Não há família. Há famílias

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


Os modelos de família dependem das culturas em que se afirmam. Nunca foram os mesmos em todo o tempo. A sua diversidade não é contra a família, são formas diferentes de testemunhar a sua importância. Nenhuma delas é o céu na terra.

  1. A crise religiosa de muitos adolescentes e jovens, que frequentaram a catequese, revela-se sobretudo na escola, quando as descobertas que vão fazendo desautorizam o que ouvem na Igreja. O Padre Resina, que ensinou Física no Instituto Superior Técnico, defendia que a catequese devia antecipar-se a desfazer os conflitos entre as apresentações e interpretações da fé e a linguagem das ciências. As próprias narrativas bíblicas, na grande diversidade dos géneros literários, nunca pretendem fazer ciência, mas a sua floresta simbólica deu e dá muito que pensar, com grande presença na literatura, na música e na pintura.

A liturgia deste Domingo recorre à segunda narrativa mítica sobre o casal humano. Na primeira, era dito que «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; criou-os homem e mulher».

A segunda é mais complexa. A mulher resulta como resposta à solidão do homem: «O Senhor Deus disse: Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele. Então, o Senhor Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse. O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar semelhante a ele. Então, o Senhor Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!» Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne»[1].

Seria ridículo incriminar quem compôs estes contos por não ter consultado Charles Darwin (século XIX), sobre a sua teoria da evolução, nem os cálculos da origem da nossa espécie e a sua difusão a partir da África Subsariana. Segundo a investigadora, Luísa Pereira entre muitos outros cientistas, a diversidade genética do mundo actual saiu dali[2].

Estas narrativas pertencem aos mitos de origem. Quem as ler como um dogma assinado por Deus perde o seu tempo e a ocasião de disfrutar duas admiráveis peças literárias, que dizem a atracção mútua do homem e da mulher, reflectindo também as ambiguidades da cultura patriarcal.

A leitura do Evangelho, proposta para este Domingo, tem dificuldades especiais por ser mal lida, não reparando que Jesus está a responder a uma provocação antifeminista, como diz o texto. Não diz repudiar o homem. S. Mateus acrescenta: repudiar a própria mulher por qualquer motivo. Os discípulos perceberam isso muito bem: «se é assim a condição do homem em relação à mulher, não vale a pena casar». Jesus observa que há pessoas que não podem casar por razões naturais ou então por escolha e até por escolha espiritual, por causa do Reinos dos Céus. Quem tiver capacidade para compreender, compreenda. E mais não disse[3]. No entanto, pretende-se ver na resposta de Jesus um dogma sobre a indissolubilidade do casamento, como se fosse fácil saber quando é que um casamento tem assinatura divina. Repito: o que Jesus não aceita é que o marido possa fazer da mulher o que lhe apetecer.

No panorama actual, estamos sempre a ouvir relatos de violência em casamentos e em namoros. Os movimentos feministas têm lutado para que os direitos e deveres do homem e da mulher sejam os mesmos.

  1. Os modelos de família dependem das culturas em que se afirmam. Nunca foram os mesmos em todo o tempo e lugar e, hoje, devido sobretudo à emigração, em muitos países, encontram-se os mais diversos modelos de família.  A sua diversidade não é contra a família, são formas diferentes de testemunhar a sua importância. Nenhuma delas é o céu na terra.

O que está a acontecer de novo é o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o chamado Casamento para Todos, já legalizado em 30 países.

O Papa Francisco começou por dizer, para espanto de muita gente: «Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?». Defendeu que os homossexuais devem ser bem acolhidos na família. No documentário “Francesco”, manifestou apoio à criação de leis para garantir a união civil de casais do mesmo sexo. Em todas as suas intervenções, nunca confundiu essas uniões com a noção católica de casamento, mas também nunca fez juízos morais sobre essas uniões, designando-as como pecaminosas, como era corrente fazer.

  1. No mundo católico, através de muitas ambiguidades, o casamento foi sempre acarinhado e honrado a ponto de fazer dele um dos sete sacramentos, um caminho de santidade. Coexistiu com pessoas celibatárias «por causa do reino dos céus». O celibato obrigatório, para o clero na Igreja romana, nem sempre existiu nem tem promessa de eternidade. As suas vantagens não estão a superar as desvantagens. A maioria dos padres, que abandonou o ministério, não o teria feito se pudesse constituir família.

Quando estava a finalizar esta crónica, referindo-me à espiritualidade conjugal e familiar de um documento do Papa Francisco, que causou muita polémica[4], fui surpreendido por uma convocatória do Bispo de Roma, que desfaz todas as ambiguidades possíveis acerca do sínodo destinado a abrir todas as portas e janelas, sem espaços reservados ou limites, sem tabus. No espaço que me resta, só posso fazer uma breve referência a um longo texto turbulento e inquietante. Terei ocasião de lhe fazer mais eco.

Realça que o cristianismo deve ser sempre humano, humanizante, deve reconciliar diferenças e distâncias, transformando-as em familiaridade, em proximidade. Um dos males da Igreja, aliás uma perversão, é esse clericalismo que separa o padre, o bispo das pessoas. O bispo e o padre separado das pessoas é um funcionário, não é um pastor. Em nome de Deus, não se pode discriminar. E a discriminação é um pecado também entre nós: “Nós somos os puros, nós somos os eleitos, nós somos deste movimento que sabe tudo, nós somos…”. Não. Nós somos Igreja, todos juntos.  São Paulo VI gostava de citar a máxima de Terêncio: “Sou homem, nada do que é humano me é estranho”.

Quando a Igreja se fecha, já não é Igreja, mas uma bela associação piedosa, porque enjaula o Espírito Santo que, na sua liberdade, não conhece fronteiras e nem se deixa limitar pelas pertenças[5].

Não é a família, são todas as formas de família que devem ser escutadas.


[1] Gn 2, 18-24

[2] Cf. DN, pág. 12-14, de 26/09/2021

[3] Cf. Mt 19, 1-12

[4] Exortação Pós-sinodal, Amoris Laetitia, sobre o amor na família (2016)

[5] Papa Francisco, Documento: Deus é sempre um Deus das surpresas, cf. 7Margens, 25. 09. 2021


in Público 03.10.21

https://www.publico.pt/2021/10/03/opiniao/opiniao/nao-ha-familia-ha-familias-1979667