Frei BENTO DOMINGUES, O.P.
- Graças ao trabalho incansável de Frederico Lourenço que além das traduções da literatura clássica grega, de uma nova gramática latina, já realizou não só a tradução de quase toda a Bíblia (dita dos Setenta) como apareceu agora na Quetzal com a publicação bilíngue dosEvangelhos Apócrifos. Para conforto da teologia feminista, noto que O Evangelho de Pedro emprega uma palavra que nunca ocorre nos evangelhos canónicos: discípula. No único evangelho cuja autoria é atribuída a uma mulher (o Evangelho de Maria), a pessoa a quem Jesus confia a sua doutrina não é nem a Pedro nem João, mas Maria Madalena.
Sem o alcance religioso e cultural da obra de Frederico Lourenço, não posso deixar de referir o utilíssimo trabalho de Luigi Moraldi, ao realizar uma escolha nos três volumes que tinha publicado em italiano[1], escolha essa que também intitulou Evangelhos Apócrifos.
A palavra apócrifo vem do grego e significa escondido, secreto e adquiriu, a partir de determinada altura, o sentido de evangelhos não autênticos e banidos da liturgia oficial.
Em rigor, em Portugal e não só, os próprios Evangelhos ditos canónicos (S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João), eram também muito secretos, escondidos, para quem não entendia nem o grego nem o latim. Nesse sentido, quase se poderia dizer que também eles eram apócrifos, enquanto desconhecidos.
Por tudo isso, temos de saudar a divulgação que, a partir sobretudo do Vaticano II, se fez da Bíblia (também em Portugal), pela qual muito sofreu o fundador da Escola Bíblica de Jerusalém, o Padre Marie-Joseph Lagrange, O.P.[2].
Não posso deixar de saudar, mais uma vez, a Comissão Pontifícia Bíblica que fez um trabalho admirável intitulado A Interpretação da Bíblia na Igreja (1993), no qual a liberdade de investigação e divulgação é total e com uma abertura impressionante à diversidade de novas abordagens. É um documento que todos deviam estudar para resistir ao fundamentalismo bíblico e abrir-se à reflexão teológica contextual que implica «uma pesquisa científica rigorosa sem deformação dos métodos por preocupações apologéticas. Cada sector da pesquisa (crítica textual, estudos linguísticos, análises literárias, etc.) tem as suas próprias regras, que é preciso seguir com toda a autonomia»[3].
A Paulinas Editora continua a publicar a obra de Tomáš Halík, um teólogo atento a tudo o que vai acontecendo no mundo e na Igreja. O livro mais recente tem por título A tarde do cristianismo. O tempo da transformação (2022). Continua empenhado em construir um método da interpretação teológica dos sinais dos tempos. Daí a importância de outro livro editado em português no mesmo ano: O Cristianismo. Na guerra de armas e ideias. Este livro, como veremos, é importante para viver a liturgia deste Domingo.
- Comecemos pelo mais elementar. As celebrações dominicais da Eucaristia começam por aquilo que se chama aliturgia da palavra. Recolhem três textos: o primeiro é escolhido no Antigo Testamento; o segundo é, geralmente, a reprodução de um fragmento de uma Epístola, dos Actos dos Apóstolo ou do Apocalipse, do Novo Testamento; o terceiro é tirado de um dos Evangelhos.
Hoje, a primeira leitura da Missa não pode ser nem mais divertida nem mais repugnante. Para mostrar a importância da oração, conta uma história de guerra a favor do povo eleito: «Veio Amalec e combateu contra Israel em Refidim. Moisés disse a Josué: Escolhe alguns homens e amanhã sai a combater a Amalec. Eu irei colocar-me no cimo da colina com a vara de Deus na mão. Josué fez o que Moisés lhe ordenara e atacou Amalec, enquanto Moisés, Aarão e Hur subiram ao cimo da colina. Quando Moisés tinha as mãos levantadas, Israel ganhava vantagem; mas quando as deixava cair, tinha vantagem Amalec. Como as mãos de Moisés se iam tornando pesadas, trouxeram uma pedra e colocaram-na por debaixo para que ele se sentasse, enquanto Aarão e Hur, um de cada lado, lhe seguravam as mãos. Assim se mantiveram firmes as suas mãos até ao pôr-do-sol e Josué desbaratou Amalec e o seu povo ao fio da espada».
