às vezes apenas querem distrair-se e a Agustina tem de ser lida com cuidado, como o Saramago também. É muito vendido, mas pouco lido”. Quanto a esse respeito, Isabel Ponce de Leão afirma que a atual “sociedade de consumo em que estamos inseridos chama muito, sobretudo a juventude, para o imediatismo e para leituras mais superficiais”.
Nacionalista sem isolamento, expansiva sem ser total
Isabel Ponce de Leão não promete que a História Global da Literatura Portuguesa vire todo o país em torno do seu espólio de escritores espalhados ao longo de quase 900 anos de história — mas acredita que a profusão de temas que acarreta possa dar pistas quanto ao que procurar.
Apesar de ser um livro de intuito, estrutura e até linguagem académicas, a professora diz que é de mais fácil leitura do que aparenta, sendo “acessível a outro género de público”. “Estes temas, por exemplo, para vocês jornalistas que querem investigar sobre um determinado tema, podem andar por aqui e andam por aqui as mais das vezes. Não quer dizer que nos dê a chave de tudo, mas dá pelo menos uma bibliografia final onde podem investigar. Dá, por exemplo, ideias. Portanto, esta história global, sendo temática, abre para um público menos especializado. E isso para nós é muito importante”, frisa.
A professora, no entanto, faz questão de deixar dois pontos assentes para dissipar dúvidas — que uma história global da literatura portuguesa é “nacionalista” e, ao mesmo tempo, se recusa a ser “totalizante”, sem que nenhuma destas duas características se assuma como contraditória.
Quanto ao primeiro ponto, Isabel Ponce de Leão frisa que uma história de pendor nacional pode ser global, não pode é ser fechada. “É a história global da — sublinhe-se — literatura portuguesa. Portanto, o nacionalismo existe. Agora, não é fechado nem estanque. Vai interagir com todas as outras literaturas, ou pretende-se pelo menos que assim seja. Queremos trazer o global para o local, dando assim abertura a um neologismo que é o glocal. Vamos buscar aquilo que está lá fora sem perder a nossa identidade. Portanto, não é rejeitar esse nacionalismo, é alargá-lo”, argumenta.
Ao mesmo tempo, “global” não significa “total” — ou seja, o que aqui se apresenta não é uma versão fechada da história. “A História Global da Literatura Portuguesa não tem, pois, um escopo totalizante, mas possibilitante”, lê-se na introdução, frase que a professora comenta. “Quando falo em história global, não estou a abarcar tudo”, defende. “E por isso mesmo nós estamos abertos a correções, a sugestões e a atualizações. Os temas não se esgotaram, não. Haverá muitos outros”, completa.
A partir daqui, afirma, haverá um longo caminho a percorrer. “É evidente que daqui a 50 anos há muito mais coisa para se dizer, não é? Vai-se acrescentar muito. Espero que esta obra tenha edições e que, mesmo quando já cá não estiver, elas sejam revistas corrigidas e aumentadas”, atira. O que falta, por agora, é “deixar o mundo avançar, sentir que a literatura está sempre em conexão com a sociedade, com as artes, com as outras literaturas, e portanto a mudança é sistemática e contínua. Nós, e os mais novos que vierem a seguir, temos de estar atentos a essas mudanças, ir sentindo o palpitar das literaturas mundiais e ir vendo as operações que de facto se vão registando e as respetivas alterações”.
“Nós parámos aqui, mas vida não para, o mundo não para, as publicações não param, o ser humano também não para de evoluir. De maneira que esta obra não é fechada — nenhuma obra é, e esta muito menos”, conclui.
António Moura dos Santos (texto)
in Observador, 2024.10.22