BENTO DOMINGUES, O.P.
Enquanto esta narrativa não for o guia de todos os ministérios na Igreja, ordenados ou não, masculinos ou feminismos, nenhuma reforma será possível.
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Eugenio Scalfari é um filósofo italiano e co-fundador do jornal La Republica.Não é crente nem ateu ou, melhor, tem outra maneira de ser crente. Continua a ser um aturado estudioso das questões religiosas e teológicas e cultiva um relacionamento muito intenso com o Papa Francisco. Por causa da interminável e ridícula telenovela em torno de um livro muito publicitado[i] que pretende fazer do celibato dos padres um assunto sagrado – publicado em francês e inglês com a assinatura de Bento XVI e do Cardeal Robert Sarah – procurou conhecer a reacção e o estado anímico do seu amigo Francisco. Marcou com ele, por telefone, um encontro que se realizou no dia 14 deste mês, em Santa Marta.
Entretanto, Ratzinger já tinha desmentido, através do seu secretário particular, o arcebispo Georg Gänswein, que tivesse sido co-autor dessa obra com R. Sarah. Este cardeal manteve que tinha havido troca de correspondência com Ratzinger em relação ao livro que surgiu, por essa razão, com dupla assinatura: «Afirmo solenemente que Bento XVI sabia que o nosso projecto tomaria a forma de um livro. Posso dizer que trocámos várias provas para fixar as correcções». Agora, «considerando as controvérsias que a publicação do livro Desde o mais profundo dos nossos corações, provocou, decide-se que o autor do livro será, para futuras edições, o Cardeal Sarah, com o contributo de Bento XVI. O texto completo permanece sem alterações». Desmente assim o desmentido apresentado pelo secretário pessoal de Ratzinger.
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Scalfari, no encontro agendado com o Papa – de que só posso deixar aqui um apontamento –, procurou saber como estava a reagir à existência de um grupo organizado de oposição ao seu pontificado. A resposta foi serena: numa organização que abraça centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, há sempre alguém contra. Considerou a questão com Ratzinger encerrada. O pouco ou muito que resta dos opositores deve ser considerado como um fenómeno bastante normal em estruturas desse tipo. Conclusão: «O nosso Papa não havia levado a sério a tentativa de um grupo de cardeais às costas de Sarah e aceitou a oferta amistosa e até fraterna de Ratzinger no dia anterior ao nosso encontro».
O encontro foi, como sempre, muito cordial: apertamos as mãos e abraçamo-nos. Trocamos impressões sobre o que está a acontecer à nossa volta e começamos a entrevista. Scalfari, a determinada altura, perguntou: o senhor não tem nada de místico, ou sou eu que estou errado?
Resposta pronta: não, não tenho nada de místco, adoptei o nome de Francisco, não porque me queira tornar um místico, mas porque tenho uma compreensão bem clara, na minha mente e na minha alma, acerca do misticismo. Sou movido, como sabe porque já falamos sobre isso várias vezes, pelo desejo de uma sobrevivência activa da nossa Igreja, de actualizar o nosso espírito coletivo para a sociedade civil e moderna. As religiões, e não apenas a católica-cristã, devem conhecer muito bem a sociedade moderna na sua profundidade cultural, espiritual e activa. Uma modernidade que começou quatro ou cinco séculos atrás. Essas foram as nossas conversas sobre as quais já escreveu um livro de que gostei muito.
– Santidade… «Não me chame assim. Prefiro Papa Francisco ou até simplesmente Francisco. Somos amigos ou não somos?»
Trouxe para esta crónica a referência a esta entrevista[ii] quase só pelo correctivo amistoso que Francisco fez ao modo como Scalfari se lhe dirigiu:Santidade…
Existem muitas formas mundanas, imperiais, de aparências sagradas, de tratar e bajular os bispos, os cardeais e o Papa. A mais antiga e a mais acertada é a preferida de João XXIII: Servus servorum Dei, isto é, Servo dos servos de Deus.
A luta de Jesus com os seus discípulos consistiu precisamente nisto: eles tinham largado tudo para o seguir, mas aquilo que os movia, nessa aparente generosidade, era a esperança de uma promoção, uma carreira, um tacho. Largaram tudo, não por causa do espírito que movia o Nazareno e que todos os textos do Novo Testamento referem a propósito do seu Baptismo no Espírito Santo, mas porque julgavam que Jesus iria conquistar o poder e do qual seriam os primeiros beneficiados. Por isso, a discussão permanente entre eles, e que tanto irritou o Mestre, era só a da ambição:quem, de entre nós será o primeiro, o maior?[iii]
Enquanto esta narrativa não for o guia de todos os ministérios na Igreja, ordenados ou não, masculinos ou feminismos, nenhuma reforma será possível. Combater o clericalismo e o carreirismo sem promover um comportamento igual ao que Jesus exigiu aos seus discípulos e de que foi o primeiro a dar o exemplo, não sairemos de conversas sem futuro.
É evidente que esse é um longo processo de conversão e reconversão com muitas recaídas. Não se trata de um propósito voluntarista, mas de abertura à graça da gratuidade do amor. Não se pode combater o clericalismo e continuar com os modelos clericais para exercer funções no Vaticano, nas dioceses e nas paróquias.
O tratamento de reverendo e reverendíssimo, de eminente e eminentíssimo, significa que abandonámos o tratamento de irmãos proposto por Cristo e o trocámos por vaidades mundanas[iv]. Não seria tempo, como pedia João XXIII, de sacudir a poeira imperial que foi caindo, desde Constantino, sobre o trono de S. Pedro? [v] Por isso, fez muito bem o Papa Francisco em não deixar que o canonizem à pressa!
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No Domingo passado, afirmei que a invenção de um Papa emérito, para designar o cardeal Ratzinger, apresentava-se como um estratagema perverso de quem não queria aderir ao programa de reformas de Bergoglio. Era preciso manter o cardeal no Vaticano, não apenas vestido de Papa, mas como referência alternativa a Francisco. O longo texto, Le sacerdoce catholique, que figura no livro controverso já citado, traz esta assinatura: Benoît XVI, Cité du Vatican, monastère Mater Ecclesiae, le 17 septembre 2019[vi]. Está tudo dito. O Papa emérito é uma ficção bem alimentada.
i Benoît XVI / Cardinal Robert Sarah, Des profondeurs de nos cœurs, Fayard, 2020
[ii] A longa entrevista, de muitos assuntos, está publicada no portal de notícias 35-45; 9, 35-37 e paralelos
[iv] Mt 23,12
[v] Yves Congar, O.P. Igreja serva e pobre, Logos, Lisboa 1964, pp. 151-154. Este livro mantem uma actualidade. É leitura obrigatória.
[vi] Benoît XVI / Cardinal Robert Sarah, Des profondeurs de nos cœurs, Fayard, 2020, pp.27-71
in Público 26.01.202026.01.2020
https://www.publico.pt/2020/01/26/sociedade/opiniao/nao-canonizacoes-apressadas-1901574