O texto da Missa parou aqui, talvez para atenuar a barbaridade que vem a seguir no texto bíblico: «O Senhor disse a Moisés: Escreve isto, como memorial, no livro e declara a Josué que Eu hei-de apagar a memória de Amalec de debaixo dos céus. Moisés construiu um altar e chamou-o com o nome: o Senhor é o meu estandarte. E disse: Porque uma mão se levantou contra o trono do Senhor, haverá guerra do Senhor contra Amalec, de geração em geração»[4].
Cirilo, Patriarca Ortodoxo da Rússia, ficou colado a este nacionalismo bíblico que é, apenas, a pior face do iaveísmo da política guerreira, que nada tem a ver com o iaveísmo da sabedoria bíblica universalista, como mostrou o grande exegeta português, Francolino Gonçalves, O.P.[5]. Não é por acaso que Josep Borrell o descreve como um aliado de longa data de Putin e que se tornou um dos mais proeminentes apoiantes da agressão militar russa contra a Ucrânia, nomeadamente por ter apoiado a operação especial de manutenção da paz russa e de a ter classificado como operação de limpeza religiosa e ainda por ter abençoado os soldados russos.
A 2ª leitura, de S. Paulo a Timóteo, não supera totalmente os equívocos da questão bíblica: «Desde a infância conheces as Sagradas Escrituras; elas podem dar-te a sabedoria que leva à salvação, pela fé em Cristo Jesus. Toda a Escritura, inspirada por Deus, é útil para ensinar, persuadir, corrigir e formar segundo a justiça. (…) Proclama a palavra, insiste a propósito e fora de propósito, argumenta e exorta, com toda a paciência e doutrina»[6].
Como é possível afirmar, depois da 1ª leitura, em que é a própria oração a Deus a força da guerra de Israel contra os outros povos, que toda a Escritura é inspirada por Deus? Como afirma a Comissão Pontifícia Bíblica, já citada, «a leitura fundamentalista parte do princípio de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus e isenta de erro, deve ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Mas por interpretação literal ela entende uma interpretação primária, literalista, isto é, excluindo todo o esforço de compreensão da Bíblia que leva em conta o seu crescimento histórico e o seu desenvolvimento. Opõe-se assim à utilização do método histórico-crítico, como de qualquer outro método científico, para a interpretação da Escritura»[7].
- Como diz T. Halík,«Este ano, as palavras proféticas do Papa Francisco tornaram-se realidade: Vivemos não uma época de mudanças, mas uma mudança de época. Há muito que o Papa Francisco fala do nosso tempo como sendo uma Terceira Guerra Mundial fragmentada. Neste momento, até o porta-voz de Putin diz que a III Guerra Mundial começou, e talvez seja a sua única afirmação verdadeira».
É um insulto a Deus tentar envolvê-Lo nas guerras que resultam, apenas, da nossa loucura.
[1] Cf. Paulus-Brasil, 2022
[2] Marie-Joseph Lagrange, O.P., Recordações Pessoais. O Padre Lagrange ao serviço da Bíblia, Tenacitas.
[3] Pág. 159
[4] Ex 17, 8-16
[5] Cf. Iavé, Deus de justiça ou de bênção, Deus de amor e de salvação, in ISTA, nº 22 (2009), 107-152
[6] 2Tm 3, 14 – 4,2; cf. também, 1Tes 2, 13
[7] Pág. 80-81
Público, Outubro 2